sábado, 20 de junho de 2009

Diploma de Jornalista

Diploma, em grego, significa "algo dobrado em dois" - curiosamente, a ideia de dobrar nem sempre se coaduna com a de duplicar em português, daí é necessário explicar que algo é dobrado em dois e não em três ou quatro. Nunca pensaram nisso? É estranho. Divagações de lado, esse algo dobrado em dois, era a forma física dos documentos oficiais da burocracia das cidades helênicas e também em Roma. Entre outras coisas, tratavam-se de salvo-condutos. Na nossa sociedade, cartorial e oficiosa que só ela, o diploma, principalmente com o advento da República, se tornou o salvo-conduto para as camadas médias ascenderem socialmente e assim trespassarem linhas antes intransponíveis.

O Brasil dos primórdios século 20º era um país onde a tardia e tímida burguesia nacional se aliava à velha oligarquia para livra-lo do atraso do século 19º, mas, claro, isso daí de acordo com a concepção bem peculiar que elas tinham - e têm - de progresso. Como diria Lampedeusa, se queremos que as coisas permaneçam como estão, as coisas terão de mudar; Foi o que aconteceu: Os remediados, outrora ligados ao comércio ou a atividades rurais razoáveis passaram a ser absorvidos pelo Estado republicano: Era necessário não só reorganizar como ampliar a massa do funcionalismo público para administrar a nova divisão do trabalho no país.

É disso que surgem duas concepções ainda recorrentes no país: A valorização do diploma como forma de subir na vida e o sonho de se tornar funcionário público para ganhar muito e trabalhar pouco. As duas ideias se entrelaçam na medida em que para subir no funcionalismo público é necessário diploma, portanto, por que não conseguir um? A concepção do diploma como forma de ascensão profissional no setor privado é ideia recente por aqui, ele remonta à segunda metade do século 20º para cá e encontra maior ressonância nos estados em que houve algum desenvolvimento industrial. O peso do diploma e dos títulos vale mais do que o conhecimento, a criatividade e a imaginação em nosso meio.

O Outro fator, o curso de jornalismo, é bem recente. No mundo, ele surge nos EUA dos fins do século 19º, por aqui, ele aparece pouco antes da metade do século 20º com a Cásper Líbero. A jornalística em si nasce dos panfletos políticos no tempo das revoluções burguesas. Ganha corpo no século 19º e se afirma enquanto a prática de se produzir o meio de comunicação impresso chamado jornal; depois, passa a ser jornalista quem produz qualquer meio de comunicação impresso e em seguida, com o avanço tecnológico, o jornalista se torna o técnico especialista na difusão de dados por meio de qualquer meio de comunicação de massa, sejam os jornais propriamente ditos ou revistas, rádios, televisões.

O conceito de jornalistíca se alonga; em muitos momentos ele é confundido com o de comunicação social e em outros tantos realmente coincide com ele. O que abstratamente seria o discurso informativo massificado, no plano concreto, passou a ser, quase integralmente, o que representa o discurso jornalístico. A partir daí, o jornalismo passou a ser um conceito extremamente incerto, podendo implicar em uma atividade extremamente simples e estrita ou em outra complexa de acordo com o uso que se faça da palavra.

Cá no Brasil, a obrigatoriedade do diploma jornalístico foi estabelecida pelo simpático Decreto-Lei nº 972 de 1969. Há quem diga que os militares instituíram tal obrigatoriedade para elitizar as redações e livrarem elas de indesejáveis jornalistas não-graduados, próprios daquela geração que se formava em outros cursos ou, quase sempre, nas ruas. Eis aí que se confluíram dois fatores interessantes: Um deles tangentes às relações cada vez mais complexas da uma mídia e a questão da comunicação que já se desenhava no horizonte; o outro, a questão da concepção dos diplomas em nosso meio.

