Os Paradoxos do Desenvolvimentismo no Governo Lula-Dilma
HUGO ALBUQUERQUE
Ao longo dos últimos anos, o Brasil se viu em meio a uma assombrosa transformação. O período em questão diz respeito ao governo petista, inciado por Luís Inácio Lula da Silva e continuado, até o presente momento, por Dilma Vana Rousseff: segundo dados da OCDE e do FMI, a pobreza foi reduzida praticamente pela metade, a desigualdade social, medida pelo índice de Gini, também registrou tendência de baixa, ao mesmo tempo em que o PIB per capta cresceu consideravelmente - verificando-se, também, que importância relativa da renda do trabalho cresceu frente à renda nacional, não retomando, ainda, o mesmo nível do final dos anos 80, embora apresente uma tendência de crescimento e empoderamento dos trabalhadores nunca antes sentido.
Tudo isso foi fruto de uma série de políticas públicas que combinaram ampliação e capilarização da oferta de crédito para os pobres, defesa dos trabalhadores com políticas favoráveis à melhora da condição de emprego e ao aumento dos salários e, por fim, com a criação de programas assistenciais como o Bolsa Família que, por sua vez, servem para salvar vidas. A mágica do processo está no fato de que, em um primeiro momento, o capital foi articulado pelo Estado, sob o governo petista, para ganhar dinheiro com uma política que é, antes de mais nada, anticapitalista - uma vez que não é o piso da sociedade que foi apenas elevado, mas mais do que isso: a distância do piso em relação ao teto que foi diminuída, marcada, ainda, por uma reversão do processo exploratório.
Essa mudança fenomenal no âmbito socioeconômico produziu, por óbvio, ecos poderosos na política. Como uma sociedade historicamente estratificada, que mesmo em seu períodos de maior dinamismo o fez justamente por conseguir manter a distância relativa entre as classes no interior do sistema, reagiria diante de tamanho abalo? Seja por sua envergadura ou pelo seu caráter abrupto, não havia como isso passar desapercebido. Sobretudo, em um momento no qual nosso país, com sua tradição bacharelística e o meritocratismo herdado do positivismo, se via governado por um operário, nordestino e sem diploma universitário.
O debate imediatamente levantado diz respeito à indignação pela mudança da correlação de forças sociais por parte, naturalmente, da classe média tradicional - um caldo de profissionais liberais, empregados em cargos de chefia, pequenos empresários e alguns funcionários públicos. Além disso, testemunhamos uma discussão teórica fortíssima no campo da esquerda. Se, por um lado, em um país no qual saber o seu lugar sempre foi regra, agora as coisas estão definitivamente fora dele; se, por outro lado, vários setores da nossa intelectualidade sempre desejaram que assim fosse, isso veio por vias que não eram as imaginadas causando desconforto até mesmo naquele lado...
No Brasil, consumir sempre foi posto em termos absolutamente estamentais: era privilégio voar de avião, comprar roupa, comer carne. A esquerda, baseada em uma herança católica e, ao mesmo tempo, no catastrofismo próprio do socialismo ortodoxo, enxergava no consumo o pecado e o desvio do caminho da salvação revolucionária. Com o fracasso do chamado neoliberalismo, que o PSDB assumiu de forma tardia e ambígua, e a incorporação da ferramenta neokeynesiana por parte do PT, os tucanos rapidamente compraram um discurso que é um misto da má consciência moralista com um ligeiro flerte na onda de indignação medioclassista. No outro flanco, setores expressivos na intelectualidade de esquerda, embora não tão relevantes eleitoralmente, racham com o PT e fundam o PSOL, se colocando em uma posição muito parecida frente à corrupção que os tucanos, mas assumindo, por seu turno, uma postura de denúncia àquilo que julgam ser uma inclusão "meramente pelo consumo".
A partir daí, nos deparamos com um quadro no qual no qual o consumo e o processo de inclusão social são os pontos nevrálgicos do debate. Em relação a isto, três questões se afirmam imediatamente: (1) Poderia alguém ser efetivamente excluído do sistema na contemporaneidade? (2) Seja qual for a resposta da primeira questão, poderia alguém ser incluído realmente sem ter acesso ao mercado de consumo? (3) O ato de consumir é ou não empoderador?
