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Frankenstein, 1931 |
Não há Monstro que não seja ambivalente, mas não há nenhum que não queira apenas ser amado*. E há muitos eventos monstruosos em curso no Brasil de hoje; um deles é o da própria alteração correlação de forças sociais, alvo de muitas análises e ainda de muita incerteza -- o que vai para além de dados "objetivos", embora eles estejam lá: nos últimos doze meses, em plena crise mundial, a desigualdade caiu e a renda familiar subiu no Brasil --; o outro é o da própria definição do projeto petista, ora no poder, de assumir-se como uma força progresso-modernista disposta a resolver as muitas dobras por via gerencial.
Certamente, esse não é um debate à luz (ou sob a sombra) das variadas ciências da população, não precisamos cair no mesmo objetivismo do governo atual, discutindo se essas mudanças ocorreram ou não, ou qual a qualidade deles por um paradigma molar: sim, porque o nível de emprego subiu nos últimos nove anos, a renda do trabalho cresceu -- em volume e em proporção --, a desigualdade social caiu -- em um período no qual a tendência mundial é inversa, o que embora agravado pela presente crise, mas é constante perversa desde o fim do socialismo -- assim como o número de miseráveis caiu absurdamente. Pois bem, não é por esse viés que estamos olhando, embora pudesse sê-lo. A questão é outra, e nós preferimos enxerga-la sob a ótica molecular.
Se nada disso tivesse acontecido, não estaríamos falando do governo Dilma que é, ele mesmo, um esforço grandioso de transformar o tumulto da ascensão da plebe em uma missa civil. Sem tumulto, o esforço para converter essa multidão em uma "classe média" não existiria, por que faltaria sua causa. Hoje, o Brasil se parece em termos gerais com a França do início dos anos 60, aquela descrita por Guattari em As Nove Teses da Oposição de Esquerda, onde temos uma direita arcaico-liberal cada vez mais isolada, um grande consenso modernista pelo meio -- que abrange os principais partidos -- e uma esquerda cujo programa já não era novidade naquela época, tampouco seu gosto (escatológico) pelo catastrofismo:
"Uma terceira ideologia passa principalmente pelo PC e por uma parte do SFIO, sendo uma espécie de tradicionalismo econômico de esquerda. Essa ideologia continua a esperar, sem nisso crer de fato, o advento de uma crise econômica catastrófica; ela considera escandalosa a concentração e a centralização, e assume todas as formas arcaicas da economia francesa"
(In GUATTARI, Félix. "Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional". Aparecida-SP: Ed. Ideias e Letras, 2004 [1974, texto de 1965], p.154)
E esse tal modernismo se caracteriza por ser "partidário, em primeiro lugar, da modificação das estruturas do capitalismo em função da evolução das suas forças produtivas, e, em segundo, da intervenção do Estado para modificar essas estruturas, resolver as crises econômicas etc." [op. cit., mesma página]. Há, portanto, uma correspondência bastante clara entre isso e o governo Dilma, mesmo quando ele toma medidas -- aparentemente -- liberais como diminuir a alíquota de impostos como o de produtos industrializados (IPI) ou acentuar restituições do Imposto de Renda para, assim, estimular a "economia" na crise.
Aliás, das movimentações da política econômica neste ano, viu-se um esforço grande para consolidar a passagem do sistema financeiro brasileiro de fiador da dívida pública para mola motriz do fomento ao consumo, seja por meio da redução dos juros, do uso dos bancos estatais para pressionar os bancos privados ou mesmo pela pressão política aberta: se a passagem da dívida pública do exterior para dentro aconteceu, é porque o governo deu garantias -- inclusive por meio de superávits pesados -- de que pagaria os títulos da dívida regularmente. Isso não apenas criou uma proteção maior para a economia brasileira, nos livrando dos ditâmes da banca internacional, como abriu espaço para que os bancos pudessem ter meios efetivos para efetuar a ampliação e capilarização do mercado creditício.
A crítica desse processo à esquerda, assume um viés escatológico, que retoma a crítica medieval à economia da dívida, que é precisamente a denúncia (moral[ista]) da usura. De repente, o problema torna-se o quanto o Governo "paga aos banqueiros", esquecendo-se que isso é o que permite o Estado fazer emissões de dinheiro e, não só, o que dá condições para os bancos emprestarem -- o país não gasta um sexto do seu erário em juros da dívida, na verdade, isso não chega a um ágio de 5%, mas é o custo pago para termos a dívida rolada e, desse modo, poder existir um mercado de crédito acessível.
É claro que os banqueiros preferem o negócio seguro dos títulos da dívida e menos o oferecer crédito aos pobres -- o que é pouco arriscado, mas certamente mais trabalhoso do que emprestar ao Estado --, mas foi aí justamente que entrou Dilma pessoalmente em um confronto aberto, pelos meios descritos, para que os bancos fomentem o consumo. Para quem acusa Dilma não entra em brigas com poderosos, fica aí um aspecto que demonstra as ambivalências desses governo. Embora estejamos distantes de apoiar isso como a última bolacha do pacote, é fato que uma crítica à economia da dívida passa longe dos escatologismos de condenação da usura e mais pelo impacto que isso traz.
