Um crime abalou o mundo. Em Setembro último, 43 estudantes mexicanos despareceram no seu país depois de terem sido detidos pela polícia. O ocorrido se deu em Iguala, município localizado a apenas 190 km ao sul da capital mexicana. Os relatos são trágicos: eles teriam sido entregues pela polícia aos traficantes que comandam a região, os quais teriam dado cabo de todos eles e, depois, desaparecido com os corpos -- que até o presente momento não foram encontrados.
As causas são mais bizarras ainda: o foragido prefeito de Iguala, José Luis Abarca Velázquez, teria dado a ordem à polícia municipal e optado pela solução final. Ele fez isso depois de ficar furioso com um protesto dos estudantes contra sua esposa, ligada a um dos cartéis de tráfico que comandam a região e possível candidata à sua sucessão.
Os estudantes vinham da Escola Normal de Ayotzinapa, na qual estudavam, e passavam por Iguala, pois se dirigiam para a Cidade do México, onde participariam das marchas de 2 de Outubro, dia central das jornadas de luta daquele país, quando se rememora o massacre da Praça de Tlatelolco, ocorrido em 1968.
Tlatelolco, aliás, se trata de um dos episódios mais trágicos da história daquele país: o massacre se deu quando o governo mexicano autorizou que atiradores de elite fuzilassem, sem dó nem piedade, os estudantes universitários que lotavam a praça, protestando contra as péssimas condições sociais do país às vésperas das Olimpíadas da Cidade do México (ironicamente chamada de "Olimpíadas da Paz").
Eis que a História se repetiu como tragédia sobre tragédia.
As escolas normais mexicanas, como aquela da qual vieram os estudantes, são um dos derradeiros marcos ainda existentes do projeto libertador da Revolução mexicana. O "normalista" é, acima de tudo, um forte e um inconformado; ele vem das classes mais baixas e se dedica a uma formação que busca transforma-lo em professor -- ou líder comunitário -- para as regiões mais carentes. Por isso, ele tem uma importante histórico de questionamento contra o falido sistema político mexicano.
Os normalistas desaparecidos em Iguala, na verdade, honraram sua tradição -- a tradição dos oprimidos --, expondo um país dominado por cartéis de tráfico poderosíssimos, o quais estão altamente conectados com o poder político. O sacrifício deles não foi, como nunca é, em vão.
Há, portanto, uma intensa dimensão histórica no processo em questão, um contexto bastante determinado e preciso, que coloca o episódio para além de um caso pontual de "traficantes matando estudantes no terceiro mundo" ou de "corrupção policial"; tampouco falamos de um crime de Estado pontual, mas de um grande crime continuado que se dá desde a destruição, lenta e silenciosa, da Revolução Mexicana.
Hoje, o México que aí está, se trata do perfeito exemplo do que as elites latino-americanas (inclusive a nossa!) defendem para o nosso continente: uma política externa totalmente rebaixada aos Estados Unidos, uma economia precarizada e condicionada ao Mercado e, sobretudo, um Estado grande na hora de praticar a repressão social e política.
A tal guerra às drogas, a política de proibição e esmagamento militar do tráfico, pelo jeito serve apenas para ampliar o problema, enganando a população enquanto, na verdade, se produz drogas como nunca -- a preços altos garantidos pela proibição legal.
Praça do Zócalo, centro nevrálgico do México, ocupado em protesto |
Enquanto o populista presidente mexicano Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucionalista (há muito um fantasma do que foi a Revolução), segue sob pressão internacional para investigar o massacre, ele se depara com uma mobilização interna gigantesca para a qual certamente não está preparado.
Para se ter uma ideia, embora tenha sido expulso de seu partido, o prefeito de Iguala veio do centro-esquerdista PRD, a menos pior das grandes agremiações partidárias mexicanas. O sistema mexicano, não resta dúvida, está falido como há tempos os zapatistas nos dão mostras.
O porvir do México repousa na conexão entre o magnífico investimento desejante das ruas, em revolta com o arbítrio do poder soberano, com a bela Revolução que um dia o México presenteou o mundo, mas que restou diluída, implodida e mitigada pela máquina oligárquica do país. A luta no México é brasileira não num sentido humanitário, ou pelo simplismo que diz que o "México é aqui" -- ou que o Brasil pode virar um México --, mas porque aquele contexto singular de lutas nos atravessa em sua atualidade: derrotar o fascismo que está como face secreta, mas bem concreta, das "democracias-liberais", criar novos mundos, libertar, libertar, libertar...