Não pretendo ser definitivo em minha breve exposição, mas é necessário delimitar uma linha de análise clara e adotar, ao menos provisoriamente, posições frente a tais questões para poder entrar na problemática. De tal forma:
(1) Entendemos que não há mais exclusão total do sistema; no pós-moderno, mesmo o excluído está incluído na máquina. Portanto, ele está incluído enquanto excluído. O problema central da pós-modernidade, como já nos adiantou Debord, é que o separado está reunido enquanto separado. Essa é a tônica geral, seja em questões sociais, raciais, de gênero etc. Não foram as políticas do governo Lula que deram início a tal processo - ao contrário, foi tal processo que permitiram sua chegada ao poder e ele, por sua vez, o potencializou; os bárbaros estão dentro do Império, eles não o invadiram, apenas acordaram por qualquer motivo - agora, considere-se, sequer há o lado de fora do Império. Uma vez incluídos enquanto excluídos, é preciso se organizar e ser incluído efetivamente, custe o que custar, mesmo que isso pressione a estrutura imperial para além do que ela pode aguentar: eles sempre lutam por sua própria liberdade
(2) Bens e serviços são adquiridos, por meio da moeda - desmaterializada em fluxos informatizados ou não -, no mercado de consumo. Qualquer coisa. Alimentos, remédios, roupas. Certamente, a clivagem entre produção e realização do valor, trata-se da problemática elementar do Capitalismo, motor de seu movimento doentio e de suas crises cíclicas. É certo que o Capitalismo deve ser combatido, mas a questão é como articular isso no aqui-agora: como fazer os pobres adquirirem remédios neste instante? Quem está incluído enquanto excluído, atentem-se, não está fora da cadeia de consumo: isso é próprio da máquina que engoliu a nós todos, o que muda é que o sem-teto deixado para morrer, sem amparo, está colocado de certa modo nessa cadeia: ele anda quilômetros pela cidade, catando papelão e diversos tipos de materiais recicláveis, recebendo, como recompensa, quantias miseráveis. Ser Incluído enquanto incluído não é, portanto, fazer parte da cadeia de consumo, mas sim está na posição de consumidor nela, isto é, como sobrevivente e não como cadáver.
(3) Sim, o ato de consumir, como a tese anterior suscita, é empoderador. Porque se consumir permite o sujeito estar efetivamente incluído, ao menos, economicamente, não poderia ser diferente. Para além disso, esse é o ponto central da nossa hipótese: ao passo que a multidão, caracterizada por sua atividade produtiva, passa a realizar o valor que produz, ela passa a sentir-se co-pertencente ao ambiente econômico no qual ele se encontra; tal processo tem desdobramentos que vão para além do econômico, ecoando na esfera social, cultural, política etc. O operário fabril chinês que fica a maior parte do dia processando uma matéria-prima africana ou sul-americana que, depois, será exportada para Europa ou EUA, não se sente parte - nem poderia - daquele ambiente - politicamente, ele tende a ser passivo. Se a destinação daquela produção, mesmo que de forma dirigida, fosse para o mercado interno, alteraria substancialmente as relações socioeconômicas, logo, políticas: ele sentiria o quanto e como produz, o que faria com que nada seria como antes. Ele sentiria como as demais singularidades, se articulam para produzir - a partir desse co-pertencimento sensível é possível pensar efetivamente na constituição do comum. Em sentido parecido, na antiga União Soviética, não se produziam largamente bens de consumo: era uma sociedade organizada para o trabalho na qual os operários, em ritmo militar, cumpriam quotas de produção de material bélico, aeroespacial, enquanto não conseguiam ter liquidificadores ou ventiladores.
Nossa hipótese, portanto, não gira em torno de qualquer fetichismo em relação ao consumo, mas sim de que uma alternativa possível, passa pelo entendimento que o aumento do consumo de quem produz, no lugar do keynesianismo de guerra ou a economia de exportação, ambas impossíveis de universalização sustentável no plano global - e destinadas ao fracasso - abrem espaço para a construção de uma alternativa. Tampouco, isso não exclui o debate e a luta pela transformação dos padrões de consumo - entendemos, inclusive, que essa transformação é, no mínimo, facilitada quando por qualquer motivo, os produtores tornam-se senhores da realização do valor que produzem. Também não estamos falando de qualquer espécie de nacionalismo econômico, algo completamente inviável nos dias atuais: o que falamos não é da autosuficiência econômica dos Estado-nação, mas sim a autosuficiência dos produtores: tal processo não exclui a partilha - o Brasil do período não viu o seu nível de intercâmbio comercial diminuir por isso -, mas que essa partilha entre as ainda existentes comunidades nacionais se dê de forma multitudinária. Não falamos de exclusão do intercâmbio entre os países, mas do intercâmbio estéril no qual quem produz não (pode) desfruta(r) dos seus próprios produtos.
O aumento dos salários não reforça, pelo seu lado, a relação de emprego da mão-de-obra formal: mais salário não equivale a um trabalhador mais passivo, mas a uma desproletarização da própria produção; o trabalhador, tal como o escravo, é alguém que por sua própria condição de existência é um explorado, portanto, da mesma forma que um escravo colonial, ao ganhar um reforço no seu angu, consegue ter mais forças para fugir para o quilombo, o aumento do emprego formal e da renda salarial criaram mecanismos para a insubmissão e não para o contrário - eis aí o número de greves, em pleno curso, que estão a nos provar tal processo. Também não reside, aqui, uma crença no (social) desenvolvimentismo assumido pragmaticamente pelo PT governista - com menos convicção em Lula e mais ênfase em Dilma - como forma de resolver os nossos problemas.
