sábado, 16 de março de 2013

O Papa Francisco e a Ofensiva contra a América Latina

Loucura Sagrada 



Sonhei que o Papa enlouquecia



E ele mesmo ateava fogo ao Vaticano

E à Basílica de São Pedro.

Loucura sagrada!

Porque Deus atiçava o fogo que os

Bombeiros, em vão, tentavam extinguir.

O Papa, louco, saia pelas ruas de Roma

Dizendo adeus aos embaixadores

Credenciados junto a ele

Jogando a Tiara ao Tibre.

Espalhando pelos pobres, todos,

O dinheiro do banco do Vaticano.

Que vergonha para os cristãos!

Para que um Papa viva o Evangelho

Temos que imaginá-lo em plena loucura


(Dom Helder Câmara)

A escolha do cardeal Bergoglio como papa Francisco I é um marco que vai para além do fato dele ser o primeiro não-europeu em mais de um milênio -- e o primeiro jesuíta -- a ocupar o trono de pontífice romano. Sua escolha vai mais além até do significado peculiar que representa na continuidade da cruzada internacionalista neoliberal da Igreja -- na esteira de Wojtyla e Ratzinger, cujas indicações marcaram uma gradual expansão para além da Itália. Trata-se de um marco singular sobretudo porque, por meio de sua aclamação, a Igreja reconhece a América Latina, onde estão a maior parte de seus fiéis, como fronteira final e, ao mesmo tempo, seu refúgio existencial. 

Se com Wojtyla o internacionalismo católico vinha do Leste para afirmar o Oeste, agora, ele se põe ao Sul para defender e salvaguardar o Norte. Sob Ratzinger, havia a preocupação de reevangelizar a Europa, de centrar os esforços da Igreja numa Europa extra-italiana, mas isso não surtiu lá muito efeito. Enquanto a Igreja se preocupava com a Europa e os Estados Unidos voltavam-se para o Oriente Médio, a América Latina via suas minorias usarem os mecanismos da (limitada) democracia representativa contra quem os inventou: mesmo depois dos ciclos ditatoriais militares e a distensão pela pax neoliberal, ainda havia resistência e luta. A história continuou viva e a América Latina foi o maior laboratório de experiências políticas da última década.

O cardeal Bergoglio esteve presente em todos esses ciclos. Seus silêncios e intervenções formam a cacofonia do discurso da dominação na América Latina nas últimas décadas. Ter se calado em relação à ditadura local enquanto gritava para enquadrar a Companhia de Jesus --  tanto que acabou suspeito de participação em episódios bisonhos de desaparecimentos durante o regime militar argentino -- ou, também, sua mudez com Menem e sua histeria contra o casal Kirchner -- sobretudo sua investida estridente contra o casamento gay na Argentina -- são interessantes e relevadores contrastes.

Bergoglio foi o mais papista entre os jesuítas, tanto que virou papa -- e Bergoglio é, hoje, o mais europeu dos latino-americanos. Sua arritmia atenta para uma aritmética moderna de indignação seletiva -- e muito bem calculada. Sua presença no trono de Pedro é uma reação política à liberação reformista latino-americana: em verdade, uma nova contrarreforma. Se a Igreja se voltou contra o Leste Europeu, tanto menos por democracia -- coisa com a qual jamais compactou, platônica que é -- e mais por outros interesses, agora o alvo da vez parecem ser os governos democrático-populares latino-americanos.

Enquanto a multidão que se mobiliza em torno do legado de Chávez na Venezuela é, em grande parte, católica, a hierarquia de sua Igreja é visceralmente antichavista -- a ponto de ter participado do golpe de 2002 como não deixa de ser recorrente na nova onda de golpes brancos que assolam governos populares: em Honduras e no Paraguai, onde a participação do clero foi decisiva. Francisco I tem uma importância geopolítica central para o Vaticano, portanto.

Outro ponto é a captura da potência produtiva dos pobres. Depois de décadas sob o discurso da ortodoxia marxista, o quadro mudou com forças populares antineoliberais que pensam para além da racionalidade industrial e do fetiche proletarista: a esquerda se abriu para os pobres, reconheceu sua dimensão produtiva e governou para o povão ou, até mesmo, com o povão. 

