Neste exato momento, o Irã está cercado. Uma boa quantidade de navios de guerra está estacionada ou se dirigindo ao Golfo Pérsico, enquanto muitos países da União Europeia já não estão comprando petróleo do Irã, seja por retaliações de Teerã ou por decisão própria. Nem preciso dizer que as potências ocidentais estão se movimentando para forçar uma guerra que, aliás, pode arrebentar a qualquer momento com consequências terríveis. Essa situação cabe uma rápida digressão.
Quando o século 21º estava nascendo, o amanhã à la Jetsons - isto é, uma mistura de comercial de margarina com futurismo - que os americanos desenhavam como o porvir do Globo, dentro da sua hegemonia total, ruía silenciosamente: o estouro da bolha da Internet foi um desastre que pôs em xeque a new economy - mostrando o descompasso entre capitalismo cognitivo e economia do conhecimento - e as apostas de Clinton. Isso produziu uma movimentação de bastidores que trouxe de volta ao jogo os republicanos e seu belicismo, qualquer coisa potencializado com os ataques de 11 de Setembro.
Dizer que o 11 de Setembro causou a guinada da política externa americana é ingênuo. É esquecer, por exemplo, que um dos primeiros atos do governo Bush foi bombardear o Iraque. O atentado ao World Trade Center, se muito, apenas retardou a segunda guerra contra o Iraque e criou um combate que não existiria, dessa vez, no Afeganistão. Talvez tivéssemos o tão sonhado confronto com o Irã no lugar de algumas dessas guerras, talvez alguma loucura na Coreia do Norte.
A integração dos mercados globais via capitalismo, a afirmação do inglês como língua franca e quetais não trouxeram, comos os americanos esperavam, uma espécie de ordem global onde Washington lideraria acima das próprias regras do jogo, imune às crises. Essa percepção vem muito antes das agências de risco rebaixarem os títulos americanos em Obama, é algo que já aterrorizava os tecnocratas de Bush e o fez ir à guerra. Mas se os EUA, pela força de suas tropas, era livre para fazer o que fez, nem por isso, ele deixaria de arcar com as consequências.
O fato é que, hoje, não há mais guerras, logo não existem mais os ganhos que podem ser extraídos delas. Trata-se de uma impossibilidade. O final das fronteiras transforma toda guerra em uma guerra civil. A semelhança entre os dois termos nas línguas ocidentais de hoje esconde, por sua vez, uma profunda diferença: se a guerra é o confronto armado entre corpos coletivos - seja a cidade antiga, o reino medieval ou Estado moderno -, a guerra civil é um processo destrutivo de confrontação interna, de autofagia - talvez por isso os gregos designavam a primeira como polemós e a segunda como stasis.
As guerras que os americanos promoveram, no Afeganistão e no Iraque, com Irã e Coreia do Norte na mira - quem sabe, a própria Venezuela - não só não trouxeram ganhos para os EUA como desequilibraram o sistema mundo e, por tabela, seu próprio país. O estouro das contas públicas americanas, pelas duas guerras em que se meteu simultaneamente, ainda é subestimado como esse fator de desequilíbrio, mas se esquecem os incautos que o aumento do endividamento da nação emissora de moeda hegemônica não é lá um bom sinal - e que emissão de dinheiro não é exatamente uma saída, ainda mais em larga escala.
Pois bem, não temos nem dois meses que os EUA se retiraram do Iraque, depois de uma vitória militar seguida de uma derrota política: seja pelo desgaste econômico e político interno ou mesmo, vejam só, por ter legado em Bagdá um governo xiita pró-Irã. Enquanto isso, Washington prossegue seu empreendimento no Afeganistão, após a vitória simbólica do assassinato de Osama Bin Laden, mas sem muitos ganhos efetivos - ainda mais pelo fato de que o país passa a depender mais e mais de cessões para a Rússia, aliada estratégica para o trânsito de tropas americanas e aliadas pela Ásia Central.
Somemos isso à atual situação do mundo árabe, onde há um ano revolta multitudinárias puseram em xeque toda sorte de tiranias e temos um cenário interessante. Washington, apesar de todos os recentes fracassos, mantém uma doutrina nacional no mundo global e ignora, inclusive, o quanto a economia da guerra só traz ganhos, hoje, para as próprias corporações bélicas. Washington quer recuperar o terreno perdido à força e acha, ainda, que pode ter retornos econômicos com isso - fora os lobbistas locais, que sabem bem o que estão fazendo dentro de sua atividade parasitária.
