Prédio onde ocorreu o incêndio |
Hoje, véspera de Natal, me dei ao luxo de tomar trem, e andar um cadinho debaixo do sol quente do verão paulistano, para ver a quantas estava a comunidade do Moinho. Há dois dias, ela foi vitimada por um incêndio, cujo saldo, até o presente momento, é de duas vítimas fatais, algumas dezenas de feridos, quase 40% das casas destruídas e mais de 400 famílias afetadas direta ou indiretamente (mais da metade das mais de 700 ali residentes).
Postos de Doação |
Nem o Prefeito, tampouco sua Secretaria de Habitação, se pronunciaram sobre o ocorrido até a manhã de hoje - embora a assistência imediata esteja sendo realizada de forma razoavelmente regular. A comunidade, com um histórico relativamente grande de lutas e resistência, se mostra profundamente organizada no gerenciamento das medidas de emergência. As doações, que estão sendo realizadas tanto na favela quanto ao seu lado (na Alameda Eduardo Prado, n.108), seguem a todo vapor, sob o impacto da data e da divulgação da mídia, mas todo empenho e boa vontade é preciso agora, porque passado o choque, a questão tende novamente ao esquecimento, logo, a carência de provisões é um problema imediato.
De fato, Leonardo Sakamoto tem razão quando aponta que os problemas do Moinho vão muito além do incêndio que, por pouco, não lhe apagou do mapa. Há um inegável interesse higienista da atual administração em despejar os moradores de lá - que só aumentaram desde que a gestão Kassab iniciou sua política de expulsão dos pobres do centro. Mas também há uma série de outras questões que vão desde ações envolvendo a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) - que tem duas linhas suas passando por dentro do Moinho - até a ação de anulação do leilão mediante o qual a empresa proprietária do terreno, genericamente citada pelo Sakamoto, adquiriu o terreno da União.
Linha da CPTM que liga a Estação Júlio Prestes a Osasco |
O caso do Moinho, portanto, é uma singularidade que ora se mostra o principal sintoma da crise de moradia na metrópole paulistana. Não que isso não se repita em outras cidades, formação metropolitana do Brasil recente é marcada pelo despejo de fluxos e mais fluxos de pobres vindos do nordeste ou dos diversos interiores para, simultaneamente, abastecer a indústria nascente com trabalhadores super-exploráveis e arrefecer a pressão por reforma agrária no campo. De todo modo, em São Paulo, conseguiu-se organizar uma cidade inteira pelo o esquema laboral - uma das principais características desse processo, certamente, a expulsão dos pobres para a periferia.
Cidades brasileiras são, em geral, profanas, uma vez que a vã pretensão de suas elites, em ver os pobres escondidos, só aparecendo trajados de servos, cai no ridículo de uma miséria evidenciada a cada esquina. Em São Paulo, essa segregação, por pouco, não foi perfeitamente feita realidade - existem bolsões aqui e acolá, os sem-teto que insistem em não-desaparecer, mas a higienização do núcleo da cidade aparece como horizonte possível de qualquer programa conservador. Em grande parte, isso se deve ao gigantismo do setor imobiliário local, que está para Secretaria de Habitação como as milícias estão para a polícia no Rio de Janeiro.
O jogo de imagens, e imagens sobre imagens, das imobiliárias - quase sempre articulado por gestões municipais - infla os preços de aluguéis e imóveis de forma onipresente. O rentismo sobre os imóveis determina a gestão dos espaços urbanos de São Paulo em uma escala assustadora. Não à toa, o nosso recorrente Spinoza, lá no distante século 17º, se mostrava obcecado em desenvolver um método que nos permitisse distinguir as imagens do que há de concreto: ele sabia que, desde tempos imemoráveis, a dominação se estruturava num truque no qual profetas (tal como seus sucessores atuais, os ideólogos) e tiranos confundiam propositalmente o imaginário com o concreto, desmerecendo o primeiro em detrimento do segundo, para fazer cortinas de fumaça parecerem barreiras intransponíveis.
A astúcia do dominador está, portanto, em apagar o imaginário como instância, desqualificando o que não lhe é útil como tal e fazendo, no mesmo movimento, com o que é necessário aos seus fins seja apresentado como concreto para, aí sim, ser validado. Eis o estatuto das superstições: imagens representadas como entes concretos, em relação as quais não é permitido imaginar nada a respeito, uma vez que são concretas e só o concreto é real (logo, verdadeiro). Tal formulação, aqui, vale desde a naturalidade com a qual os preços de imóveis, e suas flutuações, são enxergados pelos paulistanos até o temor prévio com o qual são representados os pobres - criminosos, um perigo em potencial.
A referência a moinhos, na comunidade em questão, nos remete ao que de mais potente há sobre a imaginação na Literatura Universal, só que bem além da coincidência: a saída passa por dentro daquela instância. Conhecer o que há de concreto antever as tendências reais - e desdobra-las a nosso favor. Para além dos entraves burocráticos, os becos sem-saídas à la Kafka que são apresentados a todo momento no caso da Favela do Moinho, existem saídas incrivelmente simples para a vida daquelas e de tantas outras pessoas que vivem nessa situação limite. Afinal de contas, o Direito é uma ficção, um conjunto de imagens, que só tem utilidade se for para realizar nossas possibilidades em meio ao tecido complexo da Pólis - em suma, direito achado na rua e na praça pública, posto em função da produção (de metrópole, inclusive) e não da parasitagem. Façamos, pois, com que aquelas pessoas vejam um luz no final do túnel, e que isso, dessa vez, não seja um trem ou uma chama.
Hugo, parabens pela sua iniciativa de ir até o Moinho!
ResponderExcluirObrigado, Marina, precisamos estar atentos ao desenrolar das coisas no Moinho, é um pouco responsabilidade nossa até pela história da PUC em defesa daqueles moradores!
ResponderExcluir