Um modo
de fazer apelo à filosofia por vir no
Brasil, que de modo algum, de um ponto de vista geofilosófico, pode
se confundir com uma filosofia do
Brasil, foi instaurado por Bento Prado Jr, em diversos momentos. Por
exemplo, quando ele colocava o ato de pensar imediatamente no
prolongamento de uma partida de futebol, com um drible ou um gol
marcado num domingo, ou então com uma poesia, com uma passagem de um
romance, ou ainda a partir do encontro do futebol com o literatura,
com o teatro: “Que há
de mais curioso do que esse cruzamento entre teatro e futebol
(...)? Mas, na verdade,
o texto de Decio de Almeida Prado serve-me aqui apenas de pretexto
para esboçar algo como um prolongamento de suas observações:
tentarei continuar a jogada com a bola que ele levantou, contando
apenas com meu precário domínio dos "fundamentos" (como
diz a crônica esportiva) dessa arte. O que me interessa é
apresentar uma nova figura dessa oposição literária ou, mais
precisamente, entre duas formas de relação entre literatura e
futebol, que se desenha no Brasil três ou quatro décadas depois
daquela descrita em "Latejando com o Futebol"” (Bento
Prado Jr, Literatura e o mistério da bola).
Essa performance filosófica, em
Bento Prado Jr, constituía um verdadeiro modo de fazer com que
pensamento e vida se comunicassem imediatamente, prolongando-se
mutuamente. A mesma constatação que Bento faz adiante em relação
a outro encontro da literatura com o futebol, ou “desencontro entre
estilo elevado e assunto cotidiano”, tal como o vemos em Carlos
Drummond de Andrade e em João Cabral de Melo Neto, qual seja,
“pertencia já ao
passado o tempo em que era necessário mobilizar estrategicamente a
experiência cotidiana para enriquecer a poesia contra o espírito
poético exaurido e empobrecido por sua exclusiva consagração a
temas elevados, distantes e passados, ou pela obsessão cátara com a
pureza da última flor do Lácio”, essa constatação é
simultaneamente a essência mesmo do que pratica Bento sob o nome de
filosofia, essa performance
que já não pode
mais traçar uma linha especulativa separando o campo do filosófico
e do não-filosófico e que, ao mesmo tempo, mostra rigorosamente em
que o não-filosófico pode servir de disparação para o que há de
mais filosófico.
É claramente o prolongamento, por
uma performance filosófica indisciplinada, do apelo de Oswald de
Andrade a uma filosofia antropófaga para além de toda filosofia
messiânica assentada sobre o problema do Ser ou da Consciência, da
Substância ou do Sujeito enquanto obssessão cátara
com a pureza em sua forma propriamente especulativa.
Assim, Bento, a exemplo daquele outro, o Espinosa, atacava toda
filosofia que nos separa da vida, que não faz da “Verdade” o
efeito de um esforço sempre renovado do pensamento, pelo qual nos
tornamos dignos de viver, pelo encontro da potência de pensar com as
forças exteriores que fazem do imprevisível o mais profundo impulso
vital que força o pensamento a sair de sua fadiga habitual e a
pensar. Todo pensamento que nos aparta da vida constitui, para Bento,
um “convite à falsificação”. Antes do Ser e da Consciência,
como princípios aos quais chegamos apenas através da especulação
como movimento abstrato, há a performance pela qual pensamento e
vida se comunicam imediatamente, tornando possível um movimento
efetivo, um bloco de pensamento e vida já tornados indiscerníveis.
Não é o que se insinua aos olhos de Bento no encontro da literatura
e do futebol, através das metáforas que se multiplicam nos poemas
de João Cabral ou nas pernas de Ademir da Guia? Assim, a conclusão
de Bento, segundo a qual “com
João Cabral, a assimilação literária do futebol deixou de ser
mera retórica ou simples provocação. Tornou-se, finalmente,
assunto real para o conhecimento literário do Mundo”. É preciso
ver nela que a assimilação filosófica desse encontro/desencontro
não serve de simples metáfora, mas de material para se pensar o
Mundo em seu devir.