O novo papa, ao assumir um discurso generalista e abstrato pelos pobres, que coloca a caridade -- e a carência -- no lugar da catalisação do desejo de viver, emprega um meio, poderoso, de adestrar e fazer novamente dóceis quem se levantou depois de séculos de submissão. A estética da resignação e da renúncia se afirma sobre a vida. 

Ainda é incerta a influência que Francisco I poderá ter sobre o Brasil. E isso talvez se deva aos motivos errados, dentre eles o ufanismo anti-argentino que domina do discurso futebolístico às elocubrações dos setores conservadores -- que, em tese, deveriam apoia-lo. Para a América Hispânica, no entanto, ele será um contraponto permanente e poderoso. E chega a ser curioso a ascensão desse papa, ainda mais em uma época em que tantos líderes locais vieram da resistência às ditaduras -- e testemunharam pela causa social com o flagelo do próprio corpo -- ao contrário do novo líder católico.

Francisco pode ser o santo de Assis -- que falava com os animais e pregava o amor aos pobres -- quanto o Xavier, jesuíta colonizador dos confins do Globo: e, como ele, os jesuítas protagonizaram a dialética da colonização latino-americana; de um lado havia os colonizadores laicos (como os bandeirantes) fazendo dos nativos objetos a serviço da metrópole, enquanto a Companhia de Jesus seguia nas clareiras abertas pelos primeiros fazendo dos índios su(b)jeitos da Cristandade. 

Os jesuítas faziam dos índios sujeitos: eles eram postos sob a Lei da Cristandade, embora fossem assim submetidos enquanto gente, e não como coisa, o que abria uma linha de fuga em meio ao paradoxo. E os jesuítas tornavam-se, assim, perigosos. Mas jamais romperam com a Igreja. 

Figuras como Bergoglio são esses ícones do lastro fiduciário que sempre houve para com o papa, unindo o (aparentemente) irascível e insubmisso da Companhia de Jesus com a hierarquia celeste. Mas Bergoglio particularmente talvez tenha transposto uma linha vital, na ditadura pela qual passou seu país, para ter se tornado tão confiável. O tensionamento entre o biopolítico e o bipoder na Terra do Sol chega, portanto, em um nível altíssimo.





2 comentários:

  1. Faz parte da índole dos esquerdistas irem contra qualquer um que se preocupe com os pobres mas não seja esquerdista ou progressista como eles. Querem o monopólio da ação neste campo, embora figuras como São Francisco de Assis existissem muitos anos antes da Revolução Francesa, por consequência antes do próprio conceito de esquerda.

    Eu não tenho mais saco para a conversa mole da esquerda. Eu francamente digo que todo esquerdista autêntico que nunca apoiou governo brasileiro algum só não é um neoliberal porque lhe falta capital para ser de fato capitalista. Não dá para ser neoliberal sem grana nem poder, assim como não dá para ser capitalista sem capital. Os esquerdistas governistas do Brasil são piores ainda, ainda que os autênticos neguem a paternidade esquerdista sobre o governo brasileiro, portanto negando aos governistas a alcunha de esquerda. Essa gente não sabe o que perderam ao traírem a confiança de tanta gente que um dia confiou nessa corja pra substituir aquela direita libertina (ou neoliberal, como queiram) que estava no poder antes. Creio que há muita gente como eu por aí Brasil afora. Só nos falta representação.

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    1. Marcelo, o problema, pelo menos da minha parte -- e creio que eu não falo em nome da "esquerda" -- é qual preocupação com os pobres. Eu não tenho muitas dúvidas que o conservadorismo religioso, seja católico ou evangélico, se preocupa mais com o "pobre" do que as esquerdas -- que nem sempre reconhecem seu potencial resistente e produtivo --, mas, certamente, é uma preocupação que me preocupa: ensinar o pobre a continuar a ser pobre, de maneira dócil. Em relação a isso, eu sou contra.

      Quanto a afirmações do tipo "só não são (neo)liberais por falta de poder" é como dizer que "só são católicos por falta de conhecimento, de ciência". Eu acho mais complicado do que isso. Assim como a questão do "governismo" precisa ser relida: é governista não quem apóia esses que estão no governo, mas quem apóia ontologicamente O Governo -- incluídos aí oposicionistas de esquerda e de direita e, até mesmo, pacíficos cordeirinhos religiosos que alegam não se envolver em política, mas batem cartão até em eleição para conselho tutelar.

      um abraço

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