quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Tatu do Bem? por Luis Henrique Mello


Em uma análise sobre simbolismos e iconoclastias, Luis Henrique Mello analisa a questão dos ataques aos tatus da coca-cola espalhados pelo país como mascotes da Copa.

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Uma simples imagem de um homem gravemente ferido na cabeça, compartilhada no facebook por minha irmã, sintetiza toda a loucura ocorrida na última manifestação popular em frente à prefeitura de Porto Alegre: "Para proteger o tatu inflável da Coca-Cola, a polícia moeu de pau uma galera em Porto Alegre", com o subtexto "Um boneco inflável da Coca-Cola vale mais que a integridade física das pessoas (...)". 

Li a reportagem e, naturalmente, compartilhei, sem me importar com meandros. Eis que inesperadamente um ex-colega de faculdade, que hoje trabalha na marinha, contesta-me, apontando o vandalismo do boneco inflável como o verdadeiro responsável da batalha campal em frente à prefeitura de Porto Alegre, fazendo uma analogia que à primeira vista pode parecer absurda mas que, à luz da lógica do controle social capitalista, faz todo o sentido: "Se você estivesse sozinho em sua casa, tivesse uma arma, e 10 pessoas desarmadas invadissem sua casa, e dessas, 3 começassem a quebrar suas coisas. O que você faria?" Certo. O locus social (casa) como propriedade privada do Estado (eu) e este como detentor do monopólio da violência (arma) na defesa do Capital (coisas). 

A imediata associação da manifestação com trespassadores é o primeiro ponto. Afinal, o banditismo é a forma mais vulgar e primitiva da rebeldia que, se minimamente organizada, alimenta o medo do caos social. Todos se lembram do pânico generalizado causado pela violência do crime organizado em 2006 - milhares de cidadãos foram tomados pelo desespero interiorizado pela consciência do abismo social existente no Brasil e que, enfim, o dia apocalíptico em que os marginalizados subitamente diriam um 'basta' e fizessem justiça com suas próprias mãos finalmente chegara. É o medo das massas. Enfim, respondi que segundo esta argumentação eu teria o direito e a razão de atirar nessas 10 pessoas se 3 delas jogassem minha escova de dentes no lixo, ateado fogo em uma folha de papel e, no máximo, bebido uma garrafa de cerveja sem minha permissão, dado o valor insignificante de um boneco inflável gigante para uma corporação de bilhões de dólares. 

Respondeu-me que o boneco inflável representa para muitos a conquista do Brasil em sediar a copa e, voltando à analogia por ele proposta, disse que "mandaria bala em todos antes mesmo de chegarem na minha cozinha." Gelei. Procurei então ler os comentários da foto no facebook e da matéria no jornal. Para minha desagradável surpresa, a maioria das pessoas dizia coisas no tom de "tem que dar porrada mesmo nesses vagabundos", "a polícia devia ter batido mais, muito mais", ou pior. É uma revolta. Uma revolta contra a revolta. Este é o segundo ponto. 

É um fenômeno social interessante pois, dada a atomização da ação política do indivíduo na era das democracias de massas, o sujeito sente-se impotente perante todos os absurdos sócio-políticos que toma conhecimento, seja por experiência cotidiana ou através da mídia, e sublima esta revolta na submissão completa de sua vontade política ao confortável berço da Ordem. Eis a chave do controle social moderno. O cacetete da polícia transforma-se em uma extensão de seu próprio corpo justiceiro, reprimindo os elementos 'anti-sociais' tão logo seja encontrada uma brecha legal que legitime a Exceção. Neste caso, foi a defesa da propriedade privada. Voltando ao reino da representação mencionado pelo meu colega, retruquei: "O boneco inflável representa a rendição do patrimônio público ao privado. Esse foi o motivo da manifestação, a privatização de espaços públicos de Porto Alegre para empreiteiras ligadas à Coca-Cola. 

Já não é a 'nossa' copa, é a copa da Coca-Cola. Furar o boneco não é vandalismo. Vandalismo é quebrar a Pietà, pixar a Monalisa. Não danificar algo que com um pedaço de fita isolante e menos de 5 minutos de ar comprimido estará novinho em folha. Furar o boneco é um ato simbólico. É um ato político. Portanto, a repressão da BM foi uma repressão política - estavam apenas esperando um 'motivo' para encher a galera de porrada. Fosse o contrário, a BM teria apenas detido aqueles que invadiram o espaço do boneco, e não generalizado a violência para todo o público presente." Coincidentemente (ou não), vi a notícia de outro tatu inflável da Coca-Cola furado em São Paulo. Neste caso é visível a ação higienizadora das empreiteiras, dado os múltiplos incêndios nas favelas em regiões altamente valorizadas da paulistéia e que, para surpresa de ninguém, os membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) montada na Câmara Municipal de São Paulo para investigar os incêndios em favelas são financiados por empresas ligadas à construção civil e ao setor imobiliário. 

Onde houver tatu, haverá uma agulh a. Enfim, do medo das massas umbilicalmente ligado à revolta contra a revolta nasce o ovo-da-serpente do protofascismo expressado em gritos raivosos de "vagabundo tem que apanhar mesmo", "bandido bom é bandido morto" ou, pior, "direitos humanos para humanos direitos

sábado, 20 de outubro de 2012

A Metrópole e uma Ontologia do Desespero-Segurança

Amarelo, Azul e Vermelho -- Kandinsky
























Até que ponto podemos dizer que a esperança e o medo, a dupla-hélice do DNA do discurso tirânico, são dois afetos absolutamente diferentes? A esperança se funda em uma negação da atualidade, um abrir mão do aqui-agora em virtude da Promessa -- o que, embora se deva a um bônus, essa lacuna protelatória é negativa: medo de viver no aqui-agora. E o medo não deixa de ser a espera(nça) da tristeza. O que interessa nos dois, e não me resta muita dúvida, é a promessa e a expectativa. Hoje, contudo, a promessa e expectativa estão postos de outra maneira: é o desespero e a segurança que avançam e se impõem cada vez como a nova matriz do despotismo.

