terça-feira, 29 de julho de 2014

Procura-se Bakunin

Na atual onda de prisões e processos dignos de Kafka, o episódio mais jocoso diz respeito ao pensador anarquista Bakunin: nas famosas escutas telefônicas que levaram Sininho e dúzias de outros manifestantes ao cárcere, a polícia carioca ouviu uma menção ao dito cujo, que passou a figurar na lista de "investigáveis". Mal sabiam que o russo Mikhail Aleksandrovich Bakunin faleceu há quase cento e cinquenta anos, bem longe daqui, em Berna, na Suíça.

Mas no absurdo, que é o traço comum de qualquer sistema repressor quando enlouquece, se revela uma mentira verdadeira: de certa forma, Bakunin é mesmo culpado. Certamente, ele não pode ser condenado do modo que o aparato deseja (perversamente): seu corpo próprio não existe mais para ser supliciado, embora os afetos desse mesmo corpo, inscritos neste mundo, persistam bem vivos disparando um desejo de libertação da própria libertação.

Vejam bem, as vítimas da última rodada de repressão eram ativistas mais intelectualizados, que se encaixariam no perfil de "líderes das manifestações" -- isto é, aquilo que o sistema precisa encontrar para se saciar, mesmo sabendo que ninguém liderava nada. Muitos deles sim sabiam quem era Bakunin, mas isso é o que menos importa aqui. A revolta tinha um ar de Bakunin pelo fato de que ideias suas, autenticamente suas, estavam vivas como uma espécie de senso comum virtuoso. E o triunfo do pensamento, meus caros, ocorre quando a glória da autoria sucumbe à transformação do conceito em comum. É nesse sentido que Bakunin estava ali sem estar.

Muitos daqueles manifestantes eram como cavalos de Bakunin: e o cavalo aqui é empregado no sentido das religiões de matriz africana, e seus sincretismos locais, enquanto o signo animalesco para o receptor da incorporação do que é incorpóreo. A afro-brasilidade, em outras palavras, já reservou um lugar para o agenciamento na sua espiritualidade bem consistente. E o agenciamento é o bloco do devir: o cavaleiro devém cavalo enquanto o cavalo devém cavaleiro. Mas aqui se trata de um agenciamento até mais intenso, pois o cavaleiro é o incorpóreo que vem a este mundo afeta-lo. E eram muitos servindo de cavalos, pensando além do Estado, pensando contra os resquícios mínimos de transcendência.

O poder se depara com um horror que não é, ironicamente, o desespero de ter cometido uma senhora estultice: muito pelo contrário, ele se desespera porque encontrou um culpado real que, no entanto, é invencível. Como prender, condenar ou mesmo julgar esse espectro que existe a revelia da nossa consciência de sua presença? Pior, o que fazer com esse espectro provocador, cujo esforço do pensamento foi, justamente, o de pensar a nossa libertação do processo de libertação sem, no entanto, renunciarmos à liberdade? A polícia seguirá no encalço de nosso foragido mesmo assim, mas não sem o pânico de saber que, apesar de tudo, a vida é sempre maior do que o poder.




4 comentários:

  1. Arrasou! Dia desses também fiquei pensando,que estaríamos vivendo algo semelhante ao conto O Alienista de Machado de Assis, no caso seria o Investigador, aquele que sairia prendendo todo mundo até por fim prender a si mesmo!
    Sigamos, porque a " a vida é sempre maior do que o poder" e a liberdade é sempre maior que o medo! Valha-nos Bakunin!

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    1. Margareth: ou como Minority Report, do mestre Philip K. Dick, onde o mesmo literalmente acontece. Estamos nessa fase. Mas sim, a vida é sempre maior . Valha-nos São Bakunin! Abraços

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  2. Concordo 100%, valha-nos Bakunin, não podemos nos calar!!

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