A questão é que o petismo, enquanto movimento ambivalente e em permanente metamorfose, acertou direta e mesmo colateralmente ao trazer para o centro da questão aqueles que produzem enquanto consumidores ativos. A partir daí, ele abriu uma caixa de pandora benigna que não sabemos se ele é capaz de compreender ou, mais ainda, conseguir responder aos seus desdobramentos. Ainda que no plano dos grandes números, no mundo paranóico do tecnocrata do Estado ou do Mercado - se é que nos interessa considerar essa distinção -, não há como escapar há conclusão de que há bem mais por detrás desse enorme cataclisma quando a poeira baixar, nos permitindo ver tudo com mais clareza.
A chamada classe C emergente é um o proletariado endinheirado junto a ex-pobres - na verdade, uma prestes-a-não-ser-mais-classe C , pelo crescimento da renda - ou, como define o nosso Bruno Cava, o Consumitariado: ele altera substancialmente o colorido da sociedade e da política brasileira. Não há mais efeito pedra no lago como anteviu, frente à vitória de Lula sobre Geraldo Alckmin em 2006, o ex-ministro Franklin Martins. Estamos ainda muito longe de uma democracia real, mas as condições materiais (ou falta delas) que tornavam tais setores mera massa de manobra eleitoral foram-se - em menos de uma década, algo surpreendente, convenhamos.
É preciso que adentremos mais ainda no terreno da questão do empoderamento pela renda: A empregada doméstica que adquire um celular com câmera filmadora pode se endividar com isso, mas tem a oportunidade de denunciar a violência policial que passa desapercebida em sua vizinhança - a dívida, ainda que a controle em certa medida, não tem dimensão real, a posse do bem consumo sim, sobretudo sua operacionalização. A operacionalização do bem adquirido, inclusive, serve para minar os elementos reais coercitivos que dão validade real à dívida ou mesmo das regras de submissão laboral; no exemplo em tela, o mecanismo policial é efetivamente minado.
O problema está, justamente, no uso do mecanismo desenvolvimentista, determinado pelos embates na cúpula governista: ainda que como instrumento, ele não nos parece capaz de lidar com os desdobramentos oriundos da ampliação da capacidade de agir dos sujeitos, que ele próprio catalizou. Tal afirmação pode ser traduzida em uma questão que se torna chave neste momento: Como lidar com as greves, com as acampadas, com as marchas pela liberdade?
Se houve neste país uma curiosa articulação na qual, a partir da direção do Estado, se utilizou o capital para a construção de uma indústria de redução da miséria, das desigualdades e para o aumento da renda como se desvencilhar do mesmo capital agora? O paradoxo está no fato que o desenvolvimentismo, mesmo em sua versão atualizada, posta em função de transformação social e não mais de afirmação nacional, não se apresenta como ferramenta para construir o Novo: embora ele possa criar as condições para o colapso da máquina esquizofrênica que alimenta, à base da sobrecarrega, ele jamais coloca no lugar as partes desconexas em permanente atrito, modo como se manifesta socialmente o Capitalismo - quando muito, ele as justapõe, não as organiza efetivamente, pois isso exige uma atuação em nível molecular que seus tentáculos não são capazes de realizar por sua própria natureza.
O aumento do emprego e da renda salarial, sem ter em vista políticas para superar o trabalho empregado e assalariado está, aqui, exposto a um problema semelhante ao que vimos nos Estados europeus nos anos 70: a reação dos donos e administradores do Capital passa a se expressar pelo repasse de "prejuízos" que seu controle sofre para cima dos trabalhadores e demais setores da sociedade na forma de inflação. Para além disso, no capitalismo cognitivo hodierno, as chamadas externalidades positivas dos economistas, o acréscimo imaterial causado por avanços sociais são capturados: o salário aumentado na base pode ser corroído na ponta pelo aumento dos preços. A melhora de cidades e bairros operários, causados pelo aumento da condição geral de vida de seus habitantes, passa a ser tragada pela especulação imobiliária.
O agente que abriu a caixa de pandora benigna, deflagando uma fluxo libertador, agora precisa escolher entre impulsionar mais ainda seu movimento ou recalca-lo - e o Capitalismo, conste-se, é totalmente dependente de tal processo de empoderamento, mas ele precisa controla-lo logo adiante, ainda mais quando os setores fortalecidos se sentem parte enquanto parte e não como separado do sistema. A linearidade temporal, própria do progressismo, cai por terra enquanto realidade e, a partir daí, é desvelada como abstração ideal a serviço do poder que é: não há, nem pode haver, marcha para frente, uma vez que é próprio do sistema se mover em círculos e dando solavancos por sua necessidade.
