Laerte |
A primeira é uma manifestação sindical tradicional contra o arrocho; a segunda é só uma versão 2.0 das velhas marchas "cívicas" que antecederam o golpe de 64, mas desapareceram gradualmente com a desmoralização da ditadura que foi gerada em virtude daquilo.
Ambas as marchas pertencem ao século 20º e não se comparam a Junho de 2013. Basta ver a leniência prévia do oligopólio midiático com a "mobilização popular".
Evidentemente, a marcha que se planeja para hoje é constituinte de direitos, ainda que seja questionável na forma -- e talvez por poder ser taticamente inoportuna. A de domingo 15, que já tem cobertura privilegiada da mídia, é apenas uma exploração de uma justa indignação com fins de manipula-la.
A crise, sem dúvida, é feia. O governo Dilma travou não por fatores técnico-formais, mas por sua própria engenharia subjetiva -- e projetiva: Dilma errou ao buscar criar um país de classe média, não de cidadãos. Ficou presa em um economicismo, brigou com aliados nas instituições, mas não se contrapôs a eles realmente: certamente lhe falta vocação de se voltar para a sociedade civil.
O desenvolvimentismo, na verdade, acabou sendo uma estranha e inesperada reação ao processo de ascensão social iniciada em Lula. Um jeito de "moralizar" e "racionalizar" o processo que deu certo. Na verdade, a tentativa de organizar a ascensão social é que comprometeu tudo, fazendo se perder o que realmente havia de original e singular no Lulismo.
Em meio aos impasses do desenvolvimentismo, Dilma resolveu apelar para política de austeridade, a qual combateu na campanha eleitoral. A metáfora de que ela serrou o próprio galho, de André Singer, não poderia ser mais verdadeiro. E a fala de domingo último, sem dúvida, foi um desastre: vaiada pelas elites que, no fim das contas, se beneficiaram pelos ajustes, Dilma ficou só.
Só que Dilma, dentre todos os principais candidatos, é a única que não poderia ter aplicado a austeridade (e é o lado colateralmente bom dela ter sido eleita: a austeridade nela aparece como traição, enquanto nos outros seria "remédio amargo").
O ajuste econômico conduzido pelo homem forte do novo ministério, Joaquim Levy, cortou direitos sociais e aumentou tributos sobre as pessoas comuns. Nada diferente do que propunham os adversários de Dilma, mas que ela, justo ela, não poderia concordar.
Não que nada não devesse ser feito, mas que antes de cortar direitos e aumentar tributos, talvez arrochar a sonegação e a evasão de tributos dos mais ricos, tal como tributa-los mais, seria um bom caminho -- só em virtude das principais ilicitudes tributárias, o Brasil chega a perder, ironicamente, 13% do PIB em arrecadação (!), segundo avaliações internacionais.
Enfim, o impasse atual é tão grave que ele ainda acorda velhas doenças. O ato do dia 15 é uma clara manipulação, movida por setores ultraconservadores, pouco afeitos à democratização do país. Mas de tanto o governo bater de frente com manifestações espontâneas, muitas vezes as acusando de serem manipuladas, agora ele colheu uma agenda realmente fabricada.
Evidentemente, nem todas as indignações que se catalizarão dia 15 serão movidas por elitismo e autoritarismo, embora estes sejam componentes óbvios do processo e, sobretudo, sua direção; há uma sincera insatisfação, mas sinceras insatisfações de massa bem manipuladas geram cenários perigosos.
Hoje, a esquerda precisa se organizar a despeito do governo: contra o impeachment falso das elites -- e suas manifestações oportunistas --, contra os oportunistas do Congresso, mas também contra sua política econômica e sua gestão política. A disputa, contudo, passa antes pela sociedade do que pelo Governo, o qual, nas condições atuais, é irreformável por dentro.
Diante do salvacionismo, do messianismo e quetais, precisamos de liberdade e é isto que precisa ser oposto a todos os inimigos da sociedade. Verter a "indignação popular" em indignidade multitudinária.