terça-feira, 19 de março de 2013

A América Latina e a Te(le)ologia da Ditadura

Hot Pursuit -- Klee
Cena 1, o cardeal Bergoglio é aclamado como o Papa Francisco I, primeiro Francisco, primeiro latino-americano, primeiro jesuíta a liderar mundialmente o catolicismo romano -- a despeito de sua obscura participação na ditadura argentina e, também, de uma curiosa articulação de um cardeal mezzo-conservador brasileiro, Dom Cláudio Hummes, que, no entanto se opôs à ditadura em nosso país. Cena 2, no Brasil, depois de quase quatro décadas, a certidão de óbito do jornalista Vlado Herzog foi, finalmente, retificada: só agora, o outro judeu que morreu para nos salvar, não é mais legalmente suicida, mas sim vítima de tortura cometida pelo Estado local, sob a ditadura militar. Ainda no Brasil, uma cerimônia que lotou a Catedral da Sé aclamava Alexandre Vannucchi, estudante morto há quarenta anos pela ditadura.

"Ditadura" é um termo onipresente na América Latina. Com um uso muito diferente do qual ela tinha em Roma, quando era o instituto jurídico que designava o governo temporário e especial em tempos de guerra -- com duração, atribuições e controles (pelo Senado) devidamente previstos, no entanto. Marx empregou "ditadura" em "ditadura revolucionária do proletariado" no sentido romano. Carl Schmitt, jurista do Nazismo, não: católico por tradição, eugenista e platônico ao extremo, ele redefiniu o termo para usa-lo como involucro do neo-absolutismo que ele engendrou e, afinal de contas, tomou forma histórica no regime nazista. Ditadura passou a ser sinônimo de tirania. Schmitt popularizou sua definição do termo como pretendia, mas não do jeito que desejava. Na América Latina, tornou-se uma entidade, um espectro que nos torturou, matou, escondeu nossos corpos, roubou nossas crianças.

Países latino-americanos deram passos fortes em direção do resgate de sua História. Certamente mais do que o Brasil. Grosso modo, Argentina e Uruguai são grandes exemplos. O Chile também. A Argentina, aliás, teve a mais implacável ditadura do continente e, lembremos, seus tenazes movimentos de contestação -- como as mães e avós da Praça de Maio -- pouco puderam contar com a piedade dos religiosos locais, incluso o atual Papa, embora tenham contado com a dos brasileiros. No Brasil, a ditadura não foi nada branda, mas esteve longe da violência dos seus vizinhos -- e quando se aproximou, assistiu à oposição da mesma Igreja que lhe sustentou inicialmente. Apesar disso , a reconstrução da memória histórica aqui é mais difícil do que, por exemplo, no Chile  pós-Pinochet ou na Argentina pós-Videla.

O processo hispano-americano de reconstrução da memória e da verdade, no entanto, está próximo de ser abortado. Até que ponto Francisco I deseja ver isso continuar em curso? No Brasil, o que será do que já começou devagar? Se "ditadura" ganhou outro sentido, ou mesmo teve seu sentido elastecido e resultou na tirania, o catolicismo latino-americano não é menos ambivalente: ele esteve a favor e contra as ditaduras, o que parece paradoxal quando se esquece que o governo e a lei dos homens é apenas secundária em relação ao Plano; portanto existe uma postura ortodoxa de ambas "as partes". A aparente águia bifronte do atual papado -- entre as denúncias de Verbitsky e as loas de Boff, entre Bergóglio e Dom Cláudio -- resolve-se num grifo glorioso. Como a dualidade entre ditadura e democracia na América Latina se resolve na unidade e continuidade substancial do Estado como representação política do Deus bíblico.

É errado pensar em teologia-política como a política desenvolvida pela Igreja à margem dos Estados. Isso chama-se, sem sombra de dúvida, política eclesiástica. A função real da Igreja como forma Estado, complementando-o como dispositivo desinvestidor de desejo -- sendo Estado sem sê-lo propriamente -- não, isso é um legítimo papel o teológico-político. Mas não é que o teológico-político seja regra, seja  a realidade catastrófica de, por exemplo, uma República Democrática na qual Sarney ainda resta, ele está atravessado por uma série de fatores e resistências que, de fora, desconfirma a racionalidade soberana. Isso está em toda parte, inclusive posto para o catolicismo. Sem essa resistência, haveria crítica ao acobertamento de práticas pedófilas na Igreja, ou a necessidade de reconhecer os pobres nem que seja para adestra-los? 