A diferença está no fato de que as dúvidas sobre a desdita futura, ou passada, são cada vez mais dissipadas: nunca houve tanta certeza sobre o incerto quanto hoje, nunca se morreu tanto de véspera. O cidadão recluso e hipocondríaco das metrópoles pós-pós está certo que, caso saia às ruas e encontre uma multidão, será vítima de alguma violência ou restará contaminado por um mal sem cura. 

A catástrofe é certa e a única perspectiva que temos, na prática, é das nossas assépticas torres de cristal. Só nos resta a segurança, precisamos lutar por segurança pública -- policialesca e inclemente --, por segurança nos nossos posicionamentos e votos -- estar de lado até mesmo daquilo que é certo enquanto posição minoritária, nunca ousar --, segurança nas nossas mais íntimas relações humanas. 

Em Spinoza, a diferença entre o par medo-esperança -- a expectativa ou reminiscência da tristeza-alegria -- e o par desespero-segurança é precisamente a ausência de dúvida. Se temos medo, é em virtude de alguma tristeza que nos marcou -- a exemplo da dor na forja do Contrato, como nos lembra Nietzsche em Genealogia da Moral -- ou que imaginamos que irá nos acometer, mas o desespero é ausência de dúvida sobre o que é por natureza incerto, um senhor abraço à miragem: já não esperamos, irá acontecer. 

Na segurança ocorre o mesmo em relação a alegria: mas o suposto aumento de potência da alegria está sempre eivado pelo negativo do deslocamento para o futuro, se dizemos que estamos seguros é porque estamos desesperados, é o desespero pela alegria, ele mesmo, que nos faz paranoicos, estar seguro é estar com a potência reduzida em face de um complexo de coisas que, supostamente, nos faz e fará alegres: a portaria fortificada e blindada do prédio, a cerca elétrica, tudo para o nosso bem passado, presente e futuro, enquanto necessário e insubstituível. 

O problema é o tempo, sempre o tempo, e como ele se articula: se dinheiro é tempo, e ele o é no capitalismo pós-fordista, testemunhamos a alteração da percepção do segundo e as relações que envolvem o primeiro; com o trabalho dissipado pelo dia, do expediente temperado com a página do facebook aberta até leituras noturnas dos e-mails com os relatórios de vendas, as coisas saem de lugar. 

E quem tem reserva de tempo é quem tem dinheiro, tempo para investir, tempo para recuar e fazer opções melhores, segurança, enquanto quem nada tem, ou tem tempo sob a servidão está em desespero; não é preciso brincar com a ameaça de uso da força ou a promessa do bem-estar (pela adesão aos ditâmes do Estado ou o enriquecimento via trabalho duro), basta negociar o tempo curto e dúctil que resta às pessoas comuns: e elas estão certas do mal que virá, logo, o leque de opções é curto.

Talvez a constatação até intuitiva do império do desespero-segurança leve a pensadores como Badiou a darem um novo estatuto para a esperança: precisamos de esperança nesses tempos, cultivar uma potência entre o tempo de aqui e do porvir. Mas em todo caso, a crença -- e tratamos de algo que será sempre uma crença -- em uma promessa foi o substrato necessário para a construção das redes de segurança social, em outra ponta, da mostra do desespero: "trabalhe e faça parte (da Família, do Estado, da Empresa) porque sem eles você, certamente, estará frito". 

O problema, naturalmente, não é criar meios para dar educação e saúde para populações imensas, mas a forma como isso foi criado, de forma tão pueril que acabou perdido e solapado pela reação neoliberal. E esperança não serve nem para as lutas que se iniciam: é preciso de um virtuosismo renascentista como o de Negri -- ou da promessa descumprida do evento Lula, de ser um governo de esperança, quando foi de alegria, apesar de alguma poluição do negativo aqui e acolá.  

O despotismo pós-moderno não precisa da força do welfare ou do workfare, tampouco da ameaça do uso de forças militares, ele apenas e tão somente negocia a ansiedade alheia frente ao futuro construído, faz apostas sobre as reservas de tempo, as expectativas e as especulações: o risco, aquilo que há de mais próprio e belo na vida humana, torna-se problema, é preciso depositar nossa liberdade para os soberano por conta do risco.

Olhando a metrópole, as cidades-mãe, vemos algo parecido no Rio: como Paes venceu? Primeiro, porque ele é um aspecto próprio aos paradoxos internos do Lulismo, capturador e capturado, depois porque ele não pertence a um grupo de políticos conservadores que irá para o confronto, como o velho Serra e Kassab, mas sim negocia: ao negociar, nega o ócio, institui um regime de obrigações que, aqui, diz respeito ao tempo esgarçado dos dias atuais, e da pouca reserva de tempo dos removidos nas comunidades frente a uma proposta de quem detém uma reserva quase imensa de tempo, o poder público. Por que não aceitar o cheque e ir embora nas minhas condições? 

Foram os removidos ou removíveis que elegeram Paes, enquanto muitos dos que lutaram por eles ficaram no campo eleitoral oposto -- que pouco tinha a oferecer frente ao Um Rio, justamente, por não se aliar ao monstro da classe sem nome. O Rio está mais seguro, afinal. O confronto precisa ser, antes, na concepção de tempo: ao negócio, opôr o ócio. É preciso tornar o tempo não suficiente (segurança), mas devir-abundante. Uma esquerda precisa avança mais e mais no sentido de dizer "ou é para todos ou é para ninguém", na alegria carnavalesca disso, do que "ou tudo ou nada" ou apostar no regime moral da denúncia: "as premissas estão postas, queremos segurança, a falta está introjetada desse modo, eu irei ser complacente com as milícias sim, a minha adesão é funcional, não moral, nem cambiável pela moral".

