domingo, 7 de janeiro de 2018

Trump: sob fogo e fúria na América tardia

Ilma Gore -- Trump Nu (retirado daqui)
O lançamento de Fire and Fury, livro sobre os bastidores da Casa Branca de Trump é um belo exemplar de fogo amigo voltado a enfurecer o presidente mais impopular da história, só para fazer jus ao nome. E também é só mais capítulo na crise que corrói a América, incapaz de se reposicionar numa ordem global no qual o velho modelo de hegemonia americana não funciona mais.

Há, é claro, uma boa dose de calculada encenação no relato insider e em primeira mão, do mesmo modo que Trump, igualmente é um grande personagem, seja nos seus negócios ou na sua incursão da política -- um personagem que se tornou a voz de um setor da sociedade americana cuidadosamente azeitado pelos republicanos para servir (apenas) como massa de manobra.

Trump sempre se vendeu como um parvo para ser subestimado por rivais e concorrentes, além de atrair para si a simpatia do público médio americano do interior -- e a mesma lógica se aplica à sua incursão na política. Agora, a chave é retratar essa "verdade de homem comum" como debilidade e demência. Talvez funcione.

O desastre Trump, o presidente americano mais impopular desde que esse tipo de medição passou a ser feito nos anos 1930 pelo instituto Gallup, está além das aparências. Trump desagrada o establishment político americano, à esquerda e à direta, e também não oferece uma saída para os impasses da América, uma vez que governa de maneira compartilhada com um Congresso hostil, inclusive no que diz respeito a seu partido.

A receita é simples: se o grandioso plano Obama fracassou, de acelerar o processo de globalização como forma de permitir aos EUA manter e afirmar sua liderança, a tentativa de voltar a um passado glorioso, industrialista e isolacionista, encontrou a dura barreira da realidade.

Após Bush Jr. tentar tirar os EUA da estagnação com largo envolvimento em guerras, Obama operou a reconstrução econômica do país salvando antes de tudo o mercado financeiro. De um jeito ou de outro, o americano comum esteve órfão nos últimos dezesseis anos, depois de décadas paternidades relapsas, na qual o american way of life era desconstruído lenta e silenciosamente. 

A vitória de Trump foi o gesto final de um processo no qual os republicanos retomaram a Casa Branca depois de, a rigor, assumirem a maioria política em todas as instâncias da política americana, desde o Congresso dos Estados Unidos, passando pelos congressos estaduais e governos estaduais. Tudo sob a era Obama, e seu fantástico fracasso em reconstruir a América -- pelo menos para além dos grandes grupos de interesse do Partido Democrata. Mas a cereja do bolo foi, também, uma vitória de pirro.

O pós-fascismo de Trump não funciona exatamente nos tempos atuais, reunir maiorias sociais sob a égide de um discurso abstrato de nação contra minorias não é o tipo de coisa que constrói coesão ou estabilidade nos dias atuais, mas sobretudo há falhas na condução da geopolítica, que representa muito em matéria de política interna nos EUA.

Os EUA assumiram a hegemonia mundial debaixo da decadência das potências europeias, pois preferiu dominar áreas estratégicas de comércio global em vez de administrar diretamente enormes populações. Depois, serviu como mecanismo do mercado global capitalista, criado no pós-guerra. Os EUA lutaram com dureza, e impuseram aos seus parceiros europeus, o encargo de servir como motor da economia capitalista, emitindo a moeda internacional e servindo como a cabeça de sua polícia global.

A enorme responsabilidade americana parecia ser uma tarefa fácil, gerando como retorno o privilégio exorbitante de emitir a moeda global. O sonho de fadas acaba no final dos anos 1990, quando a responsabilidade aumenta e, por outro lado, a ausência de uma guerra fria transforma a atividade da guerra em flagelo para o mercado capitalista global. 

