segunda-feira, 9 de março de 2009

Estupro, Aborto e Excomunhão

Gostaria de comentar temas mais leves, coisas mais amenas, mas o momento não vem ajudando. Nesse exato momento, estou consternado com o fato da Igreja ter excomungado a equipe médica que interrompeu a gravidez da menina de nove anos em Alagoinha-PE - como se ainda não fosse suficientemente chocante, tal gravidez era decorrente de sucessivos estupros que ela sofria desde os seis anos de idade pelo padrasto. Grávida de gêmeos e fadada a morrer no parto, ela sofreu o aborto por meio de um processo perfeitamente legal previsto em nosso Código Penal:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por
médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da
gestante;Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento
dagestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.


O caso, como os senhores podem perceber contempla não apenas uma, mas sim duas das situações previstas no art.128 do CP. Processo perfeitamente legal, no entanto, o que aconteceu em seguida? O Arcebispo de Recife e Olinda, Dom José Cardoso Sobrinho excomungou a mãe da menina e a equipe médica que realizou o aborto legal se baseando no Código Canônico, o mesmo que absolveu o pérfido estuprador e que fatalmente condenaria a menina à morte. Uma vergonha imensa.

Há quem argumente sobre a questão da "punição apenas simbólica", que 'ninguém levará em consideração', no entanto, as pessoas esquecem que os símbolos, esses curiosos conceitos mutuamente relacionais e inteligíveis, base de nossa linguagem e da nossa interpretação de mundo são tudo. Com isso a Igreja pretendeu intimidar médicos e enfermeiros católicos que um dia pensem em praticar aborto legal para salvar a vida de uma menininha vítima de estupro. Se as tentativas obscurantistas da Igreja em mudar a Lei não tem obtido êxito, que se apele à intimidação religiosa então.

Claro, há que se ressaltar aqui a altivez e a coragem do Dr. Moraes, católico não praticante - por que será que isso tem se tornado tão comum, hein? -, excomungado e que reagiu com a elegância de um homem racional e superior com a consciência limpa de quem fez a coisa certa - e de que talvez possa levar uns séculos, mas certamente tirarão sua alma do inferno. Todavia, será que é possível esperar isso de todos os católicos? Creio que não. Por mais que a Igreja tem perdido fiéis, o Brasil ainda é de maioria católica e se até mesmo esse humanista, laico desde que passou a se entender por gente, está discutindo esse assunto, pense então sobre a comunidade que bem ou mal é religiosa.

Mas o que se esconderia por detrás disso? A que deve essa ação espetaculosa capaz de chocar direitistas e esquerdistas - ou de qualquer um que se julgue vivente do século 21º? Pensa esse humilde escrevinhador que isso pode ter a ver com a questão dos anencéfalos. Se nessa questão, também contra a vontade da Igreja, a norma em relação ao aborto pode acabar sendo reinterpretada à luz da Constituição atual implicando na legalização da interrupção da gravidez também nesse caso, eu penso que a reação da Igreja por meio de sanção religiosa - que felizmente não tem mais força vinculante no nosso Direito - no caso de Alagoinha justamente em relação a esse dispostivo não é um mero ponto fora da curva, mas parte de um jogo de forças, onde a Igreja Católica procura se impôr duramente, não obstante a laicidade do Estado. Temo que isso vá agravar a crise no catolicismo nacional mais ainda.

8 comentários:

  1. Acabo de deixar um comentário em outro blog _ o Teia Neural _ sobre o mesmo tema, porém sob outra perspectiva, no caso, antropológica.
    Eu até tenho uma opinião formada a respeito do direito ao aborto, ainda mais neste caso, mas quando o assunto é religião eu gosto de seguir o senso comum. Ou pelo menos o que eu acho que é o senso comum.

    A percepção que eu tenho da decisão do Arcebispo de Olinda é de que, para os católicos deste país, isso não representa muito. Nosso catolicismo é mais devocional e pouco preso à Igreja como instituição. Por mais religiosos que sejam, os católicos brasileiros tem a sua próprio definição do que é ser católico. Tanto que a religião parece não intimidar a pratica do aborto. Segundo dados da OMS, no Brasil mais de 1 milhão de abortos são provocados todos os anos, e a maioria deve ser de mães católicas, já que a maioria da população é.