Em São Paulo, onde o tempo seco da gestão da vida já está afirmado há tempos, na forma como a polícia planeja a política de habitação e as imobiliárias executam a política de segurança pública,  o que está em jogo? Haddad não lidera simplesmente por conta do PT, pela sua campanha, embora ambos catalisem bastante apoio, em contraste com o foi recorrente ao longo do anos 00 com Marta, isso não é suficiente por si só: o que interessa ali, mais do que a presença de corpo e alma de Lula, é o movimento espontâneo da multidão das periferias, nas universidades ou mesmo fora de tudo isso, andando nas ruas; não é Haddad que puxa o movimento, é o movimento que potencializa Haddad e é esse o real evento Haddad: ele está muito além das questões internas do PT, das disputas e das certas poluições burocráticas.

A questão não é que Haddad pouco importe, ele importa, mas importa por nada fazer, por não agir na obstrução dos setores vivos que fazem o partido, dentro e em torno dele. Há tempos não se via algo assim em São Paulo, mas certamente nunca se viu desse modo: é o devir-Brasil de São Paulo, ainda que confrontando-se com o tornar-se Brasil, das disputas, do equilíbrio de poder na base e, é claro, da fome do próprio capital paulistano: sim, o capital paulistano, que sabe muito bem que é o governo federal quem tem dinheiro e disposição para investir na cidade, uma vez que Alckmin, no governo do estado, não tem nenhum nem outro, seja pelo seu plano pouco funcional de economizar em tempos de crise -- o que vai custar muitas prefeituras no interior -- e sua antipatia aguda por Serra.

Como equilibrar, a fome do capital que financia campanhas e controla do mundo e a  efetuação das demandas sociais? Foi ser capaz de dar esse nó que permitiu a Lula levar a cabo boa parte das conquistas dos último anos, maquiavelicamente: aliar-se intensivamente com a classe sem nome, sabendo que é você quem está em função dela e que sua força, por sinal, é imensa. São os paradoxos e o jogo complexo de tudo isso que, inclusive, explica Paes no Rio, conservador, capturado e ao mesmo tempo capturante, face direita do Lulismo que não deixa de abrir-se à esquerdização de fora, ao contra-déspota que vem de fora.

O novo biopoder não se volta para organizar o medo da morte, mas o desespero em vida: estar sem tempo, embora a reserva dele não seja nada menos do que anestésico e cancerígeno. Remete o centro da nossa vida para trás, ou para frente, nos prendendo em um ciclo de remorso e angústias, ele se infiltra, o que exige que nos infiltremos: é mais fácil derrota-lo o abraçando e tirando fotos com ele do que o denunciando. Esse biopoder não precisa da nação, mas da pólis, da metropólis global, pequena mônada onde vive um mundo inteiro -- e como diria Clarisse, citada por Negri no Multidão: "O mundo inteiro terá de se transformar para eu caber nele". O nosso mundo é a metrópole, locus mais global do que o próprio globo; nada mais global do que a pautas meramente municipais que pautam, muito mais do que as nacionais, as presentes eleições.

A biopolítica exige um estado de exceção constitutivo, organizar o desejo de vida, de viver intensamente o aqui-agora porque não se ama no amanhã, só no hoje. A emergência dos que foram feito submersos. Se o problema é tempo, que ele seja abraçado e desembaraçado. O novo Brasil entrará em um novo momento nas próximas semanas: a crise mundial, o STF como tribunal de exceção e a fome do capital de um lado, a classe sem nome em sua fúria monstruosa de cupidez do outro.


  

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

São Paulo, Haddad, Serra: a Batalha e a Metropóle

Recomeçou esta semana a campanha municipal, agora é a ora e a vez do 2º turno. Em São Paulo, alinham-se na disputa Fernando Haddad (PT) e José Serra (PSDB), representantes das duas forças que disputam, há cinco eleições, a cadeira presidencial -- cada qual capitaneando um lado do espectro político. São Paulo é a maior metrópole do país. E é grande sobretudo onde é pequena, onde é minoritária. Por que São Paulo? Certamente não porque é o umbigo do mundo ou muito menos do Brasil, mas sim porque protagonizou a reação ao projeto que governa o país há anos, nem sempre por seus defeitos.

Uma aliança perfeita: a direção das grandes corporações de mídia e seu jogo panfletário, a burguesia local e seus pruridos -- e setores médios que se prestaram -- o financismo -- na forma da especulação imobiliária, a dívida sem fim para poder habitar -- o jogo oportunista de setores centristas, "social-democráticos", dispostos a tudo para chegar ao poder no governo federal. Oito anos depois e o resultado é que São Paulo, sem risco de ser parcial, desumanizou-se. 

As conquistas dos anos Lula, que bem ou mal chegaram no aspecto macro, não adentraram à vida das pessoas -- ao lado de fora de casa, como diria Haddad -- não somente por falta de um governo que se abrisse para articular políticas públicas em parceria com o governo federal, mas também, e sobretudo, pelo fato dele se fechar transformando São Paulo numa trincheira de uma guerra contra um inimigo que nunca existiu: mas Kassab, enquanto vê sua gestão liquefazer, muda de lado, racha a direita nacional, se fisiologiza -- só não poderia dizer um não ao seu padrinho político, José Serra, quando ele precisou se candidatar.