Ora, o mundo capitalista não sabia, mas a grande mola mestra da economia americana desde os anos 1950 era, de fato, o complexo bélico-industrial, isto é, investir em armas, usar as forças armadas como pólo de inovação tecnológica e inserir esses ganhos no mercado de consumo.  O imperialismo de novo tipo americano guardava em si um arcaísmo, próprio dos velhos impérios e gérmen de sua decadência -- e a Guerra Fria permitia aos EUA mascarar isso.

É aí que nem Bush, nem Obama e, tampouco, Trump conseguem operar. Todos buscaram e buscam saídas de curto prazo para manter tudo como antes. Sem as velhas guerras indiretas nas bordas da Guerra Fria, o próprio sistema capitalista se assusta com essa bélico-dependência americana e ensaia migrar para novas zonas de consistência.

A resposta de Trump contra uma ordem global é uma mistificação louca. E pior, ela se deu, objetivamente, com um erro de geopolítica inverso ao de Obama. Se o ex-presidente acertou na maneira como conduziu a política no extremo-oriente, errou feio no Oriente Médio. Trump, por sua vez desfez os erros de Obama no Oriente Médio, embora tarde demais, enquanto errou na sua relação com a China.

Vejamos, Obama procurou interferir nas Primaveras Árabes. O terror com insurreições multitudinárias que abalavam uma ordem, tirânica, que favorecia aos EUA -- e foi decisiva para derrotar os soviéticos -- foi trocado pelos novos estrategistas americanos por uma vã esperança: interferir à distância e usar as revoltas como forma de aumentar ainda mais o poder.

Obama usou da derrubada do governo sírio como forma de derrubar os preços internacionais do petróleo e, assim, valorizar o dólar sem precisar praticar uma política econômica restritiva, isto é, diminuir emissões ou aumentar os juros. Mas ao afiançar uma coisa na outra, dependia da queda do regime para as expectativas virarem realidade. Só que seus apoiadores dentro e fora da Síria não eram capazes de agir juntos, uma vez que não desejavam a mesma coisa.

Turcos, israelenses e sauditas não tinham interesses convergentes, poderiam derrubar o regime sírio, mas não tinham, nem têm, acordo sobre o que colocar no lugar. A oposição laica da Síria foi rapidamente suplantada por radicais islâmicos, primeiramente tolerados e depois causadores de mais dor e mortes. O resultado da guerra, com centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados chegou rapidamente à Europa.

Os russos, para piorar a situação de Obama, encontraram a deixa ideal para intervir no conflito e defender seus interesses, obtendo um êxito militar que Washington supunha que Moscou não tivesse mais, ou não tivesse ainda. A Rússia, viu, veio e venceu, voltando a ser um peça importante no Oriente Médio, algo que não acontecia desde o começo dos anos 1970.

Trump estava certo em se unir a Moscou e cessar a estratégia louca de Obama para a Síria, inclusive porque um petróleo barato não interessa tanto assim à economia americana, não tanto quanto possa parecer. Mas já era tarde.

O problema de Trump foi elevar o tom contra a China, que buscou ficar silente, apoiando o grande plano global de Obama em tantos momentos. Ora, os chineses arcaram com os ganhos sem ter o ônus, da desvalorização do barril de petróleo e da valorização do dólar. E estavam lá, funcionando como recicladores do capital americano, exportando mercadorias baratas e comprando títulos americanos com os excedentes comerciais.

Trump não tinha motivo para mexer com os chineses, mas mexeu, julgando ser uma prioridade travar a China comercialmente para reindustrializar a América. O resultado das tensões, de declarações burras até pressão militar -- a Coreia do Norte pouco importa econômica e politicamente, se ela virou alvo, o alvo real só poderia ser a China, que depende da sua vizinha para a segurança nacional.

O ponto é: seja por esforço de guerra ou por ajuda dos chineses e russos, os norte-coreanos terminaram seu projeto de rearmamento  com mísseis com ogivas nucleares capazes de atingir o solo americano. A invasão da Coreia do Norte fez água diante da impossibilidade militar de sua invasão. Trump fez de Kim Jong-Un virar um player internacional.

