segunda-feira, 21 de julho de 2014

Pós-Copa: Somos um Estado de Exceção?

Pássaro da Liberdade -- Clarisse Lispector
Ou liberdade para Eles e nós todos.

A prisão política de Fábio Hideki Harano e Rafael Lusvargh em São Paulo, depois de uma manifestação, e a prisão de dezenas de ativistas no Rio de Janeiro, fruto de uma investigação que vem desde Junho de 2013, em uma ampla blitz midiática-judicial-policial levam à pergunta. Mas é uma pergunta que nasce de uma ideia ingênua, praticamente uma superstição. É como se Estado "de Exceção" e Estado "de Direito" fossem antagonistas em uma esquema maniqueísta: bem e mal, mocinho e bandido, Superman e Lex Luthor. Não adianta perguntar se o que está aí é o tira bom ou o tira mau, na verdade, o Estado é sempre um dualismo formado pelo tira bom e o tira mau -- juntos.

Uma digressão necessária: no mundo antigo e depois no medievo, a Casa era o centro da vida e da produção. Nela, havia o senhor -- o despotês ou dominus -- que imperava em sua glória eterna enquanto o villicus -- o vilão -- comandava os servos e distribuía as penas nos termos das leis da casa, a economia. Na economia brasileira colonial, o senhor e o capataz eram a dualidade central da fazenda, que se fazia em Casa Grande e Senzala. O Estado, enquanto modelo econômico de administração da política, sempre teve seus dualismos: o diplomata e o espião, o presidente e o general, o servidor público e o policial. Nunca quem faz o bem deve fazer mal. Um apaixona e o outro pune.

Os Estados, portanto, mantém uma postura de respeito à vida e à integridade apenas quando forçados a tanto. E não por uma pressão mítica-fundante, um carta de intenções como a Constituição, mas sim pela pressão perene dos cidadãos -- e a própria capacidade dos aparelhos de Estado reagirem à pressão da multidão por meio da construção de discursos ou intervenções práticas. O que pode conter esse "Estado" já mais foi interno, por qualquer sistema de "direitos e garantias" judicializado. Do mesmo modo que o Estado é fato puro, transcendente ao direito, seja aquele comum ou achado na rua, ou ao seu próprio discurso jurídico monopolizador.

Desse ponto de vista, o fato é que há, desde 1822 um Estado brasileiro que se reconfigurou ao longo do tempo. Às vezes para melhor, às vezes para pior. Nos seus melhores momentos, também suspendeu direitos. A repressão social foi praticamente uma constante, mas a repressão política permanente, nem sempre. E o momento de repressão política é quando o Estado, perturbado por uma atividade política qualquer, criminaliza o que não é, ontologicamente, crime: uma manifestação política no momento em que ela se torna ato de subversão, isto é, quando ela reúne forças para transformar o que quer que seja sem depender da homologação do aparato. A partir daí, ações de desobediência civil se tornam crimes, atos pacíficos acabam criminalizados por provas plantadas -- e há fortes indícios de que isso aconteceu no caso Hideki -- e qualquer violência acidental ou não passa a ser punida com rigor excessivo.

A democracia foi imposta pelo decreto da multidão que inviabilizou a ditadura militar. Mas ela não resolveu o formidável problema da repressão social, as sementes do mal deixadas pelo corpo repressivo da ditadura militar: seu oligopólio de mídia, seu judiciário, suas polícias...A partir daí, a repressão política, mantida em fogo brando nos últimos voltou a plenos pulmões: a Copa do Mundo e sua demanda por segurança serviram de pretexto para a reunificação operacional das polícias. Depois, esse aparato puniu seus alvos. O clima não tende a melhorar. 

O cenário global de rachas entre blocos na disputa por posições, ironicamente há cem anos da Primeira Grande Guerra, tem degenerado sistemas protetivos de direitos e garantias até então respeitados. Mas a degeneração é uma possibilidade real do sistema.Os Estados Unidos da América passaram a aplicar para seus próprios cidadãos o mesmo que ajudaram, não raro, a patrocinar fora do país: invasão de privacidade, prisões sem devido processo legal, tortura. Do outro lado, a Rússia, apesar da breve inflexão tentada na perestroika, se viu sem gradativamente sem direitos individuais ou sociais. Países como a China apenas repetem a realpolitik que lhe fez, nos anos 1970, apoiar Pinochet e guerrear contra o Vietnã. Quem não era democrático não se democratizou, quem era em parte, enfim, se desdemocratizou como um todo.

A nova rodada de repressão no Brasil, que repete a tragédia como farsa, se deve a um consenso amplo entre a velha direita e endireitados, mas também à incapacidade analítica da esquerda que ainda resiste por aí: não, o sistema não tem escrúpulos. A democracia sempre estará posta contra o Estado. Se há Estado, ele convive com a democracia enquanto lhe for conveniente, seja por bem ou por mal. Quem crê em democracia de Estado (ou no Estado), crê em qualquer coisa. Mas isso que se passa se deve ao fato de que algo foi abalado: Nenhuma ação fica sem resposta, fazer política fora do Estado leva a recaptura por da máquina. É nesses termos que a resistência precisa ser constituída. Mais do que tempos de exceção, vivemos tempos excepcionais.

P.S.: Escrevi minha monografia de conclusão sobre o tema. Há um ano e meio e já antevia algumas tendências. Quem quiser dar uma olhada é só clicar neste link.

2 comentários:

  1. Além de Minority Report, me vem à mente outro conto do escritor Philip K. Dick, aquele em que o perigo mundial é as nações saberem que existirá um perigo mundial e assim a profecia se auto-realiza (não vou revelar o título pois perde toda a graça, embora pensando bem, seja um tema bastante recorrente do escritor).
    No caso, me refiro ao Ministro do Supremo dizendo que o motivo para asilo é pífio e ao cerco policial em torno do consulado. Antes disso acho que havia chance do pedido ser ridicularizado, e tal como o ministro disse, parecer coisa para chamar atenção (e o episódio passar como uma excentricidade, tal como de um cara que pedia asilo aos EUA por estar de saco cheio do Brasil), mas agora os jornais devem estar repercutindo o cerco policial e a rápida declaração do ministro. No conto do escritor, as nações se armam para evitar conflito, mas ao se armarem, ao tentarem antecipar ao perigo, é que acabam provocando a guerra. Agora, é Uruguai que não pode mais ignorar a mídia nem a declaração brasileira. Antes dava para dizer: "jovens, vocês estão numa democracia, voltem para suas casas. Meu país não quer se envolver" Não sei Uruguai, mas dependendo do país diria isso. Só que mesmo o país que diria isso nas circunstâncias atuais não poderia mais responder dessa maneira. Quer dizer, até poderiam, mas... bem, vamos ver o que o futuro nos aguarda!

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