As UPP's e as remoções no Rio, metrópole-laboratório do governo federal -- embora nas mãos de aliados e não de correligionários propriamente ditos -- são dignas de críticas, mas precisam ser vistas nas suas ambivalências. Favelas pegando fogo durante a calada da noite, não, é um ato puramente inequívoco. Criticar Serra não é paranoia, tampouco exime o PT, municipal ou nacional, de nenhuma crítica, mas isso não quer dizer que ele não tenha a enorme responsabilidade por Kassab e tudo mais que veio junto -- que mais do que empurrar com a barriga os problemas da cidade, instituiu um vazio de ideias uma geleia geral. O que houve com São Paulo durante esses oito anos?

No 1º turno, enquanto o julgamento do mensalão transcorria como espetáculo do moralismo nacional, uma fogueira da inquisição da sociedade do espetáculo -- coincidentemente ocorrida durante as eleições -- Russomanno ascendia com um misto de demagogia religiosa, discurso da segurança pública e quetais. Se Maluf foi assunto das eleições por conta da famosa foto com Lula e Haddad, o malufismo mesmo estava lá. E parecia não arrefecer mesmo com o baixo tempo de TV e recursos dele. Serra caia e depois disputava voto a voto com Haddad para passar ao 2º turno.

Pesquisas a postos, a ascensão de Haddad foi subestimada, assim como sua chegada na hora H, Serra idem e a queda de Russomanno -- cuja figura contestabilíssima começou a ser desconstruída pela própria mídia conservadora, por tirar votos também de Serra -- fim de jogo: Russomanno foi, ainda, bem votado na periferia, quase não teve votos no centro expandido, Chalita apareceu em um quarto lugar constante por todo o município e Haddad venceu na periferia enquanto Serra venceu nos bairros ricos. 

A geografia de São Paulo é a perfeita ilustração da luta de classes e do êxito da burguesia em varrer seus pobres pra longe, embora dependa deles diariamente --  pobres que moram nas bordas e precisam vir de todos os lados para trabalhar no centro expandido todo dia (concentração de gente na periferia, concentração de empregos no centro); daí que a crítica ao modelo urbano-econômico de São Paulo não ser de natureza moral, mas sim pragmática-funcional: não, desse jeito, São Paulo não funciona mesmo, poluída, engarrafada e insuportável.

Se Serra teve menos votos que Kassab na periferia é porque o terceiro candidato, Russomanno, mantinha o apelo popular lá, embora tivesse poucos votos no centro expandido -- onde Serra foi mais bem votado do que Kassab --, caso exatamente oposto ao de Alckmin, terceiro mais votado em 2008. Haddad, por sua vez, foi mais bem votado do que Marta no centro expandido, mas teve menos votos na periferia justamente pelo fator Russomanno.

Haddad é a construção do Novo Brasil em São Paulo, um tornar-se novo Brasil da pauliceia por meio do Lulismo, nas suas ambivalências e, sim, sua potência. Serra é o tornar São Paulo o Brasil -- trazer São Paulo, não a intensidade da São Paulo viva, mas fazer, forçosamente, do Brasil aquilo aquilo que São Paulo é, ou está. 

Nas pesquisas de 2º turno, Haddad iniciou na frente, entre dez a onze pontos percentuais válidos, de Serra. Nada de novo sob o Sol: candidato mais rejeitado entre todos, e com o eleitorado de Russomanno, pelo menos aquele que restou com o candidato do PRB até o dia da votação do 1º turno, mais propenso a votar no candidato petista, Serra não poderia registrar nada diferente que não isso. 

Nada que não motivasse um ataque duro. E novamente Serra apela para o discurso moral e para a violência oportunista com as minorias ao se usar do kit homofobia contra Haddad -- projeto educacional do MEC contra o ódio aos homossexuais, mas barrado pela bancada da direita evangélica (e não bancada evangélica, não vamos colocar todos os evangélicos na mesma canoa, por favor). Irresponsabilidade que não foi poupada nem mesmo por um editorial da Folha, serrista de tempos e de carteirinha. 

Uma minoria inteira exposta por oportunismo eleitoral, por uma pesquisa desagradável -- embora o governo Serra tem distribuído um material parecido ao kit anti-homofobia nas escolas públicas de seu estado, o que torna tudo mais cruel do que seria preconceito puro. Nada muito diferente de 2010, quando valeu literalmente tudo para impedir a ascensão de Dilma.

E de lá para cá, o debate político tem sido pautado por superstições morais: o preconceito do o tom da chantagem parlamentar no Congresso, e fora dele, e o governo petista não sabe o que fazer, se responde, se contemporiza. São absolutamente injustas as críticas de homofobia por parte de Dilma, mas é certo que o governo atual tem medo -- quando precisávamos do contrário. E o PSDB surfa na onda contra o PT, o que, pelo visto, não tem lhe ajudado a vencer eleições, mas prejudica o rival e torna o jogo político um tanto pior.

Nada está decidido em São Paulo. É possível que Serra eleve o tom e atire para todos os lados. Precisa sobreviver na política. Não sabemos quem mais, depois dos homossexuais, irá se tornar refém eleitoral. Haddad precisará ser preciso e duro sem perder a ternura -- tem a seu favor uma rejeição menor e a capacidade disputar votos na periferia próxima, nos bairros que são limítrofes, por fora, com o centro expandido, onde venceu em alguns e perdeu, só por conta de Russomanno, em outros.

Há muito o que discutir, há muito o que fazer. Não adianta supor que isso é uma batalha do bem contra o mal, onde Haddad seria o mocinho e Serra o bandido, mas também não é qualquer jogo onde ambos são o mesmo, ou niveláveis pela mesma régua: o longo governo Serra/Kassab não está em crise, ele é a crise, mas não a crise para os especuladores do setor imobiliário e outros parasitas tantos, mas sim a de nós outros, os cidadãos comuns que tentam, e até precisam, habitar e viver a cidade, incorporando e sendo incorporados. 

