"A história universal não é senão uma teologia, se ela não conquista as condições de sua contingência, de sua singularidade, de sua ironia e de sua própria crítica”
(Deleuze e Guattari)
Céu azul no Planalto Central |
Duas formas distintas (e, de certa maneira, antagônicas) de interpretação da realidade - e, por conseguinte, meios de intervenção na mesma - sempre dividiram o pensamento ocidental. A primeira delas, nascida com Parmênides de Eleia, se ancora na noção de que há um Ser profundo, unitário e totalizador - em suma, que as coisas têm uma essência -, enquanto a outra, oriunda do pensamento de Heráclito de Eféso, parte de um premissa oposta: o rio no qual entramos hoje não é o mesmo que o de ontem - não há uma essência nas coisas, elas são de acordo com a função que exercem e a história nada mais poderia ser do que um amontoado de cortes, motivados pelos devires de cada época, em um cenário de franca contingência.
O veio principal da tradição iluminista, fundada em Kant, vê a História como uma linha reta, dotada de um propósito como se, no caso de ser possível voltar a fita da História, chegaríamos exatamente ao mesmo ponto de hoje - uma verdadeira Teologia, capturada mais tarde pelos positivistas que tanto influenciaram nosso ideário. O pensamento marxista se opõe a isso, sobretudo pela forma como ele posiciona a História, em resposta ao pensamento hegeliano - mas é mais tarde, nos pós-estruturalismo, que isso tomará proporções inacreditavelmente maiores e subversivas.
Essa breve digressão filosófica diz mais respeito ao atual momento do debate nacional do que parece: a queda de Nelson Jobim da Defesa e a ascensão de Celso Amorim é um corte profundo no Governo Dilma dado por ela mesma. Depois do colapso de Palocci - uma tragédia anunciada, um erro desmedido -, Dilma deu um golpe de mestre no Ministério dos Transportes quando derrubou a camarilha que, nada-nada, estava atravancando o PAC e pondo em risco a Copa do Mundo e as Olimpíadas do Rio: ainda colocou Blairo Maggi em xeque e, no fim das contas, bancou o técnico - e especialista em transporte ferroviário - Paulo Sérgio Passos no cargo.
Com Jobim, um interlocutor dos militares junto ao Governo, ela soube não cair no jogo dele: o bloqueou quando ele tentava assumir o controle do seu Governo, o isolou no momento em que ele pedia para ser demitido - e, com falas descompensadas contra a Comissão da Verdade, buscava sair deixando um crise - e o demitiu quando ele finalmente errou. Pior do que isso, substituiu Jobim por um nome não só mais capaz do que ele como também extremamente popular na base lulista.
Há quem não entenda a sutileza dessas mudanças, mas vivemos um novo momento, sem dúvida: Dilma esteve engessada entre uma ala próxima muito preocupada em contê-lo e transforma-la em figura anódina - que apenas capturasse a herança de Lula por inércia e se fingisse de morta no debate público - e quem desejava vê-la agindo de acordo com os desígnios diretos de Lula - o que nem o próprio gostaria de fazer.
Sobre o primeiro item, o preço a pagar para não atritar com ninguém era, realmente, o desgoverno. A tensão com a base no caso dos Transportes foi uma aposta: Dilma viu que o ônus de tensionar com um partido médio da base como o PR era menor do que não realizar as obras de infraestrutura necessárias para o país. No caso de Jobim, esperou o momento certo para derruba-lo e iniciar o primeiro projeto sério para a Defesa do país.
No que toca ao segundo, é fato que nem o melhor dos motoristas é capaz de arrumar o retrovisor do carro corretamente quando o automóvel é guiado por outro. Dilma depende de uma certa linearidade para funcionar; Lula poderia muito bem colocar Henrique Meirelles no Banco Central e manter Mantega na Fazenda, mas Dilma jamais conseguiria trabalhar assim - para o bem ou para mal, a forma dela arranjar o complexo Lulista é, e tem de ser, outro. Isso valeu logo de cara para o BC, depois para a Casa Civil e agora para a Defesa.
São riscos claros, mas a opção que Dilma tomou é igualmente límpida e cristalina: é melhor perder pela ousadia de fazer as coisas do que pela inércia ou a ilusão de fazer um omelete sem quebrar os ovos. Renato Rovai não poderia estar mais certo ao traçar um paralelo entre a demissão de Jobim e o debate da Bandeirantes no Segundo Turno: foi um dos raros momentos quando Dilma foi Dilma e assumiu o controle do jogo, dando um corte - no adversário, à moda do futebol, e na História. Isso ajuda a criar não apenas um ambiente de otimismo e empolgação, mas também a reverter um cenário adverso que causa todo o tipo de confusão.