Eventos da vida política podem
igualmente fazer apelo a um pensamento, jogam igualmente com essa
linha que alhures separa o campo da filosofia e da não-filosofia. Um
desses eventos na contemporaneidade faz referência, no nosso
entender, ao problema metafísico por excelência, ao menos de uma
certa metafísica dita ocidental, a saber, aquela da relação entre
o Mesmo e o Diferente. O evento ao qual nos referimos se passa,
paradoxalmente, no seio da máquina estatal, através de diversas
políticas sociais que, nos últimos 12 anos, fizeram dos
representados da democracia representativa brasileira uma "classe
inominável" ou "classe sem nome", segundo a expressão
de Hugo Albuquerque, como se a identidade nacional fosse subvertida
lá mesmo de onde ela jorra como efeito da máquina de Poder: para
além da oposição entre uma unidade, homogênea, abstrata, como
determinação formal do ser brasileiro, e o diverso, heterogêneo,
concreto, como matéria indeterminada de uma massa humana, que
produzia no Brasil justamente 2 brasis, o dos brasileiros inclusos
segundo uma forma majoritária (cidadão de classe média, branco,
com ensino superior, cristão, habitante de grande cidade, etc.) e
aquele de uma massa de pobres e miseráveis em dispersão, impossível
de incluir, invisibilizados nos sertões, favelas e florestas; para
além desse esquema, deparamo-nos com uma estranha unidade que se diz
da multiplicidade, um devir-brasil que é devir-todo-mundo, uma nação
que não remete a um princípio unitário ideal, mas que é genética,
ou seja, uma natividade que se engendra continuamente em ato,
arrastando a própria máquina estatal brasileira e o todo do sistema
democrático representativo, implicando-a num novo "antagonismo",
de acordo com a sugestão de Sílvio Pedrosa, que é preciso
investigar. Com efeito, o Brasil saiu de um estado no qual justamente
ele estava,
seguindo o sentido profundo desse verbo, no qual estanciava,
repousando sobre um fundamento imóvel, fixo, estável, para se
instalar e experimentar uma nova forma de estância, uma espécie de
paradoxal estação
na mudança: a
democracia meramente representativa é devorada pelo voraz movimento
efetivo de uma nação que é tanto mais nativa quanto mais ela se
inventa. É do ponto de vista dessa estação que podemos contemplar
com mais justeza o estado precedente.
Alguns filósofos, como Espinosa,
ensinaram-nos que o medo é a estratégia do poder para a dominação
de um povo. Pela multiplicação do medo no coração das pessoas,
pela agitação em torno de uma inquietação, “o que vai
acontecer?”, o poder se apresenta e oferece pontos de apoio fixos,
estáticos, para os quais os corações temerosos se voltam na
esperança de conseguir tutela e proteção, contra o caos ameaçador
que borbulha lá fora. Essa segurança oferecida pelo poder consiste
numa estação em que nada mudaria e nada de inquietante poderia
sobrevir. Disciplina e/ou controle, trata-se sempre de uma tal
estação. Um certo tipo de subjetividade preponderava no Brasil,
justamente aquela que jazia nessa estação sem mudança que é uma
miragem oferecida pelo poder aos corações que vivem com medo.
No entanto, quando Lula afirma em
2002 que a “esperança venceu o medo” e que sua eleição
expressa o “reencontro do Brasil consigo mesmo”, um nova verdade
era expressa decisivamente naquela afirmação, a decisão de eleger
Lula significava um brasil-menor que assumia para si uma nova posição
subjetiva, completamente diferente da precedente, instalando-se no
seio da máquina estatal, incluindo-a num movimento que a ultrapassa
e que desembocará nas manifestações de Junho de 2013 e nas
eleições presidenciais de 2014. Se não hesitamos em ler aquelas
primeiras, como explicar tanta incompreensão na mobilização pela
candidatura Dilma neste segundo turno da eleição presidencial?
Afirmar que as massas estão sendo enganadas sempre foi um falso
problema em política. Trata-se de compreender aqui o arco longo da
subjetividade que se expressa na eleição de Lula em 2002 e na
mobilização atual pela reeleição de Dilma. Esse arco descreve
justamente o movimento de saída daquela estação sem mudança e de
instalação num movimento real que, como toda criação, é abertura
à indeterminação.