Portanto, não é hora, nem o caso, de não tomar partido, é preciso fazê-lo e tudo mais: tomar partido, tomar o partido, lutar pela desinterdição afetiva à qual estamos sujeitos há muito. Pode ser ingênuo, mas é, e precisa ser, corajoso.

Atualização de 18/10 às 03:05: Leiam Algo de Novo na Geografia do Voto Paulistano? de Raquel Rolnik, um post excepcional sobre distribuição do voto nos espaços físicos da capital. E também, Haddad amplia mais ainda a diferença de Serra no Ibope: de 11 para 16 pontos.









quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Quem Venceu o 1º Turno das Municipais 2012?

O PT. Sim, o PT. Por quê? É muito simples: porque ele teve o maior número de votos -- e haverá quem coloque alguma ressalva, mas o fato é que ele ganhou mesmo. Ele não só cresceu como também passou o número de votos do PMDB, partido mais votado no último pleito municipal. É possível dizer que o PMDB foi o vitorioso pelo número de prefeituras conquistado, ainda acima de mil -- uma façanha impressionante -- no entanto, graças a enorme diferença entre a população dos municípios brasileiros -- que incluem desde metrópoles gigantescas como São Paulo e Rio a cidadezinhas do interior -- é fato que "quantidade de prefeituras" não é o melhor critério para determinar quem venceu, uma vez que não ilustra quem tem realmente mais força em nível nacional. Na real, o PT teve 16,8% dos votos, o PMDB 16,2%, enquanto o PSDB teve 13,5% e o PSB 8,6%. 

Atrás de ambos, resta o PSDB, ainda segundo em número em número de prefeituras, mas terceiro em votos: a maior legenda de oposição, entretanto, viu seu número de votos válidos e de prefeituras caírem. DEM, depois do racha do PSD, e PPS não apresentam melhor sorte. Aliás, o conservador PSD, governista de última hora estreou bem, mas não conseguiu ser a quarta força nacional como prometia, perdendo em número de votos para o PSB, embora tenha cravado o quarto maior número de prefeituras -- em geral, prefeituras interioranas. O PSB tornou-se, sem dúvida, a quarta força brasileira e foi, inclusive, uma das maiores causas de derrota do PT nas cidades importantes nas quais rachou com o aliado: Belo Horizonte e Recife são belos exemplos disso, em São Paulo, por sua vez, eles estão juntos na chapa de Fernando Haddad. Revés mesmo, ele só tomou em Curitiba, onde esteve coligado com o PSDB do governador Beto Richa.

No balanço de forças entre grandes nomes, os governadores que saíram mais fortalecidos da conversa foram Sérgio Cabral (PMDB-RJ), Aécio Neves (PSDB-MG) e, sobretudo, Eduardo Campos (PSB-PE), todos responsáveis pela eleição, em 1º turno, de seus candidatos nas capitais. O personagem político, para variar, foi o ex-presidente Lula, diretamente empenhado no atual pleito e grande responsável pela manutenção do partido na disputa em Fortaleza, Salvador e São Paulo -- sobretudo no último caso, onde seu empenho pessoal foi decisivo em uma eleição dramática na qual ele alçou o jovem Fernando Haddad para o 2º turno. Os maiores derrotados foram os governadores Beto Richa (PSDB-PR) e, talvez, Geraldo Alckmin (PSDB-SP) -- sendo que o último sequer conseguiu dar a linha da eleição na capital de seu estado e, ainda, perdeu uma eleição importante no seu reduto, o Vale do Paraíba (leste do estado), onde São José dos Campos passou para o comando petista.

A figura chave, para 2014, será, em virtude de tudo isso, Eduardo Campos: o governador pernambucano cresceu bastante, tornou a política nordestina, antes bipartida entre as velhas  oligarquias aliadas ao projeto neoliberal (a aliança PSDB-PFL/DEM) e a frente popular (PT-PSB-PC do B), em um tripé no qual seu partido ocupa o centro e, agora, será o objeto de disputa para as próximas eleições gerais. A questão é simples: Campos cresceu muito e o PT terá dificuldades para realoca-lo em uma posição superior, até porque ele não pode preterir o PMDB; por outro lado, uma aliança de Campos com o PSDB (possível no caso de Aécio ser o candidato) faria com que a oposição passasse a ter chances de vitória por "abrir o nordeste" -- sem isso, Dilma poderá se eleger em 2014 talvez com um pé nas costas. O PSB, para Dilma, tornou-se algo parecido com o que o PFL foi para FHC nos anos 90, embora menor e cuja integração à base seja, paradoxalmente, mais complexa por sua natureza centrista.

No campo da esquerda, o PSOL cresceu em número de votos, fez um prefeito, uma campanha importante no Rio e dobrou seu número de vereadores. Aliás, é possível que seja a primeira vez, desde 2006, que o PSOL saia maior de um pleito do que quando entrou. Ironicamente, ele só é o décimo-terceiro partido do Brasil e está bem distante de pautar qualquer coisa. PSTU, PCB e PCO continuam atrofiados e sem perspectiva. O PT cresceu como faz em todas as eleições municipais desde que nasceu. O voto caminhou mais para a esquerda em 2012, embora o clima da política institucional e partidária tenha se acomodado cada vez mais ao centro e na contemporização. A oposição que cresceu é a gerencial e pragmática, não a liberal e ostensiva. São mostras do que vem em 2014, quando um discurso liberal arcaico tende a perder espaço e há uma demanda clara pela intensificação de uma agenda de esquerda -- ainda mais em um momento no qual os pilares do capitalismo estão abalados e a questão social emerge no Brasil. 

