domingo, 17 de maio de 2009

Reflexões sobre a Violência e a Criminalidade


(Guernica - Pablo Picasso)

Há poucos dias, se completaram três anos do ataque do PCC em São Paulo e da não menos cruenta reação da polícia local. Como definiu acertadamente nosso amigo Eduardo Prado, foi o Dia em que São Paulo parou. O Idelber também debateu a questão n'O Biscoito com a sagacidade que lhe é peculiar. Aquilo foi um caso emblemático do fenômeno que chamamos de "Violência" no Brasil contemporâneo. De repente, um conceito brutalmente amplo como "Violência" se tornou uma entidade, um espectro que ronda nossas vidas e decide sobre a vida e a morte no Brasil dos anos 90 e dos primórdios do século 21º.

No entanto, considero o termo "Violência" por demais impreciso para definir esse estado de coisas em que vivemos. O que seria um ato violento? Ao meu pensar, seria todo tipo de ação cujo elemento principal é o uso da contínuo da força voltado para alteração do estado de uma determinada coisa. O termo carrega um inequívoco - e justificado - conteúdo negativo em nosso meio nos dias que se seguem, mas não é possível que a Violência seja algo necessariamente mau ou, mais precisamente, contrário à ética: Quando um escultor retira uma pedra de mármore da natureza e a talha, ele está praticando um ato violento contra a pedra, mas em momento algum pratica um ato mau na medida em que de seu trabalho nasce uma escultura. O mesmo vale para o médico que realiza uma cirurgia cardíaca; aquilo invariavelmente é um ato violento, mas seu intuito é alterar um estado negativo em prol da cultura do paciente.

Esse é o ponto central e complexo da Violência: Nem sempre o estado de algo é melhor do que ele pode vir a ser, do contrário, a Cultura humana não faria sentido. A Violência, portanto, ocupa uma posição central nesse processo como a força destruidora que necessariamente antecede a criação. Ela é imanente e inerente à existência humana, mais do que uma potencialidade, uma necessidade, seja na relação do Home com a Natureza ou com os seus semelhantes. Dessa forma, não vejo como a Violência possa ser apagada, na verdade, considero que a evolução humana passa, necessariamente, pelo crivo da instrumentalização da violência pela Razão.

Portanto, não falemos em "Violência" no Brasil atual. Vamos ser mais precisos, falemos sobre Criminalidade - e não nos limitemos à interpretação de crime segundo o direito positivo. Crime é um atentado a um princípio ético fundante de um determinado grupo humano, cuja prática, por óbvio, ameaça a existência desse. Em outras palavras, crime é a prática da violência contra o grupo desacompanhada do ímpeto criador. Normalmente, o crime é feito por um indivíduo contra o grupo, mas há exceções e é aí que as coisas ficam mais complexas.

O crime é composto por uma série elementos racionais, mas quando conectados, formam uma unidade irracional. Não há crime racional nem crime ético, se algo racional ou ético for considerado crime, estaremos diante de um crime do grupo contra o indivíduo, portanto, contra si mesmo, um tipo de autofagia que nem mesmo os pretensos países mais democráticos de nosso tempo são ainda capazes de admitir em sua totalidade, afinal, vivemos numa época onde o controle e a dominação pairam sobre a razão e a organização.

Analisando o fenômeno de criminalidade no Brasil moderno, temos duas visões dicotômicas:

1. Há um nexo de causalidade entre o funcionamento do nosso sistema econômico e a nossa taxa de criminalidade porque o primeiro se assenta sobre bases irracionais, logo, a segunda é uma decorrência lógica do primeiro. Desse modo, o fenômeno da criminalidade seria normal em relação ao ambiente em que se desenrola.

2.Não há nexo de causalidade entre o funcionamento do nosso sistema econômico e a nossa taxa de criminalidade porque não é a pobreza material de uma pessoa que determina sua índole. Os criminosos são maus e é válido - e necessário - usar de toda violência possível para detê-los. Assim, o fenômeno da criminalidade seria anormal em relação ao ambiente em que se desenrola.

O grande problema da segunda visão, é que ela confunde o que as pessoas querem ser com o que as condições materiais permitem que elas sejam, além de estar imbuída de um conteúdo maniqueísta óbvio cujo conteúdo é, nada mais, nada menos, do que dizer que o sistema funciona e é legítimo custe o que custar, aconteça o que acontecer. Ele pode ser facilmente contraposto por uma analogia espacial ou temporal; basta pegar os países em que a exploração do trabalho pelo capital é menor do que o nosso e ver como a taxa de criminalidade deles é menor. Também é possível analisar historicamente; por exemplo, ao pegarmos a História da Europa Ocidental, podemos constatar que não foram políticas de repressão que levaram à queda da criminalidade, mas sim um diminuição da exploração do trabalho pelo capital.