Por isso mesmo, como não ter medo
diante do risco do novo que deveria, desde então, ser criado
literalmente “do nada”, já que não se tem mais os pontos de
apoio fixos nos quais agarrar-se por medo, abdicando-se de criar,
confortando-se com uma vida em que se miracula um “nada se passa”,
“tudo continua igual”? Como assumir de se sustentar no ar sem
nenhuma mão que impeça de cair, sem suporte algum que conduza, como
um pássaro de que falamos justamente que ele voa livremente e faz um
consigo mesmo em seu sobrevôo, à maneira de uma estação na
mudança, de uma experiência que já não pressupõe
nem sujeito, nem objeto, mas constitui uma individuação criadora,
uma pura atividade ou corrente de vida, uma afirmação absoluta de
si sem sujeito nem objeto? Construir, assim, uma vida que seja pura
natividade, pura estância na mudança, num esforço
atlético
e contínuo de singularização, expõe aos riscos de se cair na
fadiga
que põe um objeto e um sujeito como formas dadas, aos quais essa
vida seria atribuída e desfigurada, acomodando-se num estado (forma
majoritária). Porém, como já dizia o filósofo H. Bergson, em A
Evolução Criadora,
as maiores recompensas dependem dos maiores riscos e não há criação
de novidade no mundo sem esse gesto nobre de dizer sim à mudança,
ao risco de mudar, ao abandono do estado que liga a consciência a um
princípio a fim de esposar singularidades moventes ou forças
estrangeiras que povoam um espaço aberto ou campo impessoal
(devir-minoritário).
Ao longo dos últimos 12 anos, surgiu
pouco a pouco uma percepção
de que se vivia
numa espécie de mudança, e de que a mudança comporta ela própria
uma estação, uma verdadeira estação na mudança e, acompanhando
essa percepção, tem-se o sentimento de que algo de si (do “si”
meramente individual) já não cabe em si em sua forma previamente
dada, de modo que ele escapa, foge, coincidindo com uma
vida, no que esta
significa uma mudança não somente continuada,
mas contínua,
ou seja, um esforço constante em estanciar nesse limiar de
indeterminação pelo qual se dá a "imprevisível criação de
novidade" (Bergson). Essa paisagem da vida política no Brasil
não deixa de ressoar com a filosofia, ou mais radicalmente, com o
próprio devir do pensamento. Quando a campanha de Dilma falou em
2010 em “seguir mudando” e afirma agora "mudar mais",
ela reivindica uma posição subjetiva que faz problema. Com efeito,
ela não supõe um princípio transcendente/condicionante. Ao
contrário, ela faz uma só e única realidade com aquele estranho
princípio imanente de que nos fala Deleuze a partir de Nietzsche,
que se determina em cada caso com aquilo que ele determina, que se
metamorfoseia com o condicionado. O que estava e está em jogo nessas
expressões é uma verdadeira estância na mudança, essa nova
posição subjetiva, instaurada e experimentada ao longo dos últimos
12 anos, em diferentes graus e de diferentes modos, nas diferentes
classes sociais, doravante em pleno movimento de deslocamento
seguindo o vetor "selvagem da classe sem nome" (Hugo
Albuquerque). Não se trata nessa posição subjetiva paradoxal de
afirmar um processo de mudança que levaria calmamente de um estado a
outro. Essa sempre foi a imagem reservada às instituições numa
democracia representativa. Ao contrário, trata-se de apreender o
movimento efetivo de uma democracia real vivida como estação na
mudança. É preciso pensar no profundo significado dessa estação
em relação àquela outra que, pelo medo, nos fazia desejar tudo que
pudesse ser fixo, imutável, ou não admitir mudança que não fosse
de um ponto fixo a um outro, de um estado a um outro, como uma pessoa
que, em meio a uma correnteza, pudesse se agarrar a pontos de apoio
sucessivos que a conduzissem de uma margem a outra, sem que no final
das contas, de fato, ela mudasse de lugar, pois de um lado ou de
outro do Rio, ela estava protegida do fluxo que tudo mistura numa
mesma e única corrente, levando o conjunto fluido alhures. Essa
mudança era apenas um “movimento aparente”, uma passagem imóvel,
pois, com efeito, “nada se passava” em nós, nada de novo em nós
se criava e nos confortava olhar para a água e ainda ver no fluxo
movente nossa própria imagem imóvel e nela nos reconhecermos, tal
como é possível se reconhecer nas formas majoritárias que marcam
socialmente a diferença relegada
ao estado de maldição de pura mudança sem consistência.
A imagem que fazemos das instituições também deve ser alterada de
acordo com um ou outro ponto de vista na medida em que se trata de
precisar o sentido daquilo que não se conserva a não ser na
mudança.