A única oposição que cresceu, em suma, é aquela que está à esquerda do governo petista, mas o fez justamente onde o PT vai mal ou esteve engessado por alianças, não raro, em nome da governabilidade nacional. O PSDB, apesar da campanha calcada no julgamento do Mensalão regrediu em número de votos, inclusive em importantes redutos eleitorais seus pelo estado de São Paulo: é fato que existe a possibilidade de reverter o jogo no 2º turno, mas fora Santos, onde os tucanos registraram uma inédita e boa vitória, ter conseguido ir, por muita sorte, para o 2º turno em um reduto como Jundiaí, é horrível -- fora a derrota em 1º turno em São José dos Campos e não ter conseguido levar a eleição em Sorocaba, mesmo  disputando contra um ex-prefeito de índole duvidosa agora no PMDB.

Em outras palavras, a política nacional, fraturada em três dezenas de partidos, muitos dos quais meramente fisiológicos, segue muito longe de estar resolvida em torno deste ou daquele programa: os principais partidos são apenas e tão somente aqueles que conseguem agenciar mais aliados e capitanear algum campo do espectro político nacional. Portanto, a vitória petista é apenas e tão somente relativa, como é relativa a importância do PMDB. O que não muda a situação de crise do PSDB, que amarga a ilusão de que uma agenda meramente moralista irá mudar suas seguidas quedas nas urnas. A cobertura midiática, por sua vez, peca novamente em assumir-se partidária, ecoar teses antipetistas quando poderia, mesmo tendo sua perspectiva, fazer uma crítica geral ao sistema, este sim, antes de qualquer coisa, a fonte dos demais problemas: em vez de agir como torquemada, poderia catalisar o sentimento favorável uma reforma política, mesmo dentro dos limites de uma visão liberal.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Segundo Turno, Afinal

Batalha pelo simbólico em PoA: o Tatu da Coca e a privatização da cidade
As eleições municipais apresentaram poucas surpresas. Em geral, gestões bem-avaliadas venceram em primeiro turno com certa tranquilidade, o que nem sempre é positivo: é o gerencialismo que domina aqui e acolá, um certo comodismo mórbido com melhoras inerciais, dificilmente acompanhadas de qualquer perspectiva de urbanismo mais sofisticada, de direito à cidade. A crítica da esquerda, no entanto, precisa ir mais longe; de fato, esse gerencialismo urbano (que é conservador, mas não levanta bandeira nem deixa de incorporar certos maneirismos de esquerda) melhora em alguns aspectos a vida das pessoas, o desafio, portanto, é mostrar qual é a alternativa, construir um programa bem estruturado com tudo que se imagina de uma cidade liberta e viva e um sistema de propaganda suficiente -- é preciso atacar o tatu da coca-cola, mas também é preciso ir além. 

O consenso em torno de Fortunati, Lacerda, Paes foi exatamente isso. Só mudou, nos lugares  onde algo deu errado, como em Salvador e São Paulo -- onde talvez os projetos (ou dejetos, conforme se veja) que governaram a prefeitura nos últimos quatro anos precisavam, pela tensão de forças em seu interior, caminhar mais à direita. Justamente será em São Paulo e Salvador onde a velha oposição ao governo Lula irá confrontar o PT, onde o cenário está mais polarizado do que nas brigas quase consensuais entre facetas da base governista (e, por que não, do próprio Lulismo). ACM Neto é uma ameaça importante, apesar de isolado. Serra e Haddad -- que é ele, mas é Lula como poucos -- protagonizarão outro confronto importantíssimo. Em Belo Horizonte, é errado pensar numa vitória da velha oposição, mas de outra coisa: do tipo de oposição que Aécio Neves sonha em implementar, a despeito do PSDB paulista, que é a alternativa gerencial em parceria com o PSB de Eduardo Campos (isto é, dilmismo completamente sem esquerda, um horror sem dúvida) -- como também é igualmente errado, pelos mesmos motivos, pensar que o que houve no Recife, com a ascensão do PSB sobre o PT, não seja preocupante.

Serra e Haddad é confronto chave? Sim, é, aliás menos porque São Paulo é a maior cidade do Brasil e mais pelo singelo motivo que uma derrota de Serra é uma vitória de Aécio, e altera o panorama para 2014; derrotado, dificilmente a oposição ao PT nas próximas eleições gerais passará pelo PSDB paulista, o que muda substancialmente o jogo. Será Aécio o adversário e ponto final, a menos que tramem algo sórdido demais contra o governador mineiro. No plano municipal propriamente dito, Serra manteve o apoio entre as classes médias tradicionais do centro expandido, conquistou boa votação nos bairros da periferia próxima -- zona norte, zona leste --, mas ainda registra uma altíssima rejeição do público local pelo desastroso rumo da gestão Kassab, que é de responsabilidade sua -- e com a qual se mantém coligado via PSD. Haddad, por sua vez, é uma aposta de renovação do Lulismo por dentro. Um quadro jovem, com chances intelectuais e capacidade de atuação, em relação ao qual não resta dúvida que Lula espera muito dele, do contrário o teria abandonado em algum momento dessa eleição -- e, tão logo debateremos o Lulismo, mas se ele existe (e suspeitamos que sim), Haddad é uma possibilidade de sua manutenção e resolução à esquerda pelo seu histórico.