Portanto, fico com a primeira visão sobre a criminalidade. Com isso, claro, não estou justificando eticamente o crime, nem poderia fazê-lo: Se eu defendo que a criminalidade é uma decorrência lógica do funcionamento do nosso sistema, logo não poderia dizer que ela é eticamente justificável, pois assim estaria legitimando o sistema que a provoca. Se uma decorrência lógica é ética, aquilo do qual ela decorreu também o seria. Não é o caso. Isso sem falar no fato de que não é possível, jamais, justificar eticamente o crime, se eu o fizesse estaria dizendo que ele não é um crime. Seria ilógico. O horizonte que não podemos perder de vista, na verdade, é aquele que aponta para a criminalidade do Brasil atual como fenômeno normal em relação ao sistema vigente e anormal em relação à ética, cuja resolução passa, aprioristicamente, pelo crivo da reorganização da divisão do trabalho e da renda e não por uma cruzada cega contra as meras consequências do sistema.

11 comentários:

  1. Hugo, Perfeito!

    Minha primeira postagem em meu segundo blog _ o Conversa de Bar é o terceiro _ foi sobre a violência estrutural e sobre a sua relação com o outro tipo de violência, a criminal. A própria exploração do trabalho pelo capital é uma forma de violência. A precaridade dos servições públicos de saneamento básico, saúde e educação é outra violência. A ausência de políticas adequadas de moradia, com a consequente favelização das cidades médias e grandes é outra violência, sem contar as políticas de segurança pública, extremamente violentas.

    Os ataques do PCC mostraram um dos crimes que quase nunca aparece, aquele que é praticado pelo Estado quando age fora da lei _ através de forças policiais armadas e pagas por ele _ para manter a ordem, ou que chamam de ordem.

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  2. Hugo,

    Esqueci de comentar...

    Perfeita a escolha do Quadro Guernica para falar falar sobre violência. E antes que me esqueça de novo, a música é o som obtido a partir de um ato de violência contra um objeto. Que o diga Violas, violões e violinos, sem falar nos Surdos e outros tambores de todo tipo.

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  3. Exato, Eduardo,

    As artes e as técnicas - que, etimologicamente, são termos sinônimos, mas que hoje tem sentidos diferentes em português - têm por base a Violência, mas não de forma aleatória: É a Violência instrumentalizada pela Razão para atingir fins bons, belos e éticos.

    O Crime, por sua vez, é uso irracional da Violência nas relações intersubjetivas de uma modo que ameaça a existência do Grupo.

    Guernica, nesse sentido, foi uma bela provocação e fico feliz que você tenha percebido: É uma obra que mais do que o uso da força no uso de tintas e do pincel sobre uma tela para transformar seu estado, também tem a própria crítica à Violência irracional como inspiração do artista. É a possibilidade do uso construtivo da Violência - via produção artística - em oposição ao seu uso irracional, meramente destrutivo na Guerra - ou, quem sabe, pretensamente construtor de uma ordem iníqua que, felizmente, não se consolidou.

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  4. Excelente post, ilustrado por um quadro que meio que antecipa o que você escreve. Emborao neoliberalismo tenha largamente conseguido - até agora - transformar em "datada" a visão que correlaciona níveis sócioeconômicos e crime, até mesmo a pior imprensa corporativa - refiro-me a "O Globo" - é obrigada a atestar, em manchete, que a violência é maior entre jovens desempregados. Você está sabendo que o blog "Pensar Enlouquece" está promovendo uma blogagem coletiva sobre os 3 anos do ataque do PCC?

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  5. Maurício,

    Acho que a visão neolibé foi, felizmente, pro vinagre em todos os sentidos mesmo. No fim das contas, era uma espécie de teologia que promovia até suas vendas de indulgências e também era pensada por meia dúzia de espertos e mantida por zilhões de idiotas úteis. Nesse exato momento, os cabeças do capitalismo mundial já estão voltando ao velho Keynes por uma questão de sorevivência.

    No caso específico da criminalidade, não há como negar a relação entre as condições materiais de um grupo e a criminalidade em seu interior sem cair num maniqueísmo tosco.

    abraços

    PS: Fiquei sabendo, darei uma passada por lá.

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  6. Certeira a diferenciação entre violência e criminalidade. Agora o aspecto conjuntural, que apresenta a criminalidade, junto à corrupção, como uma das ameaças ao processo democrático.

    A corrupção no Brasil tornou-se, além de desvio ético, um problema econômico pelas dimensões que vem tomando. Digo isso sem qualquer vestígio de udenismo (que parece estar bafejando a nossa extrema-esquerda, quem diria), pela consciência dos prejuízos causados na eficiência das políticas públicas, o que entre outras coisas, fortalece a situação descrita na primeira visão do post.

