segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Tudo que é Bolsonaro Desmacha no Ar?

Outdoor simpático a Bsolnaro pichado em Lavras-MG (retriado daqui)



Bolsonaro. O que dizer disso? Vivemos em tempos distópicos no mundo, e o Brasil não é uma ilha. A implosão da ordem normal das coisas cria uma vertigem, um efeito pelo qual o chão se desfaz, abalando nossas mais elementares crenças na realidade. Essa realidade, esse regime de símbolos que supúnhamos ser sólido como o chão sob os nossos pés, sempre foi isso: um dos muito sistemas, ou modos do sistema, possíveis, mas nem por isso a sensação deixa de ser menos nauseante, pois nem mesmo a consciência dessa abstração nos livra dos efeitos materiais e concretos desse processo. Tudo que é sólido desmancha no ar. E como desmancha. 

A distopia vem quando esse rompimento não cria nem a liberdade nem um novo simulacro, uma nova matrix, dando vazão à incerteza e a emergência de seres apocalípticos. Jair Messias Bolsonaro expressa bem isso: para uns ele é o messias retornado e necessário enquanto juiz, ou possível, para outros ele é o anticristo -- duas fantasias apocalípticas recorrentes e, também, simétricas, que ilustram o esforço trascendente do velho mundo em encarar seu limiar, seu desmanche.

O que Marx e Engels inovaram, captando a fina ironia de um outro grande dialético, Shakespeare, sobre a insustentável leveza dos planos de representação é que o capitalismo, como qualquer sistema despótico, não só constrói seu planos ideológico e simbólico de realidade pela destruição do antigo como, igualmente, destrói o que cria progressivamente e como regra, instituindo novos planos e novos modos de planos. 

A novidade capitalista é que seu funcionamento, e sua sobrevivência, gira em torno de uma norma na qual a excepcionalidade da ruptura se torna regra geral -- não à toa, o pensamento nazista girou em torno do aperfeiçoamento da destruição por meio de sua domesticação, da sua sujeição à praxe e à política de governo, de como fazer comandar racionalmente a destruição. Bolsonaro é esse ser que emerge -- no mundo que o novo não nasceu e o velho se encontra às turras com à sua morte, para recorrer à imagem clássica de Gramsci.

Mas as rupturas necessárias, são, ao mesmo tempo, brechas, mesmo na sua hipótese apocalíptica de distopia e crise profunda. Estamos em um desses momentos no Brasil. O vento é forte e a tempestade no horizonte se anuncia com nuvens escuras e densas. O sistema se esforça para uma recomposição de normalidade, um novo simulacro, que pode se utilizar da pulsão de morte, e suicídio, e precisa se esquivar das pulsões de vida. O risco sempre está presente.

A capacidade romper consigo mesmo, trair às suas criações sempre foi o mistério e a feitiçaria que permitiu ao capitalismo sobreviver, mas sempre foi a maldição que não o faz viver jamais em paz. Nenhum operador seu está seguro na sua tarefa: o perigo que ameaçava o senhor feudal ou os aristocratas do mundo antigo eram exteriores ao sistema que operavam.

Bolsonaro, como a maioria dos deputados brasileiros, atende ao modelo de cidadão do sistema moribundo, mas é quem mais violentamento o defende: é branco, homem, cisgênero, heterossexual, bem-sucedido. Essa constituição do discurso, e de imaginário, evidentemente é uma expressão tardia e sólida do velho fascismo, que apenas sistematizou chavões, superstições e distúrbios psicossociais da Europa do século 19º. 

Em um primeiro lugar, Bolsonaro é visto paradoxalmente como alguém de fora da política tradicional e, por outro lado, como alguém próximo da nossa realidade social e de um desejo de restauração e conservação como forma de resistir ao estado de coisas atual -- seu discurso é bastante impressionante, em termos de agressividade, para um político, mas não para as pessoas, as pessoas sempre têm um tio, um pai ou um avô como ele. 