As Faculdades de Jornalismo ganharam impulso, mas talvez não tenham promovido o curso que os artífices dessa norma imaginaram, pelo menos não do ponto de vista ideológico, na medida em que elas sempre se apresentaram como núcleos de pensamento progressista. Mas, claro, as redações se elitizaram sim e o oligopólio midiático passou a ter uma mão-de-obra exclusiva para si e não mais profissionais de outras áreas prestando um serviço do qual não estavam intrinsecamente dependentes.

Por outro lado, há o problema que envolve a questão da substância dada a esses cursos; eles nunca conseguiram se livrar da concepção jornalística em sentido estrito, principalmente no que envolve as ideias da interatividade e de "imparcialidade" - de certa forma, nunca se superou o paradigma do liberalismo inicial do ponto de vista técnico, ainda que do ponto de vista político se estimulasse um pensamento progressista. Isso ficou mais flagrante com o advento da Internet. A soma disso com a fragmentação e a especialização do saber em nosso tempo fez os jornalistas cada vez mais passarem a ser vistos como os especialistas em saber pouco sobre muito.

Mas o que o Poder criou há 40 anos, ele desfez nessa semana: O STF declarou a inconstitucionalidade da obrigatoriedade do diploma de jornalista para se exercer a atividade jornalística. Agora, como nos anos 60, a medida legal se coadunou com o que os "patrões" queriam, afinal, não nos esqueçamos que o processo em questão nasceu de uma ação movida pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo e que perseguia, justamente, do fim da exigência de diploma. Claro, entram aí, interesses mil, dentre eles, enfraquecer os sindicatos e a categoria dos jornalistas e, ao mesmo tempo, poder empregar mão-de-obra especializada em várias áreas diferentes.

Para além da metafísica jurídica liberal, o que feriu de morte o jornalismo, foi mesmo a Internet e a possibilidade de difusão da informação por inúmeros agentes diferentes, instantemente, de qualquer lugar do mundo e de maneira interativa. A ideia de jornalismo, por mais que o termo tenha sido elastecido ao longo do tempo, não conseguiu alcançar esse ponto. Claro, há mais coisa aí, uma delas, é a própria conversão do discurso jornalístico em discurso político via monetarização do dado informacional - e a própria informacionalização do dado monetário, trata-se de uma convergência -, o que já vinha comendo o próprio jornalismo por dentro.

Não acho, no entanto, que venha a ser dispensável a existência de um profissional da área de comunicação no futuro, mas ele terá de ser, sobretudo, um pensador e um desenvolvedor de conceitos-solução para a problemática da Mídia. Deixemos, portanto, a mentalidade jornalística para trás e pensemos na comunicação social.

4 comentários:

  1. Hugo,

    Concordo com muito do que você escreve acima - notadamente, com a não-superação do "paradigma do liberalismo" nos cursos de Jornalismo. Fico, sobretudo, impressionado pela sua capacidade de angariar informações precisas relativas a uma área diferente da de sua formação (estou assumindo que você estude Direito e nunca tenha estudado Jornalismo, certo?).

    Mas não posso concordar com a afirmação de que o o jornalismo tenha sido ferido de morte pela internet. Que esteja sob intenso escrutínio e em processo de mutação, não tenho dúvidas; mas me parece longe, muito longe da morte.

    Há vários pontos que me parecem problemáticos nessa decretação prematura da morte do jornalismo. Vou listar 4:

    1)A informação da maioria absoluta da população advém da televisão, que continua praticando um jornalismo convencional;

    2) Na própria internet, a audiência dos grandes portais corporativos e dos gigantes multinacionais como Google, Yahoo e derivados é consideravelmente maior do que a dos produtores "independentes" de informação e dos blogs não-corporativos;

    3) É preciso auferir, na queda das vendas dos "grandes jornais" (30% a menos de abril de 2008 a abril de 2009), a porcentagem de leitores que passou a lê-los na internet (que, arrisco, não é desprezível). É preciso ainda ter em mente que, como o próprio Franklin Martins atesta, a venda dos jornais interioranos e populares cresceu, em média percentual, mais do que a dos "grandes jornais" diminuiu.