Sobre a linearidade cronológica, essa curiosa herança da filosofia de Kant, aliás, cabe uma pequena digressão: ela é das bases do Estado moderno e constante na nossa era imperial, pois ainda é fundamento da forma como articula o que restou dos Estados-nação (agora, enquanto instrumentos do Império): o conceito de tempo como a sucessão de acontecimentos em uma série rígida e esquemática, na qual passado, presente e futuro se concatenam, serve como base para o funcionamento da forma-Estado, a saber, o discurso de dupla-hélice fundado no medo-esperança como nos adiantou, há tanto tempo, Spinoza; não agimos ou deixamos de agir porque um guarda furioso nos obriga o tempo todo, mas sim porque somos movidos pelo discurso hegemônico, no qual deixamos de agir pelo futuro, seja pelo medo de punições vindouras por atos fora das leis postas e impostas ou pela esperança da Salvação, o que nos faz abrir mão de muita coisa no presente.
Perdemos, pois, a única coisa que realmente temos: o aqui-agora, o onde-quando a atividade se dá, o que torna toda ação dirigida, meramente passiva. O desenvolvimentismo jamais esteve fora do horizonte salvacionista, mas desta vez, com Lula, algo mudou: o uso publicitário de que a esperança venceu o medo - uma falsa dicotomia em termos filosóficos, é claro -, esconde uma verdade inescapável acerca do Lulismo que é - além da recusa da estética da miséria e da tentativa de articular as partes desconexas -, justamente, de fazer uma política de alegria e não de esperança, diferentemente dos velhos bolsheviks: ele não pediu para os pobres abrirem mão do seu aqui-agora em nome da Causa, como gostariam tantos ideólogos da "esquerda", mas articulou com uma virtù renascentista a resolução imediata de problemas emergenciais como a fome.
O que não podemos dizer, entretanto, é que o Lulismo tenha neutralizado o dispositivo futurista: ainda que não tenha aceitado a possibilidade salvacionista do sacrifício da integralidade do presente em prol do futuro, nem por isso ele deixou de insistir na construção do amanhã - um equívoco, com efeito, ainda que previsível na medida em que isso está presente tanto na hélice católica do PT quanto em seu veio marxista ortodoxo, ambos (não coincidentemente) presos à certa teleologia...há, portanto, uma contradição em termos entre o projeto Lulista, o que explica o ambivalência da real função do instrumento desenvolvimentista dentro dele.
Nesse sentido, mesmo que várias críticas possam ser feitas à administração de Dilma Rousseff, por ter potencializado a esperança frente à alegria - em outras palavras, com sua rigidez gerencial, ter promovido políticas duras de recalque à parte relevante do que foi liberado nos últimos 8 anos -, precisamos admitir que isso já estava em Lula: Dilma é Dilma e Lula é Lula, mas mesmo que as coisas pudessem ser diferentes com um Lula em um hipotético terceiro mandato, não seriam tanto quanto se supõe; o andamento do processo desencadeado força a uma escolha que não admite a persistência, daqui em diante, de tal caráter dúbio.
O mesmo vale, p.ex. para o governo boliviano de Evo Morales que, ora, se vê diante da mesma questão, no momento em que está a confrontar o movimento indígena, a qual pertence e pelas mãos do qual se elegeu presidente daquele país, por conta da construção de uma estrada que trespassa o país, atravessando santuários nativos.
Em outras palavras, o projeto petista não está perdido nem encontrado - como querem fazer parecer seus grande parte de seus inimigos e, em um segundo momento, de seus entusiastas. Ele se encontra, na verdade, em meio a uma encruzilhada. As mudanças que ele produziu, sobretudo no tocante ao empoderamento dos produtores por meio do consumo, não são, tampouco, nem o fim da linha - como o catastrofismo quer fazer parecer crer - nem o paraíso, mas ele abre espaço efetivamente para a organização, que só se dará em caráter molecular de uma política de emancipação.
Em abstrato, o instrumento político lulo-petista nos traz mais luzes do que obscuridades, na medida em que ele aponta para nortes que não podemos desprezar: a fuga da estética da miséria, a busca pela articulação das partes desconexas e o gosto pela alegria. O ponto é que a crise nos leva à problemática da decisão e, agora, nos parece que ela passa pelo crivo de transformar a transformação, seja nas ruas ou nos corredores palacianos. É preciso, pois, colocar o desenvolvimentismo no lugar do qual ele não pode sair em um projeto emancipador: da prateleira de ferramentas que podem ser usadas conforme a ocasião - e descartadas quando oportuno -, jamais como bandeira ou norteador. É preciso articular as partes de forma mais efetiva, este é o nosso desafio.