A aparente ambivalência católica frente às ditaduras -- uma eventual oposição aqui ou a vergonha de ter feito, ou ser acusado de ter feito parte, acolá versus o apoio às rupturas miraculosas dos golpes -- explica-se por uma questão mal-resolvida de sua metafísica. A bem da verdade, o totalitarismo como o conhecemos é católico sem sê-lo, pois não é fruto da teologia universalista, embora, seja, terrenamente (historicamente), uma doutrina advinda da tradição e da prática hierárquica católica na Europa. Entre o universalismo e o totalitarismo existe uma diferença inconciliável; enquanto o primeiro advoga a validade incondicional [e prévia] de (alg)um verbo  no segundo há o verbo que faz valer. A Lei universal contra a Decisão total. Schmitt, de tão católico torna-se o menos católico entre os católicos ao voltar a Platão ignorando o neoplatonismo, produzindo, assim, uma inversão ontológica da função do verbo na teologia.

Em outras palavras, supondo que isso fosse um debate numa redação, pela perspectiva do universalismo discutiríamos qual fato jornalístico merece estar na manchete no jornal de amanhã, enquanto pelo totalitarismo sabemos que o que for escolhido como manchete será, portanto - a decisão sustenta a legitimidade e não contrário, portanto. Um universalismo dependeria, antes de mais nada, de uma ordem prévia e, para tanto, de uma ordem espaço-temporal na qual o tempo fosse ente real e o espaço estivesse junto com ela e apartado das categorias. Deus como interventor ou como relojoeiro sempre foi uma discussão tão importante quanto a velha discussão entre graça e obra.

A eventual impossibilidade do universal diante da contingência da realidade, exposta como ferida, abre espaço para dois desdobramentos possíveis: (i) o da resolução do caos por uma ordem transcendental unitária que opera a posteriori, resolvendo as pretensões em decisões baseadas na fidelidade ideal e (ii) o amor pelos infinitos modos, o encontro do caos que o contempla não como distopia, mas como maravilha múltipla e, ainda, cuja forma de não fazer as diferenças tornarem-se buracos negros é conceber o que há de comum entre elas. O totalitarismo, a pretensão de todo, contra a imanência.

O catolicismo não se resume ao flerte com o totalitário para evitar o caos, nem à dogmática do universal,  uma vez que ele, na prática, também contempla esse comunismo -- e a teologia da libertação, ironicamente, foi menos universalista (tampouco totalitária) do que, em grande parte, o movimento comunista internacional durante o século 20º, que oscilou entre o universal (como na Itália de Berlinguer) e o totalitário por reação (como em Stalin ou Mao). Em tantos momentos, a teologia da libertação sequer foi teológica e mereceu, de fato, a acusação de comunista, mesmo que o comunismo não possa ser ontologicamente uma acusação.  História, enfim, prega peças. Ainda que no limite, os membros da TL sejam padres, esses fantásticos seres que sintetizam os rabinos com os sábios romanos -- a dívida infinita e o monopólio do conhecimento da essência oculta das coisas. 

Essa ditadura, o espectro que assombra aqui-agora a América Latina, é fruto desse totalitarismo ontológico: foi a hora e a vez na qual viu-se que as pretensões várias, expressas na forma da luta de classes, provaram que não havia ordem prévia que ancorasse tudo -- que a Lei posta desde a colonização não era real, mas real como desejo que fosse aquilo mesmo --, mas que essa ordem ancoradora era nada mais do que o desejo de ver as coisas ancoradas -- como sempre estiveram --, o que poderia tomar forma pela ação de destruição criativa: o golpe de Estado. 

No universalismo -- no catolicismo por tabela -- Deus não está no Mundo, está acima, antes e a despeito dele. No fascismo, ele está  no mundo e a descoberta (chocante) disso nos obrigaria a representar Deus e fazer valer o Plano -- o fascismo é o choque do católico diante de uma constatação de impossibilidade do universal, portanto, nada mais "ateu" no sentido que um padre usaria o termo. Para Espinosa, a quem doía tanto a acusação de ateu -- como Marx, que via o ateísmo como uma questão incipiente --, Deus é e está no mundo-- e está tudo resolvido pelo amor, não um amor incondicional e sumamente válido, mas um amor imanente ao ser capaz de fazer corpos, modos finitos e diferentes entre si, comungarem -- e aí um modelo capaz de dar conta a uma democracia absoluta.