    4) Mesmo na blogosfera que navega contra a corrente a presença de jornalistas atuando como jornalistas (e com isso quero dizer, obedecendo a um padrão ético e técnico caro aos melhores cursos universitários de jornalismo) é grande. Vide Luís Nassif, Mello, Leandro Fortes, Azenha e muitos outros. O blog da Petrobrás, por exemplo, saudado como um marco na contrainformação jornalística, pertence a blogosfera, mas é conduzido, em sua maioria, por jornalistas.

    Gostaria de convidá-lo a ler e debater, quando tiver tempo e disposição, um artigo que postei no Liberdade de Expressão, da Flavia, que desenvolve mais a fundo - e com argumentos diferente dos utilizados aqui neste despretensioso comentário - justamente essas questões.

    Um abraço,
    Maurício.

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  2. Maurício,

    Depende muito de como você conceitua jornalismo. Como eu escrevi, o significado do vocábulo se alterou muito com o tempo e, hoje, me parece profundamente confuso. O problema é: Até onde vai o significado dele?

    O que significaria o termo jornalismo? Etimologicamente, é atividade do diarismo - vem de journal, em francês, diário.

    O jornalista, por sua vez, seria o diarista; obviamente, "diarista" quer dizer pouco em si mesmo, no Brasil, o termo se aplica aos trabalhadores autonômos da área de limpeza que realizam serviços de duração e remuneração diária.

    Daí a manutenção do termo, uma vernaculrização do francês que foi incorporada ao nosso léxico - melhor faríamos, no entanto, em falar em periódico, periodismo e periodista.

    Mesmo ignorando esse detalhe e partindo do momento em que ele foi inserido no nosso léxico - e teve seu significado reelaborado e tudo mais -, constata-se que o termo teve seu conteúdo semântico alargado ao longo do tempo com a pluralidade dos meios de comunicação e afins. O jornalista passou a ser mais do que aquele que trabalha no jornal, para ser o que trabalha no rádio também e depois na TV. Mas o seu significado chegaria à produção dos meios de comunicação não-interativos também?

    O jornalismo, por mais que eu consiga elastecer seu significado em um exercício especulativo, não me parece que vá sobreviver no horizonte visível. Não há como manter o modelo dos jornais e revistas na Internet, pela própria dinâmica do meio. A comunicação em massa sim, mas de uma forma não-jornalística. Ainda há o agravante da convergência entre economia e mídia.

    Vamos aos pontos:

    1) A informação em maior parte vem da televisão...ainda, mas a jugar pela expansão da Internet e o tempo que um brasileiro passa online, há uma tendência não muito animadora para a televisão - que, além de tudo, é um meio de comunicação muito caro e pouco lucrativo; com a possibilidade de transmissão de imagens pela web, percebe-se que a TV encontrou o seu limite de avanço tecnológico.

    2)A audiência dos portais é maior sim, o que não quer dizer que a audiência e os meios da Internet não-corporativa não venham crescendo - olhe a importância que eles tiveram na eleição de Obama.

    3)Não tenho números sobre os leitores que passaram a ler os jornalões pela Internet, a impressão que eu tenho é de que eles se tornam cada vez mais irrelevantes no debate quotidiano - estou na faculdade agora e apenas um dos meus 50 colegas de classe lê jornalão habitualmente. Os jornais populares são panfletos que prestam algum serviço do tipo o placar do jogo de ontem, o resultado da loto, algo sobre aposentadorias, mas não tem a pretensão - e nem condições - de serem players da Narrativa Informacional. Jornais do interior, em geral, são meros panfletos ligados a políticos locais.

    4) Na blogosfera, Nassif, Fortes, Azenha e Mello são blogueiros.

    Enfim, por isso eu falo que no século 21º precisaremos de teóricos da comunicação e que o jornalismo está prestes a alcançar o seu limite lógico.

    abraços

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  3. Hugo,

    Particularmente achei positivo o fim da reserva de marcado para quem tem diploma de jornalista. Qualquer pessoa pode produzir informação e todo mundo tem o direito de divulgar informações. Não faz sentido reservar esse direito apenas a quem tem "habilitação" para exercê-lo.