    Além de ser uma decisão desumana, a excomunhão dessas pessoas não agregou nenhum capital moral à Igreja. Nem intimida a prática do aborto, nem arregimenta fiéis. Para a maioria dos católicos que conheço a autoridade de um padre, bispo ou arcebispo termina na porta da igreja. Na minha religião mando eu!

    A decisão do arcebispo foi lamentável, mas inócua. Na minha opinião, é claro.

    ResponderExcluir
  2. Eduardo,

    No que toca a relação do catolicismo e a prática do aborto, sim, não resta dúvida que a religião não tem conseguido intimidar a sua prática, mas ela é um das fatores que mais tem colaborado para a maneira como os abortos são realizados no nosso país - e das mortes decorrentes disso - tanto pela via da sua demonização quanto pela atuação do seu lobby no Congresso - que atua de maneira implacável e muito pouco simpático à laicidade do Estado nem à racionalidade como em casos como o da gestação de fetos anencéfalos.

    Sobre a excomunhão, eu discordo, é evidente que isso não tem mais o mesmo o peso que teria há décadas atrás, mas ela ainda tem seu peso moral e político. Claro, é uma tentativa desesperada que, também ao meu ver, será um tiro no pé, mas num primeiro momento tem o seu peso - e grande -, isso tem.

    Daí é que surge minhas considerações que a decisão do bispo não foi inócua, ao contrário, ela ainda produz efeitos negativos.

    abraços

    ResponderExcluir
  3. Hugo,

    Essa é uma verdade cruel. A criminalização do aborto empurra milhares de mulheres para clínicas clandestinas ou para métodos pouco ortodoxos para interromper a gravidez. Mas não acredito que a Igreja, algum dia, possa mudar de posição. Quem precisa mudar é a sociedade, só ela pode pressionar pela mudança na lei.

    Quanto a excomunhão, talvez eu tenha generalizado demais uma opinião que é minha. Ser excomungado, para mim, mesmo sendo católico, não alteraria nada em minha vida. E depois, a excomunhão não é irreversível. Basta demonstrar um comportamento piedoso dentro da comunidade e se confessar com um bispo (qualquer um) para voltar a comungar. A Igreja ainda tem dessas. Mas você está certo quanto ao peso dessa decisão. Tanto que a Igreja brasileira ficou dividida; muda, pois só pode ter uma vóz oficial, mas dividida.

    Eduardo Prado

    ResponderExcluir
  4. Eduardo,

    Exato. Chegamos a um denominador comum.

    ResponderExcluir
  5. Quando se trata apenas de defesa teórica de questões doutrinárias, o que diz o Papa ou um bispo ganha algum espaço na imprensa e logo depois é substituído por outras pautas.

    Mas, no caso presente, a Igreja se viu confrontada com um fato aberrante, uma realidade cruel destinada a marcar toda a vida de uma família. Na minha opinião, conviria à arquidiocese discrição (algum outro líder católico se pronunciou sobre o assunto?).

    É difícil acreditar que, mesmo fiel por motivos óbvios aos dogmas, um líder religioso seja completamente insensível às complexidades que envolvem certas situações de vida. Não se manifestando, pelo menos de forma tão categórica, evitaria ter colocado a Igreja Católica como defensora de um criminoso amoral e perseguidora de alguém que, por injunção profissional ou não, praticou um ato de compaixão.

    Mas, concordo que o efeito prático de tal atitude, ainda que simbolicamente expressivo, seja reduzido. Isso porque os nossos católicos, praticantes, semi-praticantes ou do IBGE, caracterizam-se por um alto teor de auto-complacência doutrinária. Ou seja, não deveriam praticar determinados atos, reprovados pela Santa Madre Igreja Católica, mas os praticam levados pela necessidade e condicionamentos do dia-a-dia.

    E assim caminha a humanidade.

    ResponderExcluir
  6. Anraphel,

    Concordo plenamente com o seu terceiro parágrafo, a ação da Igreja no episódio foi bizarro ao extremo - tanto é que no post eu coloquei que isso não é uma mera aplicação seca do Código Canônico ao caso sem ponderar certas variáveis, mas sim uma aplicação política que visa marcar posição de maneira mais dura em relação a eventuais e bem prováveis mudanças que podem acontecer na Lei nos próximos anos, daí também todo o estardalhaço.