    A criminalidade, por sua vez, adquirindo um status de profissionalismo, vem através da sua linha-de-frente, o tráfico de drogas e de armas, ocupando espaços na vida institucional do país, colocando representantes não só infiltrados na polícia (um problema crônico), mas também em casas legislativas, vide o exemplo recente (entre muitos) do capixaba José Carlos Gratz, que chegou a presidir a Assembléia Legislativa.

    Esse nível de profissionalização, disseminação e organização está desgraçando a vida nas grandes cidades, intimidando o cidadão na sua necessidade e desejo de deslocamento e tornando cada vez mais caros empreendimentos públicos e privados.

    Tal clima de intimidação encurta os horizontes das pessoas e as torna defensoras de medidas cada vez mais de curto prazo e de racionalidade decrescente, além de engendrar a desconfiança dos cidadãos no Estado democrático (tudo bem, ainda não o temos) e a adesão a oportunistas e pilantras.

    E aí vem a morosidade dos parlamentos, a baixa qualidade pessoal e política do parlamentares, as dificuldades internas das instâncias do Estado, mas, poxa, é assunto demais para um pobre comentário.

    Um abraço.

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  7. Grande Anrafel,

    Sobre a questão da corrupção e como ela colabora para a criminalidade, sim, nós estamos diante de uma questão bastante mesmo.

    Eu penso que a corrupção é uma decorrência natural do disfuncionalidade do Estado brasileiro tal como ele sempre foi e ainda é.

    O Estado é uma decorrência das relações econômicas travadas no interior de um agrupamento humano, portanto, o Estado brasileiro não é diferente, ele apenas reflete a intrincado e por vezes insustentável teia de relacionamentos de natureza material do país, o que implica num Estado intrinsecamente problemático.

    Entenda-se por "intrinsecamente problemático" ser, entre outras coisas, incapaz de ter uma estrutura funcional de acordo com as normas que ele mesmo produz. Não é uma espécie de Estado totalitário, na verdade, É uma espécie de Estado jurisdiforme, mas que não consegue se consubstanciar como um Estado de Direito plenamente.

    Isso o torna poroso para a corrupção - e esse fenômeno, num país capitalista, passa necessariamente pelo crivo do conluio entre o agente público e o agente privado, o agente de direito e o agente de fato, onde o segundo tem a primazia sobre o primeiro ao mesmo tempo em que precisa dele para se completar, como um cavalheiro que precisa de sua dama para dançar.

    Dependendo de quem seja esse agente privado, podemos ter desde um empresário da área de construção civil até, sim senhor, um traficante de drogas.

    Esse problema não vai se resolver com uma mera troca de postos no governo, ele demanda, no mínimo, um processo reformista radical que imponha a ordem construindo instituições sólidas - coisa que só tivemos a oportunidade de fazer nos anos 30, mas Vargas jogou essa chance pela janela e que só fizemos, mal e porcamente, em 88.

    Enfim, é uma tema que dá pano pra manga.

    abração.

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  8. A meu ver a corrupção tem tudo a ver com a violência criminal. Parte do dinheiro que deveria ser investido em políticas sociais e na melhoria das condições de saúde, moradia e, principalmente, na educação se perde no meio do caminho, mantendo a exclusão da população menos favoreceida dos benefícios do desenvolvimento econômico.

    O problema não está só na política, mas nas relações sociais, no dia a dia do cidadão, que compactua com o "jeitinho" sem ter a consciência das consequências que isso trará para ele mesmo, na forma de mais violência.

    Hugo,

    Antes que me esqueça de novo, obrigado pelo link!

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  9. Eduardo,

    De nada. Nessa questão da corrupção, no entanto, eu vejo como um fenômeno intrinseco ao modo como o Estado brasileiro se organiza.

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  10. O crime vem dos presos?sofrem,tortura maus tratos na cela,só aumenta a vingança!!!

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  11. José,

    É mais complexo do que isso. O fenômeno da criminalidade, como descrito no post, tem raízes estruturais - quanto ao sistema prisional, mais do que isso, a própria lógica prisional, ela é digna de questionamento sim, funcione bem ou mal; sua origem está conectada à ideia do Estado Burguês, o leviatã idealizado por Hobbes e parido por Napoleão e não superado pelas Revoluções socialistas. Uma sociedade que consegue fazer presídios funcionarem bem por um longo período de tempo é aquela que, na verdade, não precisa deles porque resolve os problemas nas suas causas e não nas suas consquências - novamente nos deparamos com os problemas estruturais, veja só. Eu, pessoalmente, Não acredito em abolição imediata do penalismo e das prisões - mas da lógica prisionalista sim -, no entanto, acredito fortemente que deveríamos empenhar nossos corações e mentes para atingir essa meta. Para tanto, é necessário desenvolver uma teoria revolucionária suficientemente consistente e uma prática fiel a ela para que superemos a aporia hobbesiana de uma vez por todas - coisa que o marxismo, apesar de toda as suas contribuições para a humanidade, não conseguiu.

    abraços

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