Ora, é surpreendente que o filósofo
Jean-Christophe Goddard, ao fazer uma bela reflexão sobre um outro
filósofo, o alemão Fichte, em torno da questão que por gerações
foi colocada a seu respeito, a saber, “Fichte, seria ele
reacionário ou revolucionário?”, lembra-nos que a dicotomia do
reacionário e do revolucionário, da conservação e da mudança,
encontra-se completamente inserida num movimento aparente, numa
espécie de pêndulo que realiza apenas uma passagem imóvel que nos
leva de um polo fixo a um outro polo fixo e que integra a estratégia
de codificação do social pela máquina do poder. Nesse sentido, o
pêndulo do poder é uma espécie de estação propriamente sem
mudança. Para ele, a inovação política de Fichte consistiu em
pensar um meio de viver
uma estação na
mudança, ou melhor, Fichte foi o filósofo para quem uma
vida consistia numa
estância na mudança, mas à condição de que ela não sinta medo e
escape ao pêndulo do poder que a ela oferece lugares estáveis para
que nenhuma imprevisibilidade sobrevenha, para que precisamente “nada
se passe”, seja se conservando no mesmo lugar, seja se
transportando de um lugar fixo a um outro lugar fixo, através de uma
mudança imóvel. A história da filosofia em seu conjunto é
perpassada pelo problema da estância: “Ser” é uma questão de
“estar”. Desde que o problema do princípio ou de uma unidade
absoluta apenas varie numa estância entre uma “consciência” e o
“Ser”, desde que o único percurso possível para o pensamento
designe aquele que o conduz dessa consciência até um princípio
Absoluto estático, imóvel, eterno, estamos,
literalmente no sentido de uma estância sem mudança: todos os
estratos que fixam a existência, o devir, a imanência, nos
sucessivos sistemas filosóficos que fazem o mundo da representação.
Entretanto, quando a representação é rompida pelo acontecimento,
pela abertura de um espaço em que não há outra estância real a
não ser aquela que nos faz permanecer no inacabamento, na
interminabilidade, na transicionalidade que já não opõe o Uno ao
múltiplo, o Idêntico ao diferente, o Homogêneo ao heterogêneo (a
retomada incessante ao longo dos anos da Doutrina
da Ciência é,
nesse sentido, uma performance filosófica pela qual Fichte vive sua
estância na mudança, uma transistência, como chamava Guattari a
esse regime de subjetividade), passamos
literalmente pela passagem:
enfim, saímos do problema que relaciona um Sujeito a um Objeto, uma
Consciência a um Princípio, o Múltiplo ao Uno, o Diverso ao Ser, o
Condicionado à Condição, para nos instalarmos imediatamente no
espaço intensivo do acontecimento, da diferença afirmada enquanto
diferença, do que está
em vias de se fazer.
Essa estância na
mudança abole tanto o Ser quanto a Consciência enquanto princípios
ao passo que o verbo estar como índice de intensidade, como
singularidade de um devir (hecceidade),
faz valer sua contribuição para a filosofia. A estância na mudança
se diz do acontecimento entendido como um se
auto-pôr enquanto se auto-pondo,
portanto, como uma pura atividade criadora.
Ora, já não era essa também a
verdade antropófaga? O pensamento antropófago sempre nos lembrou
que não há verdade como resultado da condução (por adequação,
reflexão) do múltiplo ao Princípio imutável ou Absoluto. Tal
sempre foi a maneira com que a especulação impediu a filosofia de
pensar o novo. Oswald de Andrade fala em “tédio especulativo”,
“estados tediosos”, “ideias” ou “paralisias” dos
“chamados povos cultos”. Ao contrário, haveria uma unidade vital
propriamente antropófaga: a vida é devoração e o pensamento é
dinâmico, não cansava de dizer Oswald de Andrade. Unidade,
portanto, instaurada incessantemente, tanto mais pura quanto mais
híbrida ela se faz, que se diz da multiplicidade, não apenas
heterogênea, mas heterogeneizante. Unidade que, não sendo posição
subjetiva do colonizador (fundamento), nem colonizada (fundado),
co-incide
com o processo constante de descolonização do pensamento e da vida
ou seu "afundamento". Subjetivação incessante, portanto,
ambivalente. Somos todos canibais. Antes de descobrirem o Brasil, o
Brasil já tinha descoberto a felicidade. O plano de imanência é a
retomada do plano antropófago. O instinto caraíba da filosofia
contemporânea. uma terceira margem também para a filosofia.
