domingo, 23 de agosto de 2009

O Andrey Rublyov de Tarkovsky

(poster do filme)

O Andrey Rublyov histórico foi um monge e pintor de ícones religiosos, afrescos e iluminuras que viveu entre os séculos 14º e 15º nas terras que mais tarde viemos a chamar de Rússia. Ele foi discípulo de Teofanes, o Grego e trouxe a influência bizantina de seu mestre, mas, tão logo, a superou - o que não é estranho a tudo que envolve o cristianismo russo e mesmo a cultura russa daqueles tempos. Ele foi canonizado em 1988 pela Igreja Ortodoxa. São poucos os detalhes que se conhecem sobre a sua vida e sua obra são as pistas que temos - como este Ícone da Trindade ao lado.

Mas há outro Rublyov, o cinematográfico, aquele do filme homônimo de um certo Andrey Tarkovsy. Por qual motivo um cineasta soviético da segunda metade do século passado buscaria um tema como esses para fazer um filme? Em parte, pela influência materna e profundamente cristã, mas em grande monta pelo momento político em que se vivia naquele país. A complexa obra tarkovskiana é marcada por um reflexão aguda e pela onipresença da arte como caminho para a transcendência - e a película em questão não poderia ser mais emblemática nesse sentido.

O Andrey Rublyov do filme nada mais é que outro Andrey, o Tarkovsky: Ambos são artistas produzindo numa terra fragmentada cujo único elemento socialmente conjuntivo é uma ideologia (cristianismo/socialismo) e a tirania beira a plenipotência - mas é total na sedução que provoca. A arte, por meio do uso da alegoria, torna-se o único caminho para a expressão neste meio, todavia, seu fim último é uma transcendência espiritual - e o cristianismo em um dado momento deixa de ser tratado como ideologia explicativa da proto-Rússia em um dado momento do filme para simbolizar a espiritualidade em sentido lato, uma obsessão do agnóstico Tarkovsky. Dessa maneira, a Arte se põe numa posição onde é difícil distinguir onde ela começa e onde termina a Filosofia, a produção da primeira é deslocada da sua órbita comum e ela mais do que transmitir uma ideia, passa a transmitir uma indagação perturbadora sobre o Homem e o que ele faz na Terra.

Dois momentos são fundamentais no filme: A implacável invasão Tártara que ceifa a vida de todos e faz Rublyov fazer voto de silêncio diante da violência para depois ver Durochka, a menina muda que ele levou para o monastério consigo, ser seduzida pela mesma horda que massacrou os seus o abandonar; o segundo, a busca pelo jovem Boriska, sobrevivente de uma aldeia de construtores de sinos destruída pela praga, ser levado para construir o sino da nova catedral sob as ordens do Grão-Príncipe apenas com o conhecimento que tem, sob a pressão perene para terminar sua obra tão logo.

Em ambos os momentos, encontramos duas alegorias sobre a Rússia em que viveu Tarkovsky: O artista que se emudece porque o silêncio torna-se a única forma de resistência diante da violência total e, paradoxalmente, a vítima que se deixar corromper pelo feitiche materialista; a segunda, a necessidade da produção industrial a qualquer custo moral e humano sob as ordens de uma estrutura política autoritária num cenário em que não há base empírica de onde se possa partir - é o nascimento da criatividade por meio do medo, algo nada incomum especialmente na URSS dos anos 30.

Obviamente, como não há ninguém que entenda mais de arte do que um censor, o filme em questão foi violentado, sofreu cortes, e só pode concorrer no Festival de Cannes de 1969 por conta da pressão do Governo Francês. Não à toa, a única cópia original do filme a sobreviver a tantas mutilações foi justamente aquela que uma das editoras do filme, Lyudmila Feiginova, manteve escondida debaixo da cama.

Enfim, o filme sobre o qual joguei a minha despretensiosa luz de mero espectador, trata-se de uma obra intrincada, perturbadora, porém, indispensável, feita para ser vista, revista e sobretudo refletida - e, quem sabe, respondida, sob pena de devorar aqueles que disso se eximirem.


8 comentários:

  1. Minha experiência com Tarkovsky não foi das melhores. Vi Nostalgia duas vezes, não 'peguei' muita coisa do filme. Apesar disso, a fotografia me impressionou bastante.

