Jogo de Futebol -- Pennacchi |
Sim, futebol e política são coisas diferentes. Não é possível politizar o futebol sem incorrer na caricatura mais perversa -- exatamente do mesmo modo que politizar a arte, mesmo à esquerda, cria algo que nem é política, nem arte, vide o realismo socialista. Isso se deve a uma razão elementar: o futebol existe de maneira autônoma enquanto expressão humana. Os esportes possuem um estatuto ontológico próprio, os esportes coletivos mais ainda -- e quase são uma outra categoria de coisas. O é que não só é possível, como também desejável, é, mesmo modo que ocorre entre a orquídea e a abelha no célebre exemplo de Deleuze, um agenciamento entre ambos: dois corpos, uma máquina única por uma implicação de mão-dupla.
Isso é diferente de politizar o futebol, isto é, torna-lo meramente objeto de uma política, projeção de uma sociedade no contexto de sua História. É reconhecer que existe uma dimensão própria no esporte bretão. Outra coisa é a tese da futebolização da política, com um sentido evidentemente pejorativo, sobretudo no que se refere à política brasileira atual, vez ou outra levantada: estaríamos às voltas de um "Fla x Flu", no sentido em que os partidários deste ou daquele segmento se comportam como "torcidas".
Bem, o futebol não é aclamação e catarse, seu estatuto ontológico remete a uma guerra às avessas. E essa constatação nada tem a ver com o fato do futebol "já ter parado guerras", mas sim que sua organização é, ela própria, avessa à guerra na medida em que copia seu fundamento e o subverte. Dois grupos, que precisam ser coerentes entre si, disputam um território em busca de metas. Eles precisam atuar coletivamente e confrontar o outro, mas o jogo coletivo ao representar o real, o faz como brincadeira: está além da ficção e aquém do concreto e do literal. Torcer é, sobretudo, reclamar e reivindicar. E o confronto desloca a violência destrutiva da guerra, se apropriando do que nos anima no conflito -- ao mesmo tempo em que desliga o dispositivo que nos é fatal. O futebol encanta e, não à toa, mobiliza multidões pelo mundo.
Não ocorre, pois, uma futebolização da política brasileira, quando estamos diante de reduções binaristas da realidade. Inclusive porque, no caso da política ter se tornado projeção do que se passa no futebol, estaríamos diante de uma quimera, uma bola quadrada: polis e polemós, cidade e guerra, e suas respectivas artes, a política e a polêmica (a arte da guerra) são relações com fundamentos inversos.
É evidente que o chamado ao ócio e ao sabático do futebol, por óbvio, é antagônico ao mundo dos negócios. E a tentativa de Estado de usar o futebol como elemento político e, mais tarde, do mercado transforma-lo em negócio -- ou torna-lo, quem sabe, um negócio de Estado -- é avesso à sua lógica, o que faz com que não seja estranho que as pessoas comemorem o jogo e, no mesmo movimento, ataquem a Fifa -- ao contrário, é perfeitamente coerente.
Quando vemos, no Brasil e em muitas partes do mundo, fenômenos como uma onda de emergência e ascensão dos negros via futebol, não estamos diante da "politicidade" do futebol. Mas da própria expressão, no futebol, por suas regras e princípios, do antirracismo. A própria lógica inerente ao ludopédio fez do racismo e da eugenia letra morta. Não foram medidas políticas. Na Europa atual, na contramão do que se passa na política, o futebol impõe espaço aos imigrantes e filhos de imigrantes nas seleções nacionais. A Lei Anti-imigração da Suíça, caso votada anos atrás, simplesmente mudaria a face da seleção local, composta por imigrantes diversos.
