domingo, 8 de maio de 2011

O STF e a Democracia

O STF imponente - tirado da Revista Piauí
Desde a mini-reforma do Judiciário, com a longa Emenda Constitucional n. 45 de 2004, o STF ganhou, não à toa, uma centralidade nunca antes vista no debate público nacional - e isso não é à toa, na prática, os últimos marcam um crescimento considerável daquela corte, seja por conta daquela referida emenda - que aumento seus poderes - ou porque o Congresso Nacional está, a cada dia que passa, mais paralisado. Existem zonas cegas mesmo dentro do (sofisticado) sistema de atribuição de competências do Poder Soberano, onde ocupa quem for mais hábil - e o Judiciário e o Ministério Público, diante da inoperância aparentemente crônica dos organismos de Estado que possuem a primazia da representação política para a produção de normas (o Legislativo) ou para a Administração da Coisa Pública (o Executivo, ainda que esse último tenha perdido espaço apenas no plano municipal, o mesmo não se confirmando nos níveis estadual e federal). Seja como for, sob os auspícios do cândido, benévolo e salvacionista ativismo judicial, a Democracia corre riscos graves - principalmente o de ser engolida por uma judicialização, reduzindo-se a uma mera tecnocracia togada. Isso pode passar desapercebido, ainda mais nessa semana em que - felizmente, mas com certo atraso - o STF decidiu pelo reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas, o que deixa setores da esquerda simplesmente eufóricos com um Judiciário "do bem" tomando decisões "impossíveis de serem levadas a cabo no Legislativo". Mesmo que resultados benéficos colaterais como esse possam sair do Judiciário - sobretudo em relação a direitos de minorias -, é bom não esquecer que esse reconhecimento nada mais foi do que a afirmação da igualdade formal - já constante nas primeiras constituições republicanas do século 18º e 19º - e que seus méritos decorrem muito mais de décadas de ativismo gay nas ruas do que de "ativismo judicial" nos corredores do Poder. Nem vou citar como advertência o caso Battisti, como fiz no último post, mas um caso um pouco pior: a anuência do STF com a autoanistia que o Estado brasileiro sistematicamente reitera ao não punir os torturadores do regime militar. Isso nos valeu, não à toa, uma condenação na Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA. A explicação para tanto é simples, a Suprema Corte brasileira simplesmente anuiu com uma doutrina contrária ao Estado de Direito: Se desde o contratualismo de Hobbes, sob essa ou aquela matiz, sabemos que a Constituição do Estado não é o ato unilateral da vontade do soberano (nem uma mera avença), mas sim um contrato, não existe possibilidade lógica, dentro dessa racionalidade, de auto-anistia de uma das partes em virtude de seu desrespeito a uma das cláusulas, ainda mais a principal delas. Longe deste humilde redator partilhar de qualquer credo em relação a uma Constituição transcendental, prefiro mais o outro filósofo maldito, o Spinoza, e sua perspectiva de Constituição enquanto ficção destinada a organizar vontades para garantir a vida dentro de um plano de imanência - uma astúcia antes de mais nada. Mas dentro dessa visão, não tenho como não ser democrata, não um crédulo na democracia como fim em si mesmo, mas alguém que vê a democracia como um Ovo - em suma, um ente que serve como meio para que possa eclodir uma vida nova, embora sempre esteja sob o risco de acabar estéril (e podre) ou mesmo terminar sua existência na barriga de algum predador vulgar. Hoje, o avanço do STF, com todas as suas boas intenções, é um bom fato para se preocupar.

Atualização de 10/05 às 13:57: Deem uma lida neste belo post do Bruno Cava sobre a ética de Spinoza, vale realmente a pena.

4 comentários:

  1. Assino embaixo e reconheço firma em cartório. Muito lúcido.

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  2. O STF segue uma linha do chamado novo-constitucionalismo, que entende que as normas constitucionais são compostas pelo programa normativo (texto legal) e pelo âmbito normativo (situação). Diante disso, as normas só existem se compostas também por valores essencialmente extrajurídicos. Nessa linha, a Constituição pode ser interpretada para os limites do texto legal (conforme a elasticidade que os termos permitem). Além disso o sistema jurídico infraconstitucional, diante da supremacia da Constituição, sofre a chamada “interpretação conforme a Constituição”, qual seja, sua adaptação aos princípios constitucionais mesmo que contrária ao texto legal (da lei menor, mas em conformidade com a Constituição). Os principais elaboradores dessa linha são os professores da PUC-SP seguidores de Celso Bastos (entre eles, o Min. Carlos Ayres Brito), mas essas idéias têm origem em Konrad Hesse (alemão) e Joaquim José Canotilho (português).

    Por um lado, parece interessante que o STF defenda os valores constitucionais que não estão sendo aplicados pelo legislador comum, no caso, a defesa do direito à igualdade dos homoafetivos. Por outro lado, o STF não é o representante do Povo Brasileiro (papel que cabe à Câmara dos Deputados), ou seja, dependendo da decisão, pode estar cometendo atos antidemocráticos.

    Para os setores progressistas, mais importante do que avaliar o conteúdo de cada decisão, é entender sobre essa hermenêutica nova e qual o resultado sistêmico dela.

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  3. Taqua,

    Sim, sim. No caso em tela, creio que o STF até cumpriu o seu papel mesmo, na verdade, o não reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos era um problema do Judiciário - o casamento propriamente dito aí já seria questão de omissão do legislador sim frente essa contradição em termos do nosso sistema jurídico (uns serem, na prática, mais iguais do que os outros).

    A minha preocupação, por uma perspectiva sistêmica, é que isso sirva para pavimentar o mito do ativismo judicial como panaceia. Agora, com as súmulas vinculantes e a crise do legislativo - a maior causa de estarmos, neste exato momento, falando em Reforma Política -, isso pode abrir uma perigosa caixa de pandora sob os auspícios do salvacionismo.

    abraços

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