É notável, portanto, que Goddard
tenha reencontrado essa estação na mudança, essa "figura
atlética da subjetividade", conservando-se tal como a figura
baconiana, entre o limite e o ilimitado, no cinema revolucionário de
Glauber Rocha tal como este nos apresenta o Sertão
como espaço aberto onde o poder não pode alcançar e espalhar o
medo. "Espinosismo obstinado" que nenhum spinozista parece
enxergar, pois nunca puderam ver Bento, mas também um tranqüilo
bergsonismo caraíba. O Sertão vive nos corações valentes como
espaço vivo que não se opõe à cidade ou à floresta, mas as
estende, que recusa o medo e afirma o inesperado. Sertão como
potente vida que segue mudando e que vemos encarnada em Antonio das
Mortes pois ele devem-revolucionário ao abolir o pêndulo do poder
entre o reacionário (proprietários) e o revolucionário
(cangaceiros expropriados): Antonio, esse si
absolutamente im-proprietário. É notável que Antonio se diga
justamente das
mortes. Com efeito,
morte se diz, num primeiro momento, das múltiplas mortes empíricas
impostas aos ex-propriados para servir aos proprietários,
compreendidas, assim, dentro do pêndulo do poder; num segundo
momento, uma nova morte que se diz da suspensão da própria morte em
que consiste essa vida capturada pelo movimento pendular relativo,
portanto, uma morte como liberação an-arquica e emancipação vital
pela qual ele se torna um im-proprietário. Antonio
das mortes encarna, portanto, esse combate entre dois regimes de
subjetividade no Brasil, ou antes, o combate entre um regime de poder
vindo de alhures, do alto, transcendente e um regime de potência
imanente, de heterogênese subjetiva.
O Sertão sempre foi para nós uma arte e uma política, uma vida e
um pensamento ou o lugar impossível de sua coincidência, portanto,
tanto mais real quanto mais inventado: genético-nativo.
Falta a filosofia. Mas é preciso
entender falta não como determinação negativa no sentido de que
careceríamos de uma filosofia da qual se poderia dizer que ela é
brasileira, mas falta uma filosofia no sentido de que a filosofia
está por vir e seu tempo é o desse estar: uma estação na mudança.
Pois se a filosofia se confundiu sempre com a Ontologia, com a
história dessa "paixão inútil", fatalmente "malograda"
(Bento), em todo caso, fatigante, que remete o pensamento ao
Princípio, portanto, com o problema de uma unidade capaz de dar
conta do múltiplo e de conduzi-lo ao Uno, compreende-se que não
haja uma filosofia brasileira ou que não haja senão à maneira da
reprodução colonizada da consciência enlatada - inclusive
militante, quando se trata de compreender a vida política -, pois o
devir-brasil faz uma só e mesma coisa com a abolição da Ontologia,
portanto do próprio problema da unidade que se opõe ao múltiplo.
Mas essa própria abolição, para não ser simples mergulho no
informal, ou pior, restauração de novas Transcendências, ainda que
constituintes, relacionais e horizontalizantes, já se compreende
imediatamente como instauração de um processo a tal ponto
perversivo que, através dele, a unidade se diz da multiplicidade e a
estação se diz da mudança. Da perspectiva dessa estação, o
Sertão aparece como o espaço onde a Arte, a Filosofia e a Política
se encontram enquanto performances instauradoras. Assim, a
performance filosófica de Bento Prado Jr., pela qual iniciamos esse
breve exercício, se compreende rigorosamente como prática
antropófaga da filosofia. O "bom canibalismo" atribuído
ao amigo Rubens Rodrigues Torres Filho, poeta, filósofo e tradutor
de Fichte, é também o dele próprio, Bento, já que, com ele,
trata-se de não reconhecer fronteira, tal como a que separava o
poetisável do não poetisável, o culto do cotidiano, o erudito do
popular, o nacional do estrageiro. Se as fronteiras são abolidas, é
porque uma linha intensiva alastra um espaço aberto, ambivalente,
individuante no qual elas se precipitam e se abolem, como alturas e
profundidades se precipitam à maneira de pregas de uma mesma
superfície quando esta se estende. E Deleuze já mostrava como os
princípios subterrâneos e os princípios elevados se desmanchavam
numa filosofia das superfícies. O Sertão é a imagem literal
glauberiana-roseana, Mundo no qual podemos, novamente, crer na medida
em que não há outra crença que não a da própria estação na
mudança como crença na imprevisível novidade e na criação de
futuro.
Cleber
Lambert, 24 de outubro de 2014, Santo Amaro da Purificação