A Seleção Francesa, então, nem se fala. A grande quantidade de negros e árabes no time francês, inclusive no time vencedor da Copa de 1998, tornou comum a presença dessas minorias nas grandes seleções da Europa. Por outro lado, exprimindo as inflexões da política, Laurent Blanc, ex-ídolo nos gramados e então treinador daquela Seleção concordou com a política de restringir a presença de negros e árabes no time gaulês. O ex-líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen não cansa de lançar ataques contra sua seleção pelo mesmo motivo -- sua filha, e atual líder do radical Front National, também não perde chance para o ataque. Talvez isso explique porque Benzema, craque do Real Madrid e da Seleção, candidato a artilheiro da Copa atual não canta o Hino Nacional: "Se marco gol, sou francês. Se não marco, sou árabe”.
Nos Estados Unidos, onde o futebol foi popularizado em paralelo com a chegada de mais e mais imigrantes pobres da América Latina -- e onde se popularizou sobretudo e em primeiro lugar entre as mulheres --, o esporte é alvo preferencial da extrema-direita local: estariam conspurcando os ideais e os valores americanos. Ironicamente, o futebol avança. O último jogo entre EUA e Portugal, válido pela primeira fase da Copa, foi um dos recordes de audiência televisiva americana, em matéria de esportes salvo o futebol americano.
Evidentemente, o que naufragou é a crítica direitista da Copa, que se deliciava com a possibilidade de um fracasso de um modelo de gestão "mais estatal" e esperava, a partir de um caos qualquer, nos estádios ou nos aeroportos, um modo de voltar ao poder plenamente -- ou de impor "por dentro" suas demandas. Essa crítica jamais se voltou contra remoções, violência policial, vedação de manifestações ou quetais. Ironicamente, ela não está nas ruas, mas sim bem protegida nos camarotes vips dos estádios e dos clubes, torcendo porque é "in", muito embora não ajude muito: é uma distorcida.
Na aclamação do sucesso da Copa, a "Copa das Copas", mora um erro: o que perdeu foi um direitismo qualquer, o que não quer dizer que as coisas estejam perfeitas; esse ufanismo que esconde os males e ataca os dissidentes não é positivo. Os comitês populares da Copa, o Não Vai ter Copa, e quetais impuseram uma nova agenda: a Copa que está aí não é a Copa que estava para ser. É uma outra Copa, que independentemente de ser boa ou ruim, é o produto da contestação à crise da construção social, política e, também futebolística da Copa do Mundo. É a resultante de forças.
E a potência de um não vai ter Copa estava em provocar: confrontar o necessário, o inevitável e o imutável. Fazer o impossível se tornar contingente. O que evidentemente se desfaria se tomado em um sentido literal e, do seu lado, também necessário: NVTC é forte por trazer um quadro onde um evento surgia transcendente -- haveria Copa de qualquer modo -- para a imanência -- a Copa haveria mas poderia não haver, ela estaria sujeita às condições e as regras da contingência. Por isso, nesse exato instante, se é possível que haja violência policial, por outro lado, é impossível imaginar que isso não repercutirá. Imaginar que a Copa não aconteceria necessariamente, por decreto de uma antagonismo qualquer, seria incorrer em alguma forma de pensamento meramente abstrato. Uma outra Copa, uma Copa com direitos, inclusive à festa, não é também um mote errado. Nem menos potente.
Equívoco é, de um lado ou de outro, pretender que a objetificação do futebol possa conduzir a alguma vitória política porque ele, assim como a vida, escorregará pelos dedos das mãos do poder -- porque é nessa relação que estará o objetificador -- como água. Do ponto de vista das esquerdas, nem protestar ou torcer, mas sim protestar por torcida, torcer por protestos, protestar torcendo e torcer protestando.
Quando vemos, no Brasil e em muitas partes do mundo, fenômenos como uma onda de emergência e ascensão dos negros via futebol, não estamos diante da "politicidade" do futebol. Mas da própria expressão, no futebol, por suas regras e princípios, do antirracismo. A própria lógica inerente ao ludopédio fez do racismo e da eugenia letra morta. Não foram medidas políticas. Na Europa atual, na contramão do que se passa na política, o futebol impõe espaço aos imigrantes e filhos de imigrantes nas seleções nacionais. A Lei Anti-imigração da Suíça, caso votada anos atrás, simplesmente mudaria a face da seleção local, composta por imigrantes diversos.
