A Manobra de Missolonghi -- Vryzakis |
O recém-eleito governo grego liderado pelo Syriza surpreende, pior, ele chega a nos chocar. Essa estranha comoção é resultante do que deveria ser praxe, mas não é: o governo do jovem premiê Alex Tsipras, segure-se firme na poltrona meu bom leitor, resolveu cumprir suas promessas eleitorais. E tais promessas não são nada banais. A Grécia está simplesmente soterrada pelas condições de pagamento de sua dívida, o que exige uma firme resistência, coisa que o governo atual está disposto a levar adiante.
A chamada Troika -- a reunião do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do Fundo Montário Internacional -- insiste em impor condições austeras, quase sobre-humanas para que a dívida seja paga. É preciso cortar a verba dos serviços públicos, demitir funcionários do Estado, arrecadar mais, privatizar o patrimônio público.
Não importa, para a Troika, se o povo fique sem emprego ou sem luz elétrica em casa. Tudo isso com o poderoso Estado alemão à frente. É a dívida infinita de Nietzsche bem diante dos nossos olhos.
É de uma crueldade -- e de uma burrice! -- semelhante ao que se viu no Tratado de Versalhes, como bem observou o nobel de economia Paul Krugman em sua coluna no The New York Times: na ocasião, não eram os gregos, mas, ironicamente, os alemães os obrigados a pagar uma dívida sem fim, uma vez que foram derrotados na Primeira Guerra e, por isso, foram responsabilizados por todo o custo do conflito pelos "vencedores".
Se a comunidade internacional errou ao impôr um ônus, na verdade, punitivo e irracional à Alemanha após a Primeira Guerra, por outro lado, os governos locais, muitos dos quais de esquerda, erraram ao abaixar a cabeça e sacrificar seus compatriotas pagando o que impagável.
Adentrando um pouco mais a oportuna lembrança de Krugman, é preciso frisar que quando os gabinetes social-democratas germânicos usaram de medidas de exceção para silenciar revoltas populares ou trabalhistas nos anos 20, eles se desmoralizaram diante da opinião pública de tal modo que abriram a janela para o nazismo.
Para os desesperados, desempregados e esfomeados alemães não parecia mais haver diferença entre seus antigos "defensores" e a direita ou qualquer solução bisonha. Não é que votar naquele contexto era questão de sobrevivência, mas que os próprios símbolos e compromissos haviam sido rompidos. Tudo parecia "mais do mesmo" e os nazistas surgiram como a diferença nisso tudo para, daí, executar seu projeto assassino.
As condições estabelecidas pela Troika são tão, ou menos, viáveis que as de Versalhes. Se cumpridas, mais fácil a Grécia sumir do mapa do que pagar a dívida. Hoje, depois de anos de política de austeridade, a economia grega mirrou, as pessoas empobreceram e, justamente por isso, a dívida só aumentou.
Que não se fale em irresponsabilidade dos gregos. A crise foi precipitada pela crise econômica mundial, mas cedo ou tarde aconteceria pelos problemas sistêmicos do Euro. Moeda comum à maior dos países europeus, o Euro significa uma unidade monetária transnacional, mas do ponto de vista fiscal, cada país ainda funciona separadamente.
Vista globalmente, a Zona do Euro tem superávits. Mas pelo desnível das economias compartilhando a mesma moeda, o que favorece as mais fortes e competitivas, que passam a exportar bastante para dentro do bloco.
Enquanto uns tem déficits comerciais, outros não, o que faz com que uns tenham déficits fiscais e outros não -- e as dívidas públicas de uns, como a Alemanha, são pagáveis enquanto as da Grécia, não em condições reais.
Ter uma unidade fiscal seria um elemento central de estabilidade do Euro, pois tornaria as dívidas públicas coletivamente geradas em dívidas europeias, não mais gregas ou portuguesas. As dívidas geradas pela existência do Euro seriam, pois, europeias. Nada mais justo.
É exatamente isto que o Syriza, na voz firme e grave de seu ministro das finanças, Yanis Varoufakis, está propondo, em consonância com propostas razoáveis de figuras do mercado financeiro como George Soros.
Os gregos, portanto, não querem um calote nem o fim do Euro ou da União Europeia, mas uma negociação internacional para que ambos, a moeda e a união continental, possam ser viáveis.
A postura de Berlim, e do neurastênico gabinete de Angela Merkel, é de insistir numa via que levará a Grécia a optar por sair da Zona do Euro por opção ou por uma hecatombe social. O efeito dominó, aliás, implode a moeda única e prejudica a Alemanha, enormemente favorecida com o comércio livre da Europa.
O punitivismo alemão se assemelha, ironicamente, ao dos países vencedores da Primeira Guerra Mundial, os quais acabaram pagando em dobro por terem semeado as condições para uma Segunda Guerra estourar.
Agora, enquanto pressionam de todas as formas Atenas, Berlim ameaça cortar o financiamento aos bancos gregos. Se asfixiarem mesmo o sistema financeiro grego, a quem interessa isto? Na Europa, a ninguém.
Como sublinhou Varoufakis, também ao NYT, não há escolha para o Syriza e nenhuma pressão os fará recuar. É uma questão ética como ele bem demonstrou, muito embora seja pragmática também: se o gabinete de Tsipras fizer tal loucura, os membros do governo grego ficarão desmoralizados de tal modo a permitir a ascensão em seu país de, por exemplo, partidos nazistas locais como o Aurora Dourada. Qualquer semelhança com os anos 20 não é mera coincidência.
Mas o Syriza, para o bem da Grécia e da humanidade, não parece ser a social-democracia alemã dos anos 1920, embora os social-democracias alemães e europeus parecem não ter aprendido nada com o episódio e continuem a apoiar as medidas de "austeridade" em nível continental -- inclusive a partir da Alemanha, onde o Partido Social-Democrata faz parte da coalizão de Merkel com 6 dos 15 membros do gabinete ministerial.