Isso era São Paulo |
A foto acima tem circulado pelas redes sociais e ilustra um artigo do Marcelo Rubens Paiva. A ilustração corresponde à São Paulo antiga, mais precisamente a uma parte do Centro que hoje é soterrada pelo famigerado "Minhocão", o elevado Costa e Silva. Embora eu pudesse começar pelo absurdo que é o nome do elevado ser uma homenagem a um dos ditadores militares brasileiros, o primeiro general da linha-dura, a verdade é que a obra faz jus ao nome que tem: nem seria o caso de mudar o nome do Minhocão, mas de implodi-lo mesmo só pelo desastre urbanístico que é -- e é justamente isso que o Marcelo propõe no seu artigo.
Para quem não conhece São Paulo, o elevado em questão liga à zona oeste próxima, a Barra Funda, ao Centro, passando por cima disso que vocês estão vendo. O artífice da obra, o ex-prefeito Paulo Maluf, sempre frisou a necessidade da obra: como chegaríamos ao Centro sem ele? A questão, no entanto, sempre foram outras duas: (1) qual Centro? e (2) quem chegaria, cara-pálida? Pois bem, a primeira se explica pela brutal degradação da zona central paulistana, cujo marco inicial foi justamente o elevado pela maneira como ele destruiu a cinelândia local; a outra é também muito mais simples, o "quem chegaria" são os proprietários de automóveis particulares.
A submissão de São Paulo ao cinza do concreto e ao automóvel no lugar das grandes alamedas e do paisagismo foi o início do fim da Pauliceia. A questão é que você não constrói uma cidade a partir do carro. São Paulo é péssima para moradores, pedestres, ciclistas, animais e plantas justamente por conta disso -- e objetivamente é pior para os próprios motoristas, mas dentro desse esquema, obviamente eles não percebem o problema, ou só sua exterioridade, o trânsito, o caos dos semáforos etc. O carrocentrismo malufista não construiu uma porcaria de cidade por si só, mas sim um absurdo urbano que é, também, um absurdo social, afetivo, ambiental e assim por diante.
Interessante é o contraste disso com uma outra São Paulo, que ainda existe um pouco, a São Paulo que ainda tinha garoa, samba e a figura de um tipo particular de malandro: estético como um italiano, lúdico como um brasileiro. Era o Adoniran Barbosa. O cara que mandava o progresso do Getúlio às favas. Uma espécie de pessoa capaz de desprezar o trabalho, por mais que estivesse na capital do discurso da dignificação via labor. Aquela coisa das cantinas do Bixiga, da Mooca, do samba no Brás, das gentes brancas e mestiças que conviviam mais com os povos dos antigos quilombos urbanos de São Paulo do que com os quatrocentões.
De uns tempos para cá, ou desde Maluf, a única coisa que escapou à destruição desse típico malandro paulistano -- uma destruição que só pode começar pelo seu habitat -- foi em parte a Rua Augusta -- na parte do Centro -- e, talvez, a Vila Madalena. Isso até a gentrificação, que na Augusta começou tem poucos anos e que na Vila vem dos anos 90, subindo de Pinheiros. A Augusta, aliás, só foi "diferente" no momento em que esteve "abandonada", até ser retomada há pouco pela especulação imobiliária: e a questão não é o moralista, o "que bom que a prostituição está saindo da Augusta", porque, na real, a prostituição saiu de lá para os discretos flats, nos quais a exploração feminina pode ser bem maior, justamente por ser mais invisível. Na Vila, apenas chegou aquilo que vinha de Pinheiros, capturando o ar autêntico e genuíno do bairro, enlatando-o e pasteurizando -- enquanto os aluguéis sobem, eliminando lugares legais e expulsando os pobres.
A coisa, é óbvio, não é o Maluf pessoa, mas o Maluf histórico e político, responsável por dar vazão a um projeto nefasto desde muito. A verdade é que, por ora, Maluf venceu, ou venceu politicamente: a rigor, ele conseguiu fazer o que quis e isso prevaleceu por inércia, embora algumas medidas que contradigam sua lógica tenham sido tomadas em determinados momentos. Mas no interior do seu ser, São Paulo permanece malufista. Quem defende uma outra São Paulo, como a esquerda que ocupa e já ocupou a Prefeitura algumas outras vezes, só conseguirá mudar isso no momento em que entender que a saída para essa desgraça está, vejam só, mais na jinga de um Adoniran do que na dureza germânica dos escritos frankfurtianos.