A Seleção Francesa, então, nem se fala. A grande quantidade de negros e árabes no time francês, inclusive no time vencedor da Copa de 1998, tornou comum a presença dessas minorias nas grandes seleções da Europa. Por outro lado, exprimindo as inflexões da política, Laurent Blanc, ex-ídolo nos gramados e então treinador daquela Seleção concordou com a política de restringir a presença de negros e árabes no time gaulês. O ex-líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen não cansa de lançar ataques contra sua seleção pelo mesmo motivo -- sua filha, e atual líder do radical Front National, também não perde chance para o ataque. Talvez isso explique porque Benzema, craque do Real Madrid e da Seleção, candidato a artilheiro da Copa atual não canta o Hino Nacional: "Se marco gol, sou francês. Se não marco, sou árabe”.
Nos Estados Unidos, onde o futebol foi popularizado em paralelo com a chegada de mais e mais imigrantes pobres da América Latina -- e onde se popularizou sobretudo e em primeiro lugar entre as mulheres --, o esporte é alvo preferencial da extrema-direita local: estariam conspurcando os ideais e os valores americanos. Ironicamente, o futebol avança. O último jogo entre EUA e Portugal, válido pela primeira fase da Copa, foi um dos recordes de audiência televisiva americana, em matéria de esportes salvo o futebol americano.
Evidentemente, o que naufragou é a crítica direitista da Copa, que se deliciava com a possibilidade de um fracasso de um modelo de gestão "mais estatal" e esperava, a partir de um caos qualquer, nos estádios ou nos aeroportos, um modo de voltar ao poder plenamente -- ou de impor "por dentro" suas demandas. Essa crítica jamais se voltou contra remoções, violência policial, vedação de manifestações ou quetais. Ironicamente, ela não está nas ruas, mas sim bem protegida nos camarotes vips dos estádios e dos clubes, torcendo porque é "in", muito embora não ajude muito: é uma distorcida.
Na aclamação do sucesso da Copa, a "Copa das Copas", mora um erro: o que perdeu foi um direitismo qualquer, o que não quer dizer que as coisas estejam perfeitas; esse ufanismo que esconde os males e ataca os dissidentes não é positivo. Os comitês populares da Copa, o Não Vai ter Copa, e quetais impuseram uma nova agenda: a Copa que está aí não é a Copa que estava para ser. É uma outra Copa, que independentemente de ser boa ou ruim, é o produto da contestação à crise da construção social, política e, também futebolística da Copa do Mundo. É a resultante de forças.
E a potência de um não vai ter Copa estava em provocar: confrontar o necessário, o inevitável e o imutável. Fazer o impossível se tornar contingente. O que evidentemente se desfaria se tomado em um sentido literal e, do seu lado, também necessário: NVTC é forte por trazer um quadro onde um evento surgia transcendente -- haveria Copa de qualquer modo -- para a imanência -- a Copa haveria mas poderia não haver, ela estaria sujeita às condições e as regras da contingência. Por isso, nesse exato instante, se é possível que haja violência policial, por outro lado, é impossível imaginar que isso não repercutirá. Imaginar que a Copa não aconteceria necessariamente, por decreto de uma antagonismo qualquer, seria incorrer em alguma forma de pensamento meramente abstrato. Uma outra Copa, uma Copa com direitos, inclusive à festa, não é também um mote errado. Nem menos potente.
Equívoco é, de um lado ou de outro, pretender que a objetificação do futebol possa conduzir a alguma vitória política porque ele, assim como a vida, escorregará pelos dedos das mãos do poder -- porque é nessa relação que estará o objetificador -- como água. Do ponto de vista das esquerdas, nem protestar ou torcer, mas sim protestar por torcida, torcer por protestos, protestar torcendo e torcer protestando.