Planos teológicos e/ou ontológicos são, entretanto, respostas abstratas e complexas à questões, problemas, que nascem, por sua natureza, da política. No fundo, há a multiplicidade de homens vivendo, para seu azar, em grupo, rodeados de todas as suas pretensões; mais do que uma luta pela sobrevivência, a história humana é marcada pela luta por uma vida melhor, pela liberdade que é, sobretudo, estar isento do pior trabalho (ou do trabalho ele mesmo), da função mais biologicamente extasiante: não há forma de pensar a divisão do trabalho do que, menos do que o prodígio humano da especialização, como a luta para empurrar o que há de pior para o outro (como poucos marxistas analíticos discordariam).

Na ordem de coisas latino-americanas, a Lei Universal não é o que, de forma ideal, justo e objetivamente demonstrável. A relação de sujeição não deixa de ser universalizável, uma vez que o desejo do dominado é pode ser o de dominar e, assim, ele próprio é capaz de aceitar a dominação à qual é submetido. Não é questão de estar na pele do outro, ou saber o que é estar na pele do outro, pois muitas vezes assentimos com a dominação mesmo que ela se aplaque sobre nossa própria pele. O choque diante da transformação desse estado de coisa, a desconfirmação da ordem que vinha desde os tempos da colonização muda tudo. A ordem não está dada é, pois, preciso garanti-la, nem que seja miraculosamente.

A perplexidade trazida pelos novos tempos, os novos costumes, as novas relações sociais perturbou ou derrogou a ordem -- talvez pior, apresentou a possibilidade de que a ordem não é objetiva, mas uma construção subjetiva e complexa, à qual está sujeita às decisões e interferências políticas. A Igreja, em sua existência terrena e humana, não deixou de estar sujeita ao abalo formidável nas suas convicções e foi do pior ao melhor, retirada do seu próprio centro -- embora do seu conservadorismo culpado ao seu libertarianismo reticente, as formas abstratas e dispositivas do pensar e agir teológico, além do culto ao mistério da escassez sejam uma constante. 

Ditaduras, como as que vimos por aqui, são formas de manter uma ordem injusta, uma sujeição perfeita que pôs certos grupos numa zona de conforto às custas do sacrifício, até desnecessário mesmo para esse fim, de negros, nativos e brancos pobres. Ilustres cidadãos brancos da América Latina só começaram a morrer torturados mesmo -- não em guerras, mas na situação de seres matáveis -- durante esse ciclo ditatorial, pois só aí parte desses cidadãos se juntou, em maior escala, à luta de negros e nativos contra a opressão -- devieram negros e índios, logo, morreram e se tornaram matáveis como tais.

A luta, mais do que política, no sentido de pensar por dentro do Estado contra o Estado, por dentro do capitalismo e contra o capitalismo, é pensar uma saída econômica e ecológica -- a lei e o verbo da Casa que  compartilhamos -- que dê conta de dar vida à essa saída política, que dê carne para que essa democracia possa ser corpo e não vento: o problema prático é resolver como distribuir o produto e a produção, como fazer os fluxos fluírem sem a interdição entre produção e consumo. Como dar suporte à democracia política, desfazendo o mistério: na multiplicação não há milagre, não há peixes de menos nem para todos, mas o mar está aberto.


Um comentário:

  1. O que me faz pensar não em por um fim ao cristianismo, nem mesmo voltar a um cristianismo originário (no sentido pré-Paulino: mesmo em Cristo a servidão voluntária já estava), e sim a um cristianismo pós-paulino, trans-paulino, em todo caso não-paulino ou anti-paulino.

    Que está em São João Evangelista (ou de Patmos, como gosto de chamar). Que os crentes (de outrora como de agora, da reforma ou neo-pentecostais igualmente) meio que entenderam, embora errado, no seu elogio ao Apocalipse mais do que ao Evangelho. Dizer que não há Salvação ou que ela já houve são duas faces da mesma moeda, do mesmo dinário.

    João sendo o único não-platonista não-aristotélico da Bíblia, rigorosamente heracliteano (o que o coloca semi-involuntariamente ao lado de Marx, Hegel, Nietzsche e Spinoza), não quer saber da Salvação nem da Danação, e sim do Verbo que estava antes mas fez-se Carne (e é só como carne que é verbo) e veio morar entre nós (leia-se: no comum). Um Deus que é amor sem ser piedade (enquanto o do cristianismo de Paulo é piedade sem ser exatamente amor). Um Deus que se já não fala obscuro como os profetas, também não fala claro como uma propaganda de outdoor (Paulo de Tarso, again): como uma sibila, fala para que não entendam os que não merecem, a verdade não toda falo eu posto que toda ninguém a diz (faltam palavras) - ou, parafraseando Raduan Nassar: "porque sei oh Pai que se a obscuridade impede a clareza, também há na clareza a semente da obscuridade".

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