segunda-feira, 30 de abril de 2012

O Sétimo Selo: Entre a Catástrofe e o Apocalipse

A Morte (Bengt Ekerot) joga xadrez com o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow)
"A arte é a única coisa que resiste à morte" -- Malraux

O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, Suécia, 1957), do mestre Ingmar Bergman é, sem sombra de dúvida, um dos maiores filmes da história do cinema. A narrativa do cavaleiro que retorna das Cruzadas para sua Suécia devorada pela peste onde topa com a Morte em pessoa - com a qual disputa um jogo de xadrez no qual sua própria está em xeque - é amplamente conhecida, mas para além de todas as questões cinematográficas - a belíssima fotografia, que dá uma dimensão ímpar à solidão, o grande elenco etc - há um ponto central, de cunho filosófico, que merece ser examinado com cuidado: a temática da catástrofe definitiva, entificada e consubstancializada, como uma das questões permanentes da existência da cultura ocidental.

Trata-se, nesse aspecto, de uma película potente: ela se agencia com a temática existencialista, tão presente na Europa daqueles anos 50, tanto quanto a critica para, no fim das contas, a subverter. O Cavaleiro Antonius Block, cujo ceticismo foi construído tijolo a tijolo pela sua experiência de dez anos na Terra Santa, é um incrédulo: ele quer chegar a Deus pelo conhecimento e está pouco interessado pela fé vendida pelos padres - em relação à qual a plebe, não por acaso, só se aproxima nos seus momentos de mais agudo desespero como agora, com a peste negra devorando a costa sueca. Esse Deus não está em parte alguma. Block não o vê, não o encontra, é como se Ele existisse somente para aqueles que querem que eexista. Não bastasse isso, Block trava um mau encontro com a Morte feita pessoa, logo ao chegar: para protelar o fim de sua vida, ele parte para uma disputa desesperada, no tabuleiro de xadrez, contra Ela.

A peste está em toda parte e é sua onipresença praticamente invisível que alimenta o medo da morte, matéria-prima da economia da fé. Block é um angustiado por saber que está apenas protelando o improtelável para conseguir realizar seu encontro - enquanto seu escudeiro, como um Sancho Pança, está pouco preocupado com a melancolia, transitando com ironia por todos os planos alegremente. Enquanto isso, uma pequena companhia de teatro, formada por uma família e um chefe oportunista chega à vila, se metendo em confusões e tendo sua exibição comprometida por uma auto-de-fé. Enquanto tenta adiar seu momento final, Block se dedica, no fim das contas, a protegê-la da Morte que ronda a todos: mais do que uma grande estrategista, a Morte nos parece uma grande estratégia.

É essa família de atores, no fim das contas, a única a vencer a Morte: a arte é aquilo que escapa, nomadicamente, à entificação da morte - alegoricamente representada por uma morte pessoal - justamente por ter a fuga como condição de existência. É assim que ela fura a catástrofe, ao conseguir cruzar a floresta escura em direção a um festival - não fugindo à Morte [ou à morte na forma da peste] ou a abraçando, dois movimentos pendulares que afinal, coincidem; nem as especulações metafísicas, nem o empirismo, nem a fé, mas sim a Arte como afirmação definitiva da vida. É uma provocação potente de Bergman: fazer a inevitabilidade da morte - posta como centro de gravidade e, por isso, como suposta fonte de uma angústia inerente à condição humana, materializada no advento da Catástrofe - ser, de repente, ultrapassada por um movimento que lhe é alheio: a produção artística fecunda e despreocupada.

A Catástrofe - aqui na figura da peste negra, que é outro lado invisível da moeda que tem  por Cara a Morte - está posta na nossa civilização desde que ela tomou forma definitiva na Idade Média, com a amálgama entre o helenismo, a tradição romana e judaica na Europa tomada pelos germânicos. Não que a extinção humana - ou pelo menos da nossa humanidade - tenha saído realmente algum dia do horizonte - isso só o fez em relação àquelas espécies que foram extintas -, mas é fato que aquele modo de pensar que se dá a partir da perspectiva da extinção - do imaginário futurista que gira em torno do ressentimento pelo futuro ser apenas uma imagem - não é "natural", mas sim ele próprio produção e ordenação de conceitos e afetos voltado, por suposto, a um propósito - via de regra, econômico. 

"Não temos futuro" - como se pudéssemos tê-lo em qualquer outro lugar que não a nossa imaginação. A peste, a fome, a guerra, o cataclisma seja qual for é uma teia de relações cuja intervenção artística - a política aí inclusa - precisa se voltar, a todo instante, para evitar a obliteração, mas não é possível produzir com base na própria obliteração sem cair num vazio de angústias que apenas justifica e dá forma ao dispositivo - condicionando o hoje pela suposta concretude de um amanhã -, mas sim a partir da Vida que se busca afirmar num esforço permanente: nem contra, nem pelo Cataclisma, mas a despeito dele.





5 comentários:

  1. A vida é um projeto fadado ao fracasso - sua única certeza é o seu fim. Porém não somente a arte, mas a continuidade do sangue (dá-lhe, Zé do Caixão!), meu amigo, são capazes de vencer a Morte.

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    1. O fim dá limite à vida, mas ele está em função dela e não o contrário: é pela vida, na vida, que experimentamos - inclusive a expectativa de fim.

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  2. Belo post. Gostei quando suplantou filósofos, homens de ação e religiosos em benefício dos artistas e apreciei muito o termo "ressentimento pelo futuro" Acho que nunca tinha formulado essa ideia dessa forma. Sou muito ingenuo. Um grande abraço. E lembre-se: a morte é a apenas o fim. Que a sombra silenciosa baixe na hora certa e que meus inimigos assim como damas tenham o privilégio de a conhecer antes de mim, rss Aquele abraço.

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    1. Obrigado, Thiago, e o problema chave aqui é o futuro: não é questão de saber se haverá um, mas que ele, realmente, não há jamais - e isso é maravilhosamente libertador, embora uma diante dessa percepção, existe uma reação possível que, justamente, o catastrofismo (a constatação de um não-futuro tomada a partir da afirmação do futuro, o que leva a um deslocamento violento do aqui-agora). Isso não é estranho à esquerda socialista, nem ao movimento ambientalista, mas uma hipótese boa é que suas origens remetam ao milenarismo medieval (que tema constante nesse filme).

      abraços

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  3. Poutz, não tinha me tocado da mensagem de que só a arte vence a morte!
    De qualquer modo, tenho 3 coisinhas a acrescentar:
    1) Desde o começo do filme, a família de artistas, mais especificamente o Jof, simboliza a vida. Eles têm um filhinho e ele vê a Virgem caminhando com Cristo. Olha só: enquanto Block passa a vida toda procurando Deus, Jof O vê quas sem querer.
    2) Block parece cético, mas a cena final mostra que ele cria, sim, em Deus. Na verdade, ele estava era tentando não acreditar, mas, no fim, quando chega a hora, ele mesmo, o cético racional etc. etc. não consegue deixar de crer.
    3) O escudeiro é outro que só parece ser uma coisa, mas não é: ele adora posar de Sancho Pança, mas é um paladino que não saiu do armário. Essa pose é um esforço constante para ocultar seu lado tremendamente "lawful good".

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