Com isso, os chineses se reaproximaram da Rússia e mais ainda da Eurásia: o grande projeto chinês é reciclar capitais cuidando do déficit infraestrutura da Ásia, sobretudo no que diz respeito à ligação por terra com a Europa. É a Nova Rota da Seda, um projeto que custava a sair do papel enquanto os chineses estavam tranquilos com o comércio do Pacífico. Ironicamente, isso interessa aos sul-coreanos, enquanto habilmente a Coreia do Norte buscou aproximação com sua rival do sul.

Sem garantias dos americanos de um livre comércio, sem tranquilidade nem mesmo nas suas águas territoriais, os chineses se lançam para dentro da Ásia, o que favorece a Rússia -- ou duplamente a Rússia, haja vista que a valorização do barril ajuda a economia local. Moscou, acusada de fazer Trump ganhar, acabou favorecida pelos erros e os acertos da Washington de Trump.

Voltamos à política externa americana. Trump, sem criar meios de voltar ao passado, sem criar meios de fazer os EUA saberem viver em paz ou criar novos meios para guerra, sem ser capaz de lidar com tensões sociais, sejam elas econômicas, raciais ou de gênero, sem agradar o velho establishment ou a nova política, se torna o cordeiro a ser sacrificado.

Mas a aparente estupidez de Trump não tornará uma volta do establishment em uma tarefa fácil. Primeiramente, porque o vice Mike Pence não é confiável. Depois porque remover presidente e vice seria uma situação inédita na história americana, e como a experiência brasileira ensina, um país de proporções continentais não é capaz de funcionar bem com uma solução tampão. 

Novas eleições seriam uma boa saída, mas isso dependeria das grandes máquinas políticas concordarem. Inclusive porque não há garantia de que a velha política ganhe. Como a burocracia americana lidaria com a eleição de um Bernie Sanders? Os impasses corroem a América e a ausência de soluções leva a um quadro de agonia, de morte ou, com alguma sorte, de dores do parto de um novo mundo que não necessariamente será bom ou belo.


P.S.: agradeço ao Edu pelas ideias trocadas sobre a América tardia e a Vera pelo estímulo a voltar a escrever. O blog precisou de um sabático, mas escrever é importante e terapêutico. Sempre bom voltar à ativa.


2 comentários:

  1. Hugo, fico muito feliz que você tenha voltado a escrever por aqui! Essas suas análises são muito boas. Chamou a minha atenção, especialmente, o que você tratou tangencialmente nesse texto a respeito do "pós-fascismo". Diante do cenário eleitoral que se descortina em 2018, sobretudo. Se não for pedir muito, você poderia escrever um pouco mais sobre isso? Especialmente o porquê de esse discurso não construir mais estabilidade e coesão nos dias atuais.
    Obrigado pelo texto e um abraço!

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    1. Sou eu quem deve agradecer ao seu comentário e à sua presença, mestre Nuno. Bem melhor isto daqui do que face. O que eu chamo de pós-fascismo, e detalho mais no post sobre Bolsonaro, é essa tendência global contemporânea de reavivar elementos centrais do fascismo clássico, Estado grande, bem-estar social para as maiorias sociais (étnicas), militarismo, nacionalismo com uma estética pós-moderna e clean -- os inúmeros partidos de extrema-direita do norte da Europa que usam "liberdade" no nome, a imagem cool e leve do Alternativa para Alemanha dentre outras coisas. Mas há, em geral, uma crítica ao neoliberal, coisa que Jean-Marie Le Pen ou Pinochet, dois grandes representantes do que eu chamo de fascismo de segunda geração, não praticavam jamais: ali havia a combinação de privatismo com autoritarismo expresso na forma de repressão ultraviolenta.

      abraços
      Hugo

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