A dívida, que é ficcional, cria uma série de práticas reais como a sedentarização e sujeição das singularidades, tornadas obrigadas a pagar uma dívida que é produto da riqueza comum que elas mesmas ajudaram a produzir, enquanto, por outro lado, dentro das estruturas capitalistas, isso permite à multidão dispor das ferramentas produzidas pelo Trabalho, no regime Capitalista, que lhes permite resistir, criando um tumulto: os exemplos do celular com câmera de vídeo que permitem a uma emprega doméstica denunciar a violência policial na favela onde mora, ou do notebook que permite o garoto de periferia tuitar a realidade de seu bairro são tão óbvios que merecem ser citados.
O problema, p.ex., não está no fato "do quanto o governo paga para os bancos" -- tanto, que ele próprio já iniciou uma outra etapa desse Plano --, tampouco na denúncia de que esse enriquecimento se dá "apenas" por meio de dívida, mas sim em como disputar esse processo desligando o dispositivo da dívida -- o que passa pela ativação das mixagens e usos variados da tecnologia (social e política, inclusive), um devir-antídoto dentro de uma luta pelo direito ao inadimplemento (como diriam Negri e os Negrianos) o único pelo qual, talvez, valha a pena lutar (acrescentamos). Naturalmente, o processo é normalmente confundido com a captura, o que em termos práticos nos obrigaria a jogar o bebê fora junto com a água do banho.
Longe de desejar isso quando pensa em desenvolver o mercado creditício, o governo Dilma, contudo, gera essa colateralidade que está aí para ser (des)apropriada pelo movimento real: mas a esquerda escatológica prefere dizer que o problema é que ele não tem "consciência disso", logo, ele deveria ser substituído no campo da esquerda; é o governismo fora do Governo, que nutre uma crença na forma Partido e na forma Estado (supondo que sejam diferentes) e espera que será no plano do governo que isso se resolverá. Isso existe desde um modernismo de esquerda ou do catastrofismo.
O outro ponto é que medidas como os incentivos tributários à baila precisam ser vistos com cuidado: eles causam a diminuição da proporção de tributos incidente para gerar um crescimento da atividade econômica, o que não teria um efeito negativo sobre o erário público porque se ganharia no volume o que se perde na proporção de arrecadação. É claro que isso pode dar errado de diferentes maneiras, seja por não produzir crescimento ou mesmo por não gerar crescimento suficiente para compensar a perda do caixa, invariavelmente pode levar a arrochos nos salários dos servidores públicos.
Aí entramos num cenário pantanoso. Não, Dilma não está arrochando só os "mais fracos" -- embora os servidores públicos federais estejam longe de ser, digamos, a faixa mais vulnerada da nossa população --, uma vez que a redução dos juros joga uma pressão sobre o que há de mais majoritário no nosso meio que são, precisamente, os banqueiros. A questão, portanto, é outra, novamente não-moral, que é o risco disso ferir as espécies de servidores que merecem recomposições nos seus ganhos. Talvez manter os tributos e investir em projetos públicos fosse, potencialmente, melhor, mas isso demanda capacidade desenhar e executar tais projetos pelo Estado em caráter, quem sabe de contrapoder. Ainda assim, grande parte dos movimentos de servidores prefere se unir corporativamente a todos os outros e reivindicar aumentos pelos aumentos.
Quais servidores e com qual critério? é essa questão. Professores de universidades federais possivelmente merecem ganhos maiores assim como um plano de carreira efetivo, mas existe, e disso ninguém tem muita dúvida, outros setores bem remunerados e que gozam mais até do que merecem -- relativamente à sua importância -- no meio dessa arenga. Mas os mesmos professores que reivindicam sem se separar de outros setores, são aqueles que também não conectam suas pautas às demandas sociais por educação. O movimento de professores das universidades federais se mantêm longe demais da demanda, p.ex., por cotas nas universidades onde lecionam e perto demais de reivindicar apenas suas necessidades: o que é incorreto em termos de um plano maior e pouco astuto do ponto de vista político, como já dissemos aqui.
E para acirrar mais ainda a ambivalência suscitada, não custa considerar que a própria Dilma sancionou a lei que institui um programa salutar, quase revolucionário, de cotas nas universidades federais -- historicamente, feudos da elite brasileira, exceção talvez à elite bandeirante, cujos filhos estudam em universidades estaduais, embora igualmente públicas. É claro que isso se enquadra dentro de um aspecto de medioclassização do Brasil, mas a questão é: como a esquerda pode acolher e incluir (trocando experiências) com essa multidão que irá ingressar nessas universidades, que constituirá, fatalmente, um setor importante da elite intelectual brasileira nas próximas décadas?