No mais,  a onda de renascimento de um extrema-direita, por conseguinte, não é estranha a essas terras. Do mesmo modo que o fato da extrema-direita ter ficado hibernando, mas não morta, desde o final da Segunda Guerra Mundial também não nos é alheio. Bolsonaro é o símbolo desse ressurgimento no Brasil, para quem o ama, para quem o odeia.

Bolsonaro, no entanto, vem de um tipo de direita radical que, por seu turno, não vingou exatamente pelo mundo. O atual revival da direita fundamentalista passa, também, por um pós-fascismo pelo qual lideranças incorporam uma estética pós-moderna conjugada com uma agenda semelhante a do velho fascismo; Bolsonaro, contudo, é um fio desencapado do neoliberalismo: se Pinochet foi o precursor disso, como "mal necessário" desse projeto, Bolsonaro é uma reprodução tardia, que aconteceu quando já estava velho.

A nova direita constitui seu imaginário sendo estaticamente (pós)moderna e politicamente retrô: voltamos aos anos 1920, na qual a resposta para o presente está num passado ideal e seguro, o que exige  uma aliança contra minorias sociais, mas com um sistema de proteção social para as maiorias agrupadas na forma de nação -- é assim com Marine Le Pen e, também, com Trump, o Alternativa para a Alemanha ou o Partido Independentista Britânico.

Bolsonaro, torno a dizer, no fundo não têm isso a oferecer aos seus eleitores, talvez os mais crentes e engajados. Bolsonaro é o fundamentalismo de mercado associado ao Estado grande enquanto máquina de repressão, aprisionamento e morte. As dúvidas quanto isso giram em torno muito mais do que Bolsonaro poderia ser obrigado a se tornar em um governo do que, vejamos só, o que ele seja hoje.

As três gerações de extrema-direita expressam, contudo, um mesmo desespero das oligarquias dominantes em sistema capitalistas. No frigir dos ovos, o que as une é a percepção das elites econômicas proprietárias capitalistas perderem o controle -- ou até mesmo terem um fim trágico, que elas supõem que as pessoas lhes dariam caso soubessem como o sistema funciona.  O efeito geral da extrema-direita sobre a sociedade é de um suicídio coletivo como bem observam Deleuze e Guattari, começado pela prática de morte -- é como se o interesse em matar, e não só deixar morrer, para sobreviver escondesse um desejo suicida.

Bolsonaro, entretanto, passou a sofrer ataques pesados da grande mídia. Por sinal, ele está sofrendo ataques como nunca. Denúncias de corrupção passaram a explodir depois que o deputado, finalmente, conseguiu partido para poder se candidatar. Até então, Bolsonaro era uma figura execrada porém tolerada. 

A questão central é que a realização do fenômeno global do renascimento da extrema-direita no Brasil, ironicamente, vem acompanhada de um cruel paradoxo. Enquanto na Europa, o fenômeno se conecta à massa de trabalhadores da etnia majoritária, mas gradualmente excluídos do status que passaram a ter no século 20º pela decadência dos mecanismos do bem-estar social -- seja o salário ou os serviços públicos --, no Brasil, o fenômeno da extrema-direita é um fenômeno da elite ou, ao menos, da clientela da elite, dos estratos médios.

A contiguidade do desespero de uma parcela da elite e o elemento racial, mas também de gênero são comuns, mas no aspecto do substrato de classe, as pesquisas brasileiras surpreendem: é entre jovens e mais altamente escolarizados que Bolsonaro encontra seus eleitores. São as classes médias urbanas do sul que apoiam o radicalismo de direita, não trabalhadores pobres -- nem que fossem os trabalhadores pobres e brancos.

Em termos eleitorais, enquanto na Europa são setores que antes poderiam votar nos partidos à esquerda do centro que rumam para a extrema-direita, no Brasil, são eleitores que tenderiam a votar na centro-direita ou mesmo na direita clássica que cogitam em votar em Bolsonaro. 

Nos EUA, digamos que o sistema praticamente bipartidário tenha ajudado a Trump crescer tomando espaço de políticos tradicionais de direita, mas os países europeus, multipartidários por natureza, tivessem um sistema como o americano, possivelmente, o mesmo teria acontecido por lá.

