domingo, 26 de junho de 2011

A Europa e o Espaço Schengen: Exceção, Imunização e Migração

Espaço Schengen:
O Espaço Schengen refere-se ao acordo homônimo travado entre vários Estados europeus, mediante o qual eles resolveram se integrar fisicamente, abrindo suas fronteiras para possibilitar a circulação de pessoas pelo continente. Ele não se confunde com a área da União Europeia nem com a da Zona do Euro, mas também faz parte do projeto de integração continental europeia, que se opera em múltiplas frentes; Sua realização remonta ao ano de 1985, mas sua institucionalização data de 1997. No entanto, agora, as coisas começaram a mudar: há poucos dias, em uma cúpula europeia em Bruxelas, os Estados-parte deliberaram pela emenda do acordo, criando assim cláusulas de salvaguarda para situações excepcionais - a saber, pressões de imigrantes nas fronteiras, mas o estado de emergência em questão foi decretado sob o mote da preocupação com o processo revolucionário no norte da África. É curioso relacionar imigração em massa com o fim de ditaduras: o que está em jogo, sejamos honestos, é a imunização da velha Europa não só em relação a outras etnias como também a novas ideias.

Schengen reúne mais membros do que a União Europeia e a Zona do Euro, o que demonstra a falta de confiança de muitos europeus frente ao modo como se trava os dois últimos projetos. Há mais gente integrado fisicamente do que política e economicamente, isso é sintomático. Só estão fora mesmo do Espaço Schengen a área de influência direta da Rússia - mesmo os bálticos estão lá - e os países que, um dia, formaram a Iugoslávia. O Reino Unido está lá com um pé fora e outro dentro do mesmo modo que está na UE - e a Irlanda, apesar de integrada ao projeto europeu, está parcialmente dentro do Espaço Schengen. Países da Escandinávia e a Suíça, que, por razões internas, estão com um pé dentro e um fora da UE e da Zona do Euro, estão lá também. Ainda assim, o mito do encanador polonês, o rude e pobre trabalhador do leste que viria tomar o emprego dos trabalhadores dos países desenvolvidos - a troco de baixos salários, só que legalmente - sempre esteve de alguma forma no ar ou, pelo menos, alimentando o discurso xenófobo da extrema-direita. Agora, reforça-se a imagem do muçulmano - árabe, otomano ou negro -, que irá se usar das brechas de Schengen para corromper o bem-estar, a cultura e a economia da Europa.

A questão da imigração e da condição do imigrante é central no mundo contemporâneo, como pontuam com precisão Negri e Hardt, sem pensar nelas, é impossível problematizar a questão social nos dias de hoje. A condição do imigrante e, mais até do que isso, o próprio  fluxo migratório, representa um potencial revolucionário ímpar em um mundo de estruturas políticas e socioeconômicas cada vez mais rígidas. É essa possibilidade de movimentação corpórea que põe, a bem da verdade, em xeque o quase-perfeito esquema tirânico da sociedade de controle. Poder escapar à área de jurisdição do tirano ou adentrar-lhe como corpo estranho, fluxo indecodificável - o horror em pessoa para o déspota - são as grandes ameaças a essa ordem. Isso não é novo, embora agora, pelas contingências da História, tenha tomado uma intensidade sem igual; essa é a história de um sem número de povos, inclusive a dos judeus na Europa, como a vida de Spinoza, para ficar em um exemplo que agradaria a Negri, ilustra: sua família foge do Portugal tomado pela Inquisição para aportar na Holanda, ainda que fosse para ser capturada pelo sábio déspota da Casa de Orange - é daí que se pôde operar a produção de diferença, esvaziando o poder despótico da Igreja e da Coroa pela fuga, para, nas muitas zonas em que o radar do despotismo esclarecido flamengo não alcançava, construir um país razoavelmente mais livre e tolerante ao norte. 

E falando no sempre necessário Spinoza, não é demais lembrar que mesmo às voltas do Tratado Teológico-Político completar 350 anos, ele continua tão atual: hoje, ainda, continua-se usando o discurso da superstição para fazer os súditos combaterem contra si como se por si fosse; o mito do encanador polonês ou mesmo do muçulmano corruptor da cultura europeia são das muitas narrativas típicas que o tirano faz uso para inimizar os trabalhadores europeus contra seus companheiros de desdita. De repente, são as pessoas que ocupam funções que nenhum europeu gostaria de ter para si que são apontadas como responsáveis por um desemprego estrutural, causado pelo próprio exercício da tirania na forma da atual governança União Europeia - pior ainda, só para ficar entre amigos, não custa  relembrar as palavras de Deleuze no Abecedário sobre a questão social na França dos anos 30: lá, como em toda Europa, a construção da rede de bem-estar social e a conquista de direitos pelos trabalhadores causou mais estupor à boa sociedade do que a própria invasão nazista. A mesma direita francesa que hoje usa a integridade da rede de bem-estar social (que ela nem defende, aliás) como forma de inimizar seus nacionais contra os imigrantes, é a mesma que um dia se opôs à sua criação - e a nega ao deixar de fora os imigrantes, cada vez mais responsáveis pela produção de riqueza em um continente estagnado.  

O pré-cosmopolitismo limitado que o Acordo de Schengen trouxe à Europa abria um flanco importante, ao começar a estabelecer uma neutralização parcial do mecanismo de nacionalidade - responsável pela atribuição de identidade subjetiva primordial do Estado, qual seja, aquela que reduz a multidão ao binarismo nacional-estrangeiro, por meio do qual começa a se operar todo o esquema de regulação da capacidade de agir do indivíduos, inclusive no que toca à sua autonomia interior.  A emenda feita ao soneto, portanto, começa a erodir o espírito do acordo e o que poderia evoluir, estagna-se. O mesmo sistema que explora os imigrantes é aquele que ergue válvulas - e não barreiras - fronteiriças para tentar decodificar o fluxo migratório - para, aí, legitimar melhor a construção de uma figura intermediária, o imigrante (cuja humanidade relativizada é porta para a sua sobre-exploração laboral) e assim justificar como na Europa igualitária, uns são mais iguais dos que os outros. O imigrante interessa ao Capitalismo europeu seja pelas funções que desempenha quanto pelo modo como poder exercê-las, mas é preciso que ele esteja adstrito aos mecanismos de controle jurídicos e políticos que permitam isso e, mais importante, que isso tenha legitimidade junto à sociedade. 

Para além da economia, interessa ao poder europeu neutralizar também neste momento os ventos que sopram do norte da África; faria mais sentido fechar mais as fronteiras em relação à Tunísia e ao Egito, se o problema fosse mera proibição de entrada, enquanto aqueles países estavam sob ditaduras enferrujadas, não agora que, em tese, têm a oportunidade de se refundar. O modo e o que se propõe nessa refundação, com efeito, não interessa à Europa, sobretudo agora que espanhóis lotam as praças de seu país enfrentando o farsesco sistema parlamentar local à moda do Egito. A medida em tela consegue ser, portanto, ao mesmo tempo sintomática e agravante da crise europeia atual, cuja soma de uma esquerda torpe a líderes ineptos marca o tom da caminhada para o abismo.

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