    Esse é apenas o meu ponto de vista. Tenho um amigo jornalista que pensa diferente. Para ele o diploma representa a aquisição de um vasto conhecimento técnico, social e lingüístico que faz toda a diferença no trato da informação. Mais que isso, o domínio desses conhecimentos confeririam ao jornalista uma liberdade de análise que outros profissionais não teriam, pois observariam ou compreenderiam os fatos jornalísticos sob um óptica própria e restrita, derivada do seu campo de formação. Ou seja, só um jornalista estaria apto a garantir a imparcialidade necessária e a credibilidade que uma reportagem precisa ter.

    Uma preocupação da categoria, segundo ele, é a precarização da profissão de jornalista. A cada ano as faculdades de jornalismo formam milhares de jornalistas. Gente de mais para um mercado que não cresce. Se já estar difícil conseguir uma colocação no mercado disputando com outros jornalistas, que dirá agora com a entrada de profissionais de outros campos, que não tem a garantida de um piso salarial mínimo?

    No meu caso, a profissão de historiador não é, nem nunca foi, regulamentada. Em tese qualquer pessoa, de qualquer área de atuação, pode produzir e publicar pesquisa histórica, e quem mais se aventura nessa área são jornalistas. Iniciativas que contam, com raras exceções, com o desprezo da Academia. No estado de São Paulo, até 2006, qualquer pessoa com licenciatura da área de Humanas poderia dar aulas de História, incluindo Artes e Letras. Hoje, além de quem é formado em História, Quem tem licenciatura em Geografia e Filosofia também pode lecionar História. Para Filosofia, o contrário não acontece, mas para Geografia sim. Eu leciono mesmo Geografia para a Sexta série.

    Num primeiro momento, diante da escassez de oportunidades de trabalho, reservas de mercado podem parecer sedutoras. Mas a longo prazo elas tendem a fechar os profissionais em nichos burocráticos e conservadores.

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  4. Eduardo,

    É uma questão realmente muito complexa mesmo. O que é curioso nessa situação é que a reserva de mercado surgiu por interesse do Oligopólio nascente - o grupelho da meia dúzia de famílias que apoiou o golpe - e caiu também por interesse dele também.

    Primeiro, ela surgiu como forma de elitizar as redações e criar uma espécie de categoria que estivesse sob seu controle, afinal, não falávamos mais de advogados ou professores que, caso se enchessem do jornal podiam pedir o chapéu e ir embora; Depois ela acabou porque agora que qualquer um pode ser jornalista, o Oligopólio pode dar de ombros para o sindicato e, o mais importante, baixar os salários na redação.

    Numa situação e na outra, o debate passou ao largo do estabelecimento de um critério justo para tanto, sempre estivemos no campo da velha luta pela Hegemonia.

    Fazendo uma análise de uma situação ideal, penso sim que as redações deveriam ser ocupadas por comunicadores sociais graduados, mas com a assessoria de especialistas em determinadas áreas. O fato é que não formamos comunicadores sociais, mas sim meros jornalistas, daí, tanto faz termos um historiador ou cozinheiro escrevendo um jornal ou revista. O problema nesse debate é o seguinte:

    1. À luz do fenômeno internético, precisamos sim formar comunicadores sociais, mais até do que isso, estudiosos do fenômeno comunicativo em toda a sua amplitude. De que adianta, ficar debatendo o que acontece ou o que se exige num meio tão anacrônico quanto uma "redação"?

    2. Já não era hora de termos superado o pensamento jornalístico?

    Quanto ao ensino da História, creio que seja um absurdo que pessoas com outras formações possam dar aulas dessa matéria. Infelizmente, levando em consideração a situação da Educação Pública na nossa sociedade, cujo debate é tão negligenciado como bem o sabemos, isso acabando passando desapercebido.

    abraços e valeu pelo excelente complemento.

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