Quando falamos em Primavera Árabe, por sinal, falamos de um levante da multidão local contra uma forma de governança, independentemente de sua posição frente aos EUA ou ao globo. Isso explica porque houve levantes contra as ditaduras de Mubarak no Egito e Ben Ali na Tunísia - aliados do Ocidente - e, ao mesmo tempo, derrubou-se Kadafi na Líbia e ameaça-se com violência o clã Al-Assad na Síria.
O que muda é a atitude americana frente a revoltas com motivações parecidas: enquanto na Tunísia e no Egito o processo revolucionário foi procrastinado - ou mesmo, no caso egipício, chegamos ao ponto de ver o apoio descarado a uma ditadura militar que serve, por sua vez, para tutelar o andamento das coisas -, na Líbia e na Síria, financiou-se mercenários contra os ditadores locais.
Um fator importantíssimo que atravessa essa confusão toda é Israel. Quando falo em Israel aqui, não me refiro a judaísmo, sionismo ou nada do tipo, mas antes de mais nada ao complexo bélico-industrial local que capturou a política daquele país desde a primeira guerra do Líbano. O país é parasitado por aquele setor e essa percepção, finalmente, chegou à população israelense que se manifestou, massivamente, nas ruas há poucos meses, à moda de seus vizinhos árabes e dos europeus.
Esse mesmo complexo-militar israelense encontra-se em xeque desde que foi contido, na última guerra do Líbano, por um estranho consórcio no qual as tropas do Hezbollah, apoiadas pela ditadura laica dos alauítas sírios e da teocracia xiita do Irã, conteve o exército de Israel impondo um limite para seu expansionismo.
É o mesmo complexo bélico-industrial que, como nos prova Wikileaks, move mais os EUA do que lhe serve de tentáculo avançado no Oriente Médio. Ele precisa de uma guerra para dissolver tensões internas, a exemplo das potências mundiais pré-Primeira Guerra, e precisa parar o Irã que ameaça tirar seu monopólio nuclear na região - o que criaria uma paz armada que afetaria seus negócios.
O clero de Teerã, quanto mais pressionado, mais avançará. Primeiro porque mesmo quando foi eleito um governo moderado, há poucos anos, liderado pelo reformista Mohhamad Khatami o Ocidente não demonstrou qualquer boa vontade em negociar. Depois, porque se ele parar agora com seu programa nuclear, não existe garantia alguma que o Ocidente cesse as hostilidades - onde estão as armas de destruição em massa de Saddam Hussein?
Aos russos a guerra assusta bastante. Não obstante seus problemas internos, a maior ameaça à estabilidade russa nos últimos vinte anos tem sido o Cáucaso e proximidades, seja a dura guerra na Tchechênia ou mesmo a perigosa aliança que a Geórgia fez com Ocidente - o que causou um confronto pesado, porém rápido, durantes os Jogos Olímpicos de 2008, com êxito para Moscou. Sem a presença de um governo confiável no Irã, a região fica mais exposta. Por mais que Teerã tenha uma posição ambígua, os persas não são aliados para se jogar fora, coisa que não poderia se dizer de um governo fantoche, naturalmente.
Tanto pela limitação de recursos humanos do lado de Israel, quanto pelos limitados recursos bélicos do Irã, é possível que uma guerra muito cruel seja deflagrada rápida e abruptamente na região. Ambos os lados precisam lançar mão de ataques duros que causem danos consideráveis no adversário. Com a situação ainda nada estável do Iraque e, sobretudo, da Síria, não é exagero dizer que o conflito possa se espalhar pela região inteira.
Se em 2010, o Brasil de Lula e Amorim foi responsável, junto à Turquia, por adiar o conflito no Irã. Agora, o recuo da política externa de Dilma em relação a Teerã abre espaço para que o processo bélico avanço. Sem um esforço conjunto e transversal dos movimentos de indignados que lotam as praças do Globo - passando até mesmo pelos cadavéricos Estados-nação -, assistiremos a uma carnificina que sequer trará o lucro esperado para os seus idealizadores.
O mundo globalizado não admite mais vitoriosos em guerras, pois nas guerras civis só há derrotados. O custo dessa farsa nos será muito caro.