segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Rocinha: o Quilombo e a Favela

Rocinha sob ataque
Estudar a História exige boas doses de ironia. A brasileira, mais ainda. A recente tomada da Rocinha, por exemplo, lembra tempos remotos. Há muitas e muitas luas, quando a colônia ainda estava em construção, arregimentar quadros burocráticos, técnicos e mão-de-obra de toda sorte era um problema considerável para a metrópole: não à toa, o processo tornou-se compulsório. Os "premiados" por El Rey ganhavam um naco gigantesco de terra para administrar, um subsídio relativamente baixo e todos os ônus possíveis e imagináveis. A economia clandestina, baseada na burla às leis e decretos da metrópole, fundamentada no contrabando e toda espécie de manobra, rapidamente converteu-se em regra, assim como a vista grossa das autoridades portuguesas, que puniam tão somente aquilo que escapasse à necessária discrição ou ao razoável - ou ferindo diretamente os cofres reais, de um modo que ele pudesse perceber -, afinal, era preciso manter  de algum modo a máquina em funcionamento.

Da mal-sucedida escravidão da população nativa até a economia da escravidão negra - que movimentava as colônias lusitanas de ambos os lados do Atlântico -, passando pela superação dos ciclos de extrativismo vegetal até a descoberta do ouro e dos diamantes no que viriam a ser as Minas Gerais, o processo acima descrito apenas cresceu e se aperfeiçoou. Os negros, em permanente resistência, fugiam para os quilombos, nos quais se viam às voltas com meios de sobrevivência escassos: eram, não raro, absorvidos pela economia clandestina movimentada pelos doutos brancos, no contrabando de diamantes ou em mal-feitos menores. Para além das tropas da metrópole, estacionadas nestes brasis-de-meu-deus para garantir o que havia de estratégico e caro à Coroa, o comezinho do serviço policial era feito pelos capitães-do-mato, gente da massa miscigenada da plebe, que mantinha a disciplina da população escrava e, ao mesmo tempo, fazia toda sorte de serviços e bicos para os senhores.

Séculos depois, passada a Independência, a Abolição, a República, o Evento-Vargas, a Democracia, o Golpe Militar para o posterior reestabelecimento da democracia representativa, algumas coisas não mudaram substancialmente, convenhamos. A população pobre, uma massa majoritariamente de negros e mestiços continuou a viver na mal no campo, os que vieram para a cidade logo foram despejados das pensões infectas para os morros e, com a urbanização autoritária, a começar por Vargas e piorada pelos militares, terminaram por habitar as piores áreas das regiões metropolitanas superlotadas do país. Existe um vínculo profundo entre a favela e o quilombo - e o mesmo se pode dizer da polícia em relação aos capitães-do-mato. A enorme e disfuncional burocracia estatal prossegue, assim como a duplicidade entre o império da lei e a clandestinidade, as duas faces da mesma moeda operadas pelas mesmas pessoas.

O principal elemento da economia clandestina atual são as drogas: a designação genérica para uma série de substâncias entorpecentes, com diferentes agentes ativos e efeitos variados. Elas são proibidas legalmente e seu uso enfrenta uma barreira moral considerável. Por outro lado, todo aparado legal, judicial, militar e moral que é movimentado para combater seu enorme comércio não parece obter efeito algum: a produção, comércio e consumo das drogas é uma realidade concreta na sociedade brasileira. Se o Estado brasileiro gasta bilhões de reais no seu combate, o tráfico, misteriosamente, continua a fluir, não só: o risco gerado pela repressão estatal aumenta os preços delas produzindo uma rentabilidade enorme para seus audaciosos operadores. Mais do que isso, ele movimenta toda uma indústria de contrabando de armamentos, cujo uso, geralmente, é restrito às Forças Armadas.

Nem é preciso dizer a enorme hipocrisia que é chamar os operadores do tráfico nos morros cariocas, ou na periferia paulistana, de chefes do tráfico. Chefes do quê? Uma vez que a favela, bode expiatório mór da República, certamente não é o local onde são produzidas as drogas e armas necessárias para o tráfico - e tampouco é lá onde se dá o consumo relevante daquelas drogas. Mais do que isso, chega a ser risível identificar em figuras como o recém-preso traficante da Rocinha Nem o responsável por um esquema que não seria possível sem a atuação das autoridades da República, seja nas forças de segurança - polícias e exército -, no judiciário e demais instâncias do Estado - todas devidamente recompensadas. É como se, de repente, estivéssemos novamente em plena era pombalina, todos escandalizados com o fato de que aqueles quilombolas não cansam de contrabandear diamantes para o horror dos bons contratadores...

O que há de atual é a dimensão espetacular que a invasão de uma favela toma, hoje, em comparação às antigas eliminações de quilombos: sociedade do espetáculo. A subida das tropas à favela, transmitida ao vivo nos mais diversos e possíveis ângulos com direito ao hasteamento delirante da bandeira depois da vitória, é isso. A favela, para o tráfico, tem uma importância meramente política: é lá que se põe a culpa - e só é possível entender o Ocidente ao se fazer uma arqueologia da culpa como elemento constitutivo das relações biopolíticas. Enfim, a favela é o Outro. Social e economicamente, a favela só é o eixo onde se opera a triangulação necessária para que as drogas cheguem aos seus consumidores sem parecer que o tráfico, na verdade, é uma esquema produzido nas franjas do Estado, tanto pelo proibicionismo - planejado ou não - e pela corrupção dos burocratas - que é, diga-se, uma inerência à sua condição. 

A roda perversa da economia capitalista gira, a nossa culpa está expiada pelo sacrifício dos bodes que nós mesmos alçamos a tal posto e tudo termina como antes no quartel de Abrantes - exceto pelo população local, que viverá algum tempo com a tormenta de uma ocupação militar na sua vizinhança. Diferentemente da invasão do quilombo, um abalo à economia real - clandestina e também legal - da colônia, o capitalismo contemporâneo articula meios de capitalizar o abalo: a favela está dentro da máquina, diferentemente do quilombo que estava fora, isso muda tudo para o Soberano. Se, por um lado, o contato entre a máquina e a favela se dá dentro de uma mediação interior, que lhe permite rearticular as relações mando e capitaliza-las de algum modo, por outro, a condição de explorado do favelado - diferentemente da condição de excluído do quilombola - lhe coloca em uma situação. A partir daí, as condições para a resistência estão dadas. 


2 comentários:

  1. É aquela história de passar para o povo a falsa idéia de que a violência e drogas se encontram apenas nas favelas.

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  2. Ou até pior do que isso, alaô: criar um consenso no qual todos fingem acreditar que a favela é isso - e, portanto, fora dela é tudo puro e limpo - para fazer catarse social.

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