    Torno a frisar, no entanto, que o peso disso pode não ser tão grande quanto há alguns anos atrás, mas não desprezaria o peso que ele tem ainda hoje - mas claro, isso é de fundamentalismo tão flagrante e chocante que resultará em mais perda de fiés.

    abraços

    ResponderExcluir
  7. Eu nem sei qual palavra usar que melhor expresse meu sentimento de consternação para com essas aberrações que infelizmente têm feito parte de nosso diário cada vez mais.

    Eu ia fazer um post sobre isso, mas devido a um sem número de fatores, perdi o time e deixei prá lá. O post ia ser baseado em um outro que li do Cardoso, figurinha carimbada na blogosfera nacional pelos seus textos sempre ácidos quando o assunto se relaciona à religão, fé, etc.

    Como cristão, sempre tive asco dos seus escritos -- quando a pauta é esta --, pois além de criticar a religião, debocha dos teístas imprimindo a tão idealizada áurea de superioridade/intelectualidade do ateísmo.

    No entanto, para o meu espanto -- e muito espanto -- pela primeira vez, tive que concordar com o que ele escreveu. Em um textos sem muitas críticas e extremismo, lembra aos cronistas e escrevinhadores que se esbaldavam ao criticar o Dom Cardoso e sua escrupulosa decisão, que a posição adotada pelo cardeal visa apenas a manutenção da ética e integridade *do bispo*.

    Quando ele aceitou a castidade e se propôs a este serviço, se submeteu a uma Instiuição que tem regras e dogmas muito bem esclarecidos, ele apenas desempenhou o seu papel ao cumpri-las. O que deveria estar em pauta nas disucussões não é a atitude do bispo, mas sim os dogmas da Igreja à qual o bispo é submetido.

    Ao terminar de ler o post não cabia na minha cabeça a ideia de que tinha que concordar com o Cardoso justamente nesse assunto. Mas a realidade é cruel. Duramente cruel.

    ResponderExcluir
  8. Luis Henrique,

    Ponderando o que poderia ou não ser feito, lembro que o Código Canônico, apesar da imagem que passa, é, na verdade, um código não muito diferente dos produzidos pelo Estado e sua interpretação e aplicação para um caso concreto não é tão diferente assim deles.

    Nesse sentido e levando em conta que não se aplica o Direito em tiras ou tampouco ignorando a ponderação de valores, creio que a atitude do Bispo foi desmedida e claramente política, não jurídica - daí minha crítica, mesmo que a Igreja entendesse que era necessário a punição, a que foi aplicada, no entanto, apenas serviu para criar antipatia popular, medo e ainda por cima não colaborou para resolver a situação do caso em questão ou trouxe alguma luz para a questão do aborto.

    Sobre a Igreja, eu afirmo como filho de pais católicos - e ex-católico - que é aquela velha contradição entre ser católica e ao mesmo tempo romana; é também uma organização religiosa, mas ao mesmo tempo é política e como tal possui uma estrutura jurídica complexa e gigantesca em seu interior; o seu Direito se confunde com sua a Política e, claro, com dogmas religiosos, mesmo sendo feito por homens para homens. É confuso, bem confuso, mas mira de uma maneira bem peculiar e aparentemente não-planejada mira um alvo bem claro que é possibilidade de flexibilização das regras para interrupção de gravidez no nosso país que deve se consolidar nos próximos anos.

    É triste porque eu considero que a religião poderia ter o seu lugar no mundo contemporâneo - nesse vácuo que é a pós-modernidade -, mas o que as está jogando no lixo da história é justamente a contradição entre a pureza de suas crenças e os interesses políticos que a maioria delas possui devido ao sectarismo institucional que a Igreja, mais do que a média, também tem.

    Sobre o ateísmo, concordo com as suas observações: É curioso ver o quanto ele se parece com uma religião, no fim da contas, é um dos muitos dogmas laicos que temos na nossa sociedade - em muitos momentos, fazer um piada sobre a bíblia ou se afirmar ateu gera um conforto intelectual não muito diferente do que a afirmarmação da fé por parte de um religioso. É como acontece com os setores do movimento feminista que nada mais faz do que machismo voltado contra o espelho.

    abração

    ResponderExcluir