sábado, 6 de outubro de 2012

O Xadrez das Municipais e o Que Está em Jogo

The Chess Players --Schwartz (1958) -- daqui
Amanhã, teremos a votação do primeiro turno das Eleições municipais. Apesar de toda a ritualística partidária e tentativas de nacionalização da disputa, elas decidem-se nos próprios municípios. O fator nacional e partidário, aliás, diminui brutalmente de importância conforme diminui o município -- e, assim, vemos eleições de partidos muito pequenos, alianças exóticas mesmo pelos padrões heterodoxos do jogo político nacional. Em 2002, com poucas prefeituras, embora bem localizadas, o PT ganhou as eleições presidenciais da forma mais consistente até hoje, isto é, com uma distribuição geográfica mais homogênea do voto. Em 2004 e 2008, apesar da enorme popularidade do governo Lula, as vitórias do partido nas municipais passaram longe de ser acachapantes -- por outro lado, o domínio do PMDB nos pequenos municípios, nem por isso, o cacifa como partido capaz de lançar uma candidatura viável no plano majoritário federal ou mesmo na maioria dos estados. Agora, em 2012, Dilma é popularíssima, Lula mantém-se como grande líder político nacional, mas nem por isso o PT vencerá de forma arrasadora, tampouco o marketing negativo da campanha midiática sobre o mensalão o conduzirá a uma derrota grandiosa. É claro que certos balanços de poder nas grandes capitais influirá ao longo dos próximos dois anos no plano federal, é preciso atentar para isso.

Nem PT, nem PSDB, contudo, vão bem, embora os dois apresentem, ainda, algum destaque nos municípios com mais de 150 mil eleitores: nas grandes capitais eles estão longe de monopolizar as disputas na forma da polarização que se repetiu, vejamos só, nos últimos cinco pleitos presidenciais. No lugar dos dois partidos que deram as cartas da política brasileira nos últimos anos, uma miríade de partidos médios e nanicos (como PRB em São Paulo ou PSC em Curitiba) surge com possibilidades reais de eleger prefeitos nas capitais. Mas não é errado dizer que o PSB de Eduardo Campos, governador pernambucano e aliado do Lulismo,  rume para vitórias importantes saia do pleito fortalecido, inclusive com alianças com o PSDB (Curitiba, Belo Horizonte, Campinas etc) -- com um discurso gerencialista e pragmático, mas escapando ao elitismo que não à toa serve de rótulo ao PSDB, Campos fez seu partido nadar a braçadas, apostou alto e sua posição junto ao governo federal terá de ser renegociada para o alto, queira Dilma ou não, ainda mais depois do poder que ele passará a dispor no Nordeste, região fundamental para o PT no balanço de forças nacional.

Governadores bem avaliados -- como o próprio Campos, ou Sérgio Cabral no Rio -- caminham a passos largos para eleger correligionários seus nas capitais, mas isso não é regra geral e absoluta: governos razoavelmente estruturados como o de Tarso Genro (PT-RS) ou de Beto Richa (PSDB-PR) não parecem encontrar a mesma facilidade em disputas particularmente confusas. Existe uma fragmentação do eleitorado, uma dispersão radical num momento no qual quase todos os partidos são situação no plano federal, o que cria um impasse na disputa por vagas e espaços -- e deságua, afinal, nas disputas municipais.No estado de São Paulo, bunker tucano, os PSDB está longe da glória de outrora nas cidades acima de 400 mil habitantes. Se os tucanos conquistarão a petista Osasco, possivelmente em primeiro tuno, os petistas darão o troco, nos mesmos termos, em São José dos Campos, terra do desastre do Pinheirinho -- aliás, São José dos Campos que é a principal cidade do Vale do Paraíba, leste do estado, e reduto eleitoral do governador Geraldo Alckmin, que acabou, ainda, sendo suplantado em São Paulo capital com a entrada de Serra no jogo. 

Na capital paulista, de onde escrevemos afinal, a entrada no jogo do desconhecido Russomanno -- que cresceu muito, se manteve durante muito tempo e só está cando agora -- embaralhou o jogo por completo, resultando em um empate técnico entre ele próprio, José Serra e Fernando Haddad às portas da votação. Pela primeira vez desde 2004, a política paulistana voltou a ser dividida em um tripé entre a direita -- não liberal, alojada em uma estrutura partidária fraca e dispensável  e populista -- o centro, ou centro-direita, gerencial dos tucanos e a esquerda petista. Serra carrega o ônus de ser, afinal, o candidato de situação vindo na esteira de uma desgoverno como o de Kassab, mas tem seu eleitorado sólido que é precisamente aquele de classe média, refratário ao petismo e ao direitismo populista. Enquanto isso, a campanha de Haddad se viu obrigada a marchar em um terreno pantanoso, pois embora com experiência na administração pública ele é um estreante em eleições e teve de entrar em cena lutando contra a campanha midiática antipetista, o cancelamento de dois debates televisivos pelas duas principais redes de televisão -- Globo e Record, ambas apoiadoras de seus adversários -- e uma campanha rasteira da Igreja Universal e de políticos evangélicos que se usaram da estrutura, e de suas redes sobretudo na periferia, para eleger Russomanno. Não é fácil saber o que ocorrerá, mas a crise da cidade, solapada pela especulação imobiliária, extremamente poluída e com a vida cultural interdita e privatizada, apontariam para um governo difícil para Haddad, mas um aprofundamento da crise com Serra e, sobretudo, Russomanno. 

No Rio, a aliança PMDB-PT encabeçada por Eduardo Paes levará fácil, em primeiro turno, com Marcelo Freixo do PSOL em segundo, o motivo, para além de questões eleitorais, é simples: o Rio é, enquanto cidade, o laboratório do Lulismo, dos investimentos e do êxito de certas políticas, ainda que o PT local seja burocratizado e pouco operante -- salvo alguns setores --, o que importa é o PT nacional e o governo federal, o que produz uma aliança fortíssima dentro de um contexto de melhora das condições de vida -- isso esvazia a contestação de Freixo, em uma cidade cujo histórico de prefeitos não é bom, é difícil pensar trocar um governo associado com um bom momento da cidade, a redução da violência, que conseguiu ser sede das próximas Olimpíadas e, ainda, com trânsito pleno junto a um governo federal popular, ainda mais cidade. O PSOL sai, contudo, fortalecido do processo, ainda que para conseguir êxito precise se aliar com a classe sem nome que ascende, saindo do mitologema da "sociedade civil organizada". Em Minas, mesmo que se veja como positivo o rompimento da aliança de Pimentel com Aécio Neves em prol de Márcio Lacerda (PSB), é preciso que a candidatura de Patrus Ananias (PT) cresça a ponto de levar o pleito para o segundo turno, do contrário, vai ser uma derrota importante. O quadro de Porto Alegre, com um desenho em forma de geleia geral destinado a reeleger Jorge Fortunati (PDT) já explode da pior maneira