Seja na Alemanha, na França ou nos EUA, o eleitor da extrema-direita é da etnia majoritária, mas pertence aos setores excluídos da educação superior e acertado em cheio pela dinâmica de precarização econômica. Aqui não. É o branco que quase chegou lá se aliando com setores radicais da oligarquia e com o estamento militar, pronto a conservar seus privilégios.

A aliança, aqui, é entre a parte mais desesperada da oligarquia e setores médios, seja pelas peculiaridades do Brasil -- como a existência prologanda e massiva de uma escravidão colonial afetou a composição de classe -- ou, talvez, porque a possibilidade de adesão a esse discurso de extremista encontre repouso entre setores que sintam, por alguma razão, que estão a perder seu status social -- e se isso, no Brasil, vem de setores que não são os mais afetados pela crise ou pela pobreza do país, logo, voltamos à primeira questão: somos uma nação fragmentada pela herança colonial e escravagista não resolvida.

A isso se soma à radicalização discursiva que a direita moderada adotou nos últimos anos: desde as eleições e o confronto ao petismo, muitas vezes recorrendo a expedientes morais, seja no processo de destituição bárbaro de Dilma Rousseff, na qual setores radicais foram arregimentados, financiados e apoiados para tanto.

Se a queda de Dilma gerou uma volta da centro-direita ao poder, para executar um programa de austeridade radical ao sabor do mercado financeiro, ele não colocou esses grupos necessariamente no comando, embora lhes tenha cedido cargos e algum espaço. Todavia, as inúmeras redes com discurso de ódio acabaram por ganhar autonomia e relevância eleitoral ao apoiarem Bolsonaro. 

A decepção com o governo Temer, em vez de gerar qualquer autocrítica, resultou em uma radicalização desses grupos a procura de uma solução autêntica e orgânica aos seus anseios. De repente, isso tornou um deputado de inúmeros mandatos em alguém de fora do jogo político -- a estratégia do establishment político brasileiro, de isolar e tolerar Bolsonaro, lhe deu, no nosso atual contexto, a visibilidade necessária para ser presidente, blindando-lhe da percepção negativa que se abate contra a classe dirigente.

Por outro lado, Bolsonaro não é líder de nada, não tem um entourage preparado, mas é apenas a face pública que se permitiu ser o pára-raio dessa onda grande -- apoiada, ainda, por estamentos como as forças armadas, em sua base e mesmo entre hierarcas. Em outras palavras, o número que Bolsonaro soma é relevante, embora não suficiente para vencer uma eleição.

Do ponto de vista dos grandes números, ele está simplesmente impedindo que um candidato da direita tradicional, encabeçada até segunda ordem pelo PSDB, vá ao segundo turno. A questão é: os grandes polos de apoio dessa direita estão nos grandes meios de comunicação e eles, por meio de denúncias de corrupção, esperam minar uma candidatura que eles julgavam ser, até outro dia, uma bolha bastante frágil.

Esses ataques podem minar Bolsonaro, mas não passarão uma borracha nas forças sociais que ele representa, uma onda poderosa que pode ser organizada dentro de alguns anos por figuras e organizações políticas mais sofisticadas e perigosas, caso a política tradicional ou transformadora não apresentem soluções.

É um dilema que resta uma questão em aberto que é o fato das pessoas mais instruídas estarem dando vazão a essa "solução". Se as instituições que deveriam, minimamente, formar os cidadãos mais aptos a pensar estão falhando em sua missão, a profundidade e complexidade do problema brasileira é consideravelmente maior.

Se Bolsonaro também desmanchará no ar, tal e qual a ordem que lhe impedia de ser um político relevante, é algo ainda não definido embora provável. O movimento que lhe origina, no entanto, é mais complexo e difícil de combater. Retirar a antena que fez convergir esses setores não necessariamente evitará sua convergência em outra ocasião próxima, de forma mais agressiva e inteligente. A única certeza é que nossas certezas são vãos e se desfazem com muita facilidade.

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