segunda-feira, 2 de março de 2015

Fatumbi Verger & as 300, 350 máscaras de Exú (Por Lucas Jerzy Portela)


(Legenda:  Verger, Jorge Amado e Carybé – os Três Mosqueteiros da Avant-Gard Bahiana)


É com axé, modupé e agô que se deve receber a notícia de uma exposição da obra fotografia de Pierre Verger focando o caráter homoerótico de sua lente – urgia tirar o Babalaô de Orunmilá do armário! Não que o Ifá-Tumbi alguma vez tenha sido encubado; nem era do desconhecimento geral que ele nunca casou e sempre viveu sozinho, em parte por sua vida ao mesmo tempo nômade e monástica (dedicada ao triplo credo do jogo sagrado das sementes de mafulo, da Rolleiflex e do diário de campo etnográfico), mas porque discretamente preferia rapazes.
O problema está em que uma mostra como esta, em São Paulo, reduza Verger a um “fotógrafo gay” – o que ele não era; Verger está sempre além disso, e é muitos, muitas outras coisas: tão francês quanto baiano, tão negro quanto branco, tão ateu quanto sacerdote de Exú, tão fotógrafo quanto etnólogo, tão historiador econômico quanto rapsodo poético infantil, jardineiro e cozinheiro. Homossexual sim, mas não “no sentido de vocês” (como dizia Jean Genet) – e sobretudo não apenas nem primeiro.
Como tal mostra também pode reduzir Verger a um fotógrafo de temática afro-brasileira – quando sua fase anterior, na Polinésia, já o colocaria ao lado de Nadar, Cartier-Bresson, Man Ray e Mapplethorpe.



Ou como apenas um retratista de rostos e pessoas, quando suas cenas e paisagens também são de tirar o fôlego, como na cena abaixo, do içamento de velas de saveiros da rampa do antigo Mercado Modelo em Salvador, quase um Turner de cabotagem.



Por outro lado, corre-se sempre o risco de reduzi-lo a condição de repórter fotográfico (tal qual como quando se o coloca na posição de “etnógrafo”, o braço-de-campo de Roger Bastide – “este sim, um antropólogo, teorizador!” – e esquece-se que sua grande obra em prosa é um estudo da economia política transatlântica dos anos de abolição da escravatura: Fluxo & Refluxo do Tráfico Negreiro entre O Golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos), quando sua obra tem óbvia concepção estética, a exemplo da foto do rosto deste vaqueiro em Feira de Santana, onde o traço desenhado pela sombra do chapéu é crucial para criar um efeito erótico e cubista na disparidade do olhar de cada olho do retratado.


Verger sempre está lá onde não se espera que ele esteja, e já não está onde se o mira, na semovência sofisticada dos raros filhos de Exú-Elegbó.
Que mais esta face de Verger seja explicitada no ano em que a obra de Mario de Andrade entra em domínio público, aláfia! Mario, mais do que Oswald, foi o grande consolidador e propagador do Modernismo no Brasil; Oswald, que muito viajou para fora, foi bem mais estático do que Mario; Mario, sem nunca ter pisado fora do país, nunca deixou de vaguear nômade.
E, não da mesma forma de Verger, é preciso tirar também Mario de Andrade do armário – coisa já em parte feita por João Silvério Trevisan no seu monumental Devassos No Paraíso – não apenas no tocante a sua subjetividade privada (esta sim, ainda carola e burguesa, bastante encubada), mas também numa leitura de sua obra neste sentido. Por exemplo: poucas vezes se aponta que um dos males que o amor de Fraulein Helga visa previnir em Carlinhos é uma possível homossexualidade; reconhecendo isso, o Brasil terá feito um dos primeiros, e melhores, romances não sobre a homossexualidade, mas sobre o temor da mesma (homofobia no sentido radical do termo que nada tem a ver com a bradação da militância que eu chamo de Viadagem Institucional).

Fazer Mário de Andrade voltar a ser, de fato, como Verger, 300, 350. 

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