Os rumos do pós-mensalão, a crise mundial e a determinadas nuances da composição de forças que sai dessas eleições municipais -- São Paulo e o Nordeste são chave nessa história toda --, mas fica claro que apesar da sua popularidade, do aparente sucesso da intervenção de Dilma no plano macroeconômico -- mitigando os efeitos de uma crise mundial que se abate sobre o país desde 2008, agravando-se em 2011, mas cujas resposta dada este ano fez a economia se recuperar no presente trimestre -- sem um giro político politizante não estaremos tratando nem do risco de Dilma continuar no poder pelos próximos seis anos, supondo uma reeleição, de forma burocratizada, promovendo um termidor planejado (e, por isso, talvez igualmente mitigado) do Lulismo, mas sim do próprio termidor do Lulismo com impactos de reversão claros: se o Bolsa Família ou as políticas de distribuição de renda e emprego parecem um consenso, sem politização e com crise, isso pode desmanchar no ar. Enfim, é a política, e não a economia, a resposta.

P.S.: O Descurvo reitera novamente seu apoio a candidatura de Fernando Haddad (13) em São Paulo e a Gabriel Medina (13.321) em São Paulo, o primeiro por seu histórico e por ser a única candidatura aceitável na capital, o segundo por representar uma renovação importante no PT local.


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

5 Teses sobre a Exceção à luz do Massacre do Carandiru


Ontem, o massacre do Carandiru -- no qual a Polícia Militar de São Paulo, sob as ordens do governo Fleury, ceifou as vidas de 111 detentos desarmados -- completou 20 anos. Em outra ocasião já anotamos alguns pontos sobre o que se passou ali, mas é necessário levar em consideração alguns pontos para a reflexão:

1. O Estado, seja ele autoritário ou "de direito", é plenamente capaz de tomar decisões de exceção, isto é, suspender direitos e garantias e, usando-se da capacidade de proferir a palavra final, dizer não à vida. Não é que ele "deva" fazer isso, mas isso não é uma questão abstrata, ela é bastante real: ele pode, embora seja terrível saber disso. Uma vez posto em xeque, o Estado revela sua face oculta e faz uso de qualquer meio para se manter. A decisão de matar os presos do Carandiru em plena vigência da democracia e de sua constituição garantista é uma prova desse assombro.

2. O dispositivo de eliminação total é pressuposto à forma de organização estatal. Um Estado requer súditos, escravos no sentido nietzscheano, não mortos, no entanto, ele não hesitará em matar -- e, eventualmente, se autodestruir no processo -- caso sua matriz de exercício do poder e da autoridade seja comprometida de forma crítica. A eliminação de militantes de esquerda na ditadura, o massacre de Canudos pela República nascente, a caça às bruxas de Vargas são provas disso -- bem como Eldorado dos Carajás ou o Carandiru.

3. A decisão de exceção, bem como suas consequências, não é mero ato ilícito penal. Se fosse, os crimes da ditadura militar poderiam ser equiparados a um homicídio qualquer cometido entre particulares. Exceção não gera direitos nem punição, ele escapa à esfera de cognição. Não adianta procurar na Lei o que se passou ali, aplicar as regras e os procedimentos de direito penal conhecidos, dizer que prescreveu ou que não há enquadramento possível: o poder soberano quando age, naturalmente, o faz sobre a Lei que ele próprio engendra na indeterminação dos conceitos jurídicos e nas brechas possíveis.
4. Não é o caso de celebrarmos o Tribunal de Nuremberg, mas tampouco é questão de dizer que ele é o mesmo que os tribunais de exceção do Nazismo -- ou do Stalinismo que, no entanto, passou incólume à Segunda Guerra. Ele foi uma resposta vazia ao vazio do Estado moderno, uma vez que o Poder Soberano pode cometer violências plenamente efetivas e até "legais" embora não legítimas e não capturáveis, pois é ele mesmo que garante a Lei e tem meios para passar por cima dela: o erro está em responder nos mesmos termos judiciais e punitivistas, não em condenar algo que realmente aconteceu, embora a ficcionalidade jurídica não o alcance -- pela própria condição de existência de tais decisões. Dizer que não podemos avaliar é o mesmo que transformar tudo numa cruel ficção pueril: dei o golpe e me perdoei, direta ou indiretamente.
5. Não há contrapeso ou balanceamento de poder suficiente para frear isso. Por dentro da ordem criada não há como deter a ordem criadora que lhe é anterior -- logicamente -- e que resolve agir a despeito do que criou. A disputa teológica sobre um deus que ajusta a criação sem intervir e um outro que o faz o tempo todo é inócua, pois ele pode intervir e é isso que nos interessa, a bem de nossas gargantas. Se o Estado vive de medo, a tristeza por questões futuras, ao tornar a  sua permanente ameaça de violência em violência real, ele desfaz o medo por não haver mais futuro que justifique o medo ou a esperança, de tal forma não é espantoso que o PCC tenha surgido na esteira desse horror, tornando as coisas mais complexas ainda.  Só a rebeldia, no modo de insurreição deslegitimadora do que não tem legitimidade mas assume tal forma, pode frear esse mecanismo infernal. A efetividade real da força da multidão livre oposta à efetividade imaginária do Estado.