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  2. Luis Henrique,

    Ele é um autor difícil, muito difícil mesmo. Trata-se de um baita intelectual forjado num regime totalitário - e tão idiossincrásico quanto o "soviético" - que ainda mantinha os olhos bem firmes no eterno. Eu devo ter assistido uma três vezes a Andrey Rubliyov para ter sacado certas nuances - e estou certo que muita coisa me escapou. Todas as vezes que eu vejo seus filmes, fico perturbado, mas como o próprio Tarkovsky dizia: "Minha proposta é fazer filmes que ajudem as pessoas a viver, mesmo se às vezes eles causem tristeza".

    abraços

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  3. Hugo,

    Bela análise, objetiva, bem-informada, com um excelente pano de fundo histórico, de um filme do mestre russo que, por razões que eu não saberia explicar, foi menos cultuado no Brasil do que outras obras dele em que a narrativa é bem menos fluente.

    Um abraço,
    Maurício.

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  4. Obrigado, Maurício, vindo de uma pessoa que entende tanto de cinema quanto o amigo, só posso ficar extremamente linsonjeado pelo fato do meu humilde post ter feito algum sentido. Também não sei porque esse filme não é tão valorizado por aqui, dado o fato que ele foi um verdadeiro divisor de águas na carreira da Tarkovsky, pois mudou sensivelmente sua relação com os burocratas da Goskino.

    Aliás, nunca tinha ouvido sequer falar em Andrey Rublyov até descobri-lo por acidente no Youtube (!), o que provocou essa minha recente investigação em relação a obra tarkovskiana. Zerkalo já está aqui na minha escrivaninha esperando para ser assistido - dessa semana não passa!

    abraços

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  5. Hugo,

    Tão difícil quanto o Tarkovsky, talvez apenas Kim-ki Duk e David Lynch.

    Vi alguns clipes, arrisco dizer que Andrey Rublyov não é tão 'cultuado' assim em virtude do aprimoramento plástico/poético que Tarkovsky iria alcançar em obras posteriores, nas quais a 'cara' (linguagem) do diretor se consolidou - comparado a eles, Rublyov parece ter uma narrativa mais convencional. Por exemplo, quantas sequências do tipo 'sonho' (como aquela de 'Espelho' que você indicou) há em Andrey Rublyov?

    Um abraço

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  6. Hugo,

    Parabéns pelo texto. Analisar uma obra do Tarkovski não é tarefa fácil, mas você conseguiu fazer isto com muita clareza. Realmente, a simbologia e as metáforas utilizadas pelo diretor são fascinantes! Ainda não vi este Andrey Rublyov, mas agora fiquei com vontade... hehe

    É uma pena que seja tão difícil encontrar os filmes do Tarkovski (e do cinema russo, em geral) aqui no Brasil. Talvez seja por isso que há tão poucos textos em português sobre o assunto. Que bom que você está contribuindo.

    Abraço

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  7. Luis,

    São dois autores muito complexos também, mas há muito ainda em Tarkovsky a ser descoberto - seja pela sua complexidade intelectual quanto pelas condições nas quais ele produziu e que acabaram sendo cabais para sua formação enquanto cineasta.

    Uma das coisas que atrapalharam Andrey Rublyov foi todo o tortuoso processo que envolveu desde sua produção - onde houve boicote em relação a verba - até as futuras mutilações, passando pelça quase não exibição em Cannes e a própria quase não exibição na União Soviética.

    O cortes sempre fizeram o filme não ser devidamente compreendidos por parte da crítica - e muito menos pelo público - e as próprias referências simbólicas e metafóricas que ele fazia uso eram de difícil compreensão para alguém que não estivesse a par do que se passava realmente na URSS.

    Ok, os críticos de Cannes até entenderam a obra, mas a crítica de um modo geral nem tanto - e no Brasil, trata-se de uma obra quase desconhecida, a inteligentsia cinematográfica nacional praticamente relegou a obra ao esquecimento que os burocratas bem desejavam para ela.

    No fim das contas, é um obra que faz muito mais sentido agora, com sua versão original à disposição e o intrincado mosaico em seu entorno razoavelmente delineado.

    abraços

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  8. Rodrigo,

    Valeu, meu velho, mas você não tem ideia de como foi difícil esboçar essas mal traçadas linhas - acabei parindo elas ontem, depois de dias ruminando conceitos e impressões, tentando montar um esquema que conseguisse ser razoavelmente claro.

    Sobre o cinema russo, não apenas ele, como boa parte da produção cultural e a própria política daquele país nos são um enigma - mas um enigma que precisa ser revelado e nos seria muito últil: Creio que temos muito o que descobrir com os russos - e eles conosco -, é uma pena que exista esse abismo cultural entre os dois países.

    abraços

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