Como ainda bem anota Idelber Avelar, todo tipo de barrigada blogosférica e jornalística se sucedeu aos parcos instantes entre a queda de Jobim e a nomeação de Amorim. Isso, de fato, é um problema tanto da qualidade da oposição que ambientalistas e a extrema-esquerda faz ao Governo quanto, acrescentamos aqui, do cenário de confusão e incertezas dentro dele mesmo - além do modus operandi de uma certa ala governista que confunde apoio ao governo, que é ele mesmo uma coalizão ultra complexa, com algum delírio paranoico purista de apoio incondicional a decisões que, a bem da verdade, são resultantes da tensão de forças em seu interior.
Sobre a leitura errada de certas áreas do campo governista, não é possível concordar com gente do porte do Rudá Ricci que insiste em teses como a do eu falei, eu falei no que toca aos Transportes - ou a sua compra ingênua da crise que a mídia está tentando criar no que toca à entrada de Amorim na Defesa: se Dilma capitulasse a isso, ela estaria optando por não realizar um governo em prol de fazer alianças (e antes um governo sem alianças do que alianças sem governo). De posições como a de Eduardo Guimarães não é possível concordar em nada: não existe unidade em uma coalizão complexa como a de Dilma (nem pode existir) para existir uma linearidade entre os problemas ministeriais, tampouco para dizer que essas mudanças foram um erro - mas sua posição é recorrente de certas alas governistas, tentando achar uma razão (ou falta dela) em decisões que decorrem de um atrito de racionalidades.
Em muitos momentos, Dilma se esquece ou subestima a importância de movimentos como esse. No entanto, se ela se desprender dos grilhões e for capaz de imprimir esse ritmo de forma constante, dando uma função histórica à racionalidade administrativa que domina como poucos - se movendo pelas dobras da História e estabelecendo cortes nela no momento preciso -, fará, por certo, um governo melhor até do que o de Lula, em que pese o cenário mundial. Seja como for, ela acertou dessa vez e o ar é outro no Planalto agora. Se ela não aprendeu essa lição nas eleições do ano passado, é bom ter aprendido agora e não se limitar a lampejos.
Hugo, você ainda consegue estudar pras disciplinas do curso de direito e ler obras filosóficas fazendo todas essas excelentes análises políticas?
ResponderExcluirTe admiro!
Coitado de mim, Zanatta, eu só me esforço um cadinho. Mas sobre a minha vida no Direito, só estudando na mesma sala que eu para saber como é - hoje, na gloriosa aula de Direito Civil, estava relendo uns pontos do Anti-Édipo enquanto o professor dissertava sobre as maravilhas do direito de construir...
ResponderExcluirabração
bom, até agora o recuo de Dilma no combate a homofobia serviu para provocar, sendo entendido como aquiescência e consentimento, a maior mortandade de viado que o Brasil jamais viu!
ResponderExcluirtanto que atinge não-viados: pai e filho, ou amigos, abraçados tem sido alvejados.
E disso ela não se retratou ainda, e sinto que, sapatão como é (nada é mais homófobo que uma sapatão caminhoneira), não o fará.
"Mas Dilma não é lésbica". Pode não ser, pode preferir ou gostar sexualmente apenas de homens (ou de rola simplesmente). Mas sapatão ela é.
Lucas, não foi Dilma ou o PT que agitaram um campanha apelando para superstições de cunho moralista. Essa bola de neve está rolando desde Setembro do ano passado com as eleições.
ResponderExcluirMas foi Dilma, e não foi o PT, que cedeu a isso uma vez eleita, a troco de salvar Paloffi (o que por fim não adiantou de nada, e ainda bem).
ResponderExcluirEstadistas dignos do nome contrariam seu povo, ou suas bases, em nome de um ganho civilizatório. Winston Churchill que o diga...
De resto, não é tanto você (mas é também, uma vez que imaginária a homofobia ataca qualquer um), e muito mais eu que passo a correr riscos que antes não corria e tenho minha fruição positivamente diminuida porque essa borra-botas achou por bem dizer que combater homofobia é "fazer propaganda de opção sexual" (sic!).
Como se a civilização ocidental cristã não faça, desde 600d.C., propaganda diuturna da opção pela heterossexualidade (que, Freud nos lembra, naturalmente não seria prevalente como é). Mada essa bruaca ignorante ler Foucault.
É possível criticar Dilma por essa declaração, mas não ver causalidade entre o que ela fez e a onda de violência homófoba - que começa já no final do ano passado como consequência de uma eleição pautada em questões morais (e não foi por Dilma, embora a única posição clara anti-homofobia tenha sido de Plínio de Arruda).
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