A questão não é inclusão ou exclusão, pois ninguém trabalhou mais do que a direita brasileira para incluir os negros e os pobres nas universidades -- na condição de trabalhadores miseravelmente remunerados e não na condição de protagonistas do processo --, mas sim como se dará a inclusão que é a linha mestra do capitalismo cognitivo. Dilma espera ter pobres e negros dentro das universidades como estudantes, o que ainda reitera a lógica de repartição de funções -- o professor, o estudante, o funcionário --, mas ao mesmo tempo tira as coisas do lugar.
Se a máxima de funcionamento do Brasil, antes ou agora, é que cada um precisa saber o seu lugar -- na sociedade excludente de outrora ou no capitalismo cognitivo de hoje, quando você será, de algum modo, para o bem ou para o mal, incluído --, o fato é que esse desencadeia um processo no qual todos são remetidos a desejar desterritorializa-se; a reterritorialização na Senzala, operada pela Casa Grande, é abalada fatalmente. Isso também abala a crença que Dilma quer um país de pobres, ela não deseja que ninguém vire pobre, mas sim que ela pretende que todos se reduzam à subjetividade médio-classista: fazer do tumulto missa civil, quando poderia muito bem o carnavalizar.
Mas esse tumulto só existe pelo início do governo petista que traz algo muito mais importante do que os dados estatísticos citados no começo do post e disputados por vários setores: é o sim, você tem a potência de sair da Senzala, você não precisa morar lá se não quiser. Por isso que mesmo em outros momento, embora a participação dos trabalhadores e demais setores tenha sido grande "objetivamente", nunca ouve o burburinho que há hoje. Mas há um esforço grande, entre a direita e modernistas dos mais variados tipos, assim como a esquerda de enquadrarem esse tumulto: qual o nome que caberia melhor nessa classe sem nome? Nova Classe Média, (nova) Classe C, Batalhadores, Consumitariado etc etc. O nome, ou rótulo, como sabemos, cumpre uma função importante da dominação porque é ele quem permite circunscrever a potência de agir de uma singularidade tornando-a objeto potencial de uma ordem. O que é anônimo não é passível de dominação ou controle.
Nomes fracos como tumulto, multidão ou legião suscitam a força do processo que o Poder tenta atribuir um nome, mas cuja existência e (re)existência se impõe sobre o próprio mecanismo de identificação como um enxame. São antes de su(b)jeitos, modos (jeitos). E essa classe sem nome é, com efeito, um monstro, mas algo cuja função que irá cumprir depende menos de um enfrentamento, quase supersticioso, dele, com tochas e arados: não, não se trata de atacá-lo porque ele é diferente (e, afinal de contas, ele não tem um nome, é só um monstro), mas estabelecer algum modo de empatia; sim, novamente, insistimos, ele é mais do que neopentecostalismo ou tecnobrega e, embora seja ambos também, é justamente porque os evangélicos e o tecnobrega vão até lá!
Candidatos como Ratinho Jr., em Curitiba, ou Celso Russomano, em São Paulo, estão bem cotados por serem antes por fazerem política junto à plebe rude do que por serem os "candidatos dos evangélicos" -- e o mesmo se explica pela própria popularização do neopentecostalismo no Brasil, enquanto a esquerda prefere se queixar dos pobres, quando ela mesma, não se mexe, ou prefere se mexer hostilizando os pobres em prol de um (su)jeito revolucionário que é ele próprio apenas um (pro)je(c)to: "a classe média intelectualizada". Apesar das alianças torpes do PT -- em Curitiba, p.ex. --, o fato é que em São Paulo as coisas começam a mudar justamente pela...candidatura própria do PT que se mostra capaz de conquistar apoio desse setor, ao contrário da candidatura do PSOL que faz pouco esforço nessa direção. O problema não é "o monstro que o petismo ou o lulismo criaram", como diria Safatle, mas quem prefere persegui-lo a ama-lo e, assim, o entrega ao primeiro conquistador.
Precisamos de menos ceticismo -- isto é, perspectivismo, do helênico σκέπτομαι [sképtomai, ver a distância, em perspectiva] -- e mais estoicismo: é preciso assumir que embora haja vários pontos de vista possíveis -- e que todos que podem existir, existem --, tomar um deles para si não é de pouca valia: o que assumimos aqui é o da stoa; pensar forçando para além o limiar do próprio pensamento, do ponto de vista daquilo que é limiar da pólis desterritorializada no Império. No Brasil de hoje, isso significa constituir uma ética que nos volte para os monstros vivos no nosso meio e nos permita antes de tudo estabelecer um vínculo empático -- nem sempre de forma amistosa ou cordial, é claro --, sob pena de terminarmos devorados, não por eles, mas antes de mais nada por nossa própria arrogância.
*frase baseada em palestra proferida pelo mestre (agora de fato e de direito) Bruno Cava na Semana de Recepção aos Calouros do Direito PUC-SP, no início deste ano.