quinta-feira, 7 de julho de 2011

Exame da OAB: A Fratura Exposta da Educação Jurídica

Os resultados do último exame da OAB de 2010 foram divulgados recentemente e, com base nos dados, fiz até um ranking para observar melhor a situação. Naturalmente, uma série de questões se impóem diante de um exame cuja reprovação foi de quase 90% dos participantes - ou onde, tirando o caso excepcional da Faculdade Alvorada cujo único participante foi aprovados no exame da Ordem, a Faculdade mais bem colocada foi a da UnB com míseros 67% de aproveitamento. É algo a se pensar seriamente. Sim, o resultado prova, por comparação relativa entre as faculdades, que existem cursos muito ruins, mas a alta taxa de reprovação - muito maior do que nos últimos anos - suscita que o exame ganha cada vez mais um mero caráter de bloqueio de acesso à profissão - bem radical, aliás.

Em um primeiro lugar, não custa pontuar que no Brasil atual, grande parte dos jovens com talento para as áreas de humanas normalmente desistem de seu curso desejado para cursar Direito. As causas? A principal e mais relevante delas é financeira. Com o esmagamento da carreira do magistério no país, inúmeras áreas de humanidades foram inviabilizadas, pois elas servem principalmente para dar aulas - o que tornou-se opção de militância ou escolha de quem não consegue algo melhor há pelo menos vinte anos. A possibilidade de prestar concursos ou usar uma das múltiplas carreiras oriundas da advocacia para ter um ganha pão, portanto, gerou uma demanda grande pelo curso de Direito. 


Ademais, numa economia mercadificada e sem segurança, as pessoas vão mesmo para, pelo menos o campo que paga mais na área que elas têm mais aptidão. Esse contingente, no entanto, é grande relativamente aos egressos do Ensino Médio que tentam entrar na Universidade, o que é pequeno em relação à necessidade social por profissionais com nível superior - em que pese ainda a questão da distribuição desses profissionais, profundamente disfuncional, o que agrava o problema do acesso à justiça.

Em um segundo lugar, tivemos a mercantilização da Educação Superior nos anos 90. Nesse contexto, um dos casos mais emblemáticos do que é a aplicação da lógica do mercado em negócios acadêmicos foi, justamente, a área jurídica: as novas universidades e centros universitários, orientados pela lógica mercantil, interpretaram a demanda gigantesca por cursos de Direito, vejam só, como razão para a construção de uma oferta suficiente - e assim cumprir seu fim, isto é, fazer dinheiro -, em um processo no qual a excelência acadêmica é um mero detalhe. A bolha de demanda criou uma bolha de oferta, cuja forma de um sem número de cursos ruins - e ainda uma bolha subsidiária: a dos cursinhos pré-vestibular.

O mesmo sistema que permite a criação - e depois a manutenção - de uma bolha de vagas é aquele que, depois, cria um exame que não serve para medir conhecimento, mas sim para realizar um corte profundo.  E a resolução da bolha de demanda não se resolve unicamente pela não abertura de vagas, é um problema socioeconômico que escapa à alçada da administração do sistema de educação jurídica superior. E essa própria bolha de demanda, reitero, se dá dentro do contexto de um país onde a proporção de egressos do ensino médio que vão para as universidades é pequena.


Curiosamente, falamos de um curso universitário que não só termina posto em função de uma prova, mas de uma área do saber - cuja formação exige capacidade afiada de interpretação, escrita e fala para defesa ou contraposição de teses - sendo condicionada por uma prova na qual tudo é uma questão de achar a solução objetivamente certa. Não existe uma política pública de intervenção nos cursos ruins, apenas uma medida que nem é sequer do MEC, mas sim da OAB no sentido de cortar vagas.

Uma vez estabelecido isso, o arcaísmo do jurista, das primeiras representações trazidas à tona pela burguesia recém-detentora da hegemonia, parece retomar o caminho do limbo da História. Em seu lugar, pelo menos no bom e jovem Brasil, ascende a figura do técnico em legislação aplicada, o operador acéfalo da máquina judicial kafkiana na qual o processo é um fim em si mesmo. Sinal dos tempos do Brasil atual? Um lugar onde a crença no gerenciamento da vida pelas mãos de uma orgulhosa burocracia caminha para se tornar o credo oficial? Não necessitaria essa máquina de seus pequenos e argutos pequenos burocratas - como as crianças e seus pequenos dedos na nascente indústria têxtil - no lugar do agora incômodo e grandiloquente retórico profissional?

Além dessa questão de fundo, normalmente ignorada, a problemática da estruturação do sistema de cursos de Direito permanece. A prova da OAB não faz diferença na qualificação dos cursos, ela apenas os pune, pode criar um desestímulo da procura pelo curso no médio prazo, mas não faz diferença. O tamanho do corte, inclusive, onde cursos como os da UnB e da USP só aprovam dois terços dos seus bacharéis lança dúvidas sobre o referencial usado na prova. O próprio MEC que, a reboque dos resultados da OAB, congela a geração de vagas, mas não cria políticas de inclusão qualificada relevantes - o que se restringe apenas ao aumento de vagas nas Federais, que voltaram a receber investimentos no Governo Lula, mas ainda é pouco. É preciso tomar providências produtivas que desconsiderem o binarismo exclui/inclui (de qualquer modo), é imperioso incluir mais pessoas nas cadeiras das faculdades de Direito, mas é necessário que AO MESMO TEMPO isso seja feito com qualidade.

Nesse sentido, ainda que algum exame mereça ser aplicado aos inúmeros bacharéis, é preciso sim questionar a prova nos moldes atuais  e, quem sabe, usa essa fratura exposta para discutir a problemática material e formal da Educação - sim, porque não falamos só de ensino, mas também das sempre esquecidas pesquisa e extensão - Jurídica no país, incluindo com qualidade, enfrentando a necessária reforma curricular e, quiça, encarando a questão do acesso à justiça neste país, sempre tão negligenciado.



10 comentários:

  1. Uma dúvida que sempre me aparece é se, de fato, sobra advogados.

    Concordo que o número de formados em direito é grande e que em um momento será insustentável, mas vi que o número de juízes é um terço do necessário. Como estaria os números de outros cargos públicos da área?

    E a quantidade de advogados necessários a cada 10 mil habitantes, por exemplo? E como está a concentração desses pelo país?

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  2. Educação nada tem a ver com ensino, pesquisa, e extensão.

    Isso tudo tem a ver com instrução; educação é outra coisa que acontece melhor sem ou fora das escolas, nas ruas das cidades (como dizia Ivan Ilich - o outro, não o personagem moribundo de Tolstoi).

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  3. Na verdade,as Faculdades de direito tornaram-se verdadeiras fábricas $$$$ de diplomas,com professores despreparados,pessimamente remunerados estrutura deficiente.
    Uma vergonha à qual o MEC repetidamente fecha os olhos.
    Um abraço.

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  4. André T,

    Isso varia em função do número de processos que existe, mas eu posso te garantir que faltam defensores públicos; o Judiciário está parado e o acesso à justiça da população pobre está seriamente comprometido. A Constituição de 1988 trouxe (felizmente) toda uma série de direitos e garantias - como o direito do consumidor além de todo o rol de direitos difusos e coletivos - que exigia a formação de mais e melhores profissionais na área, sem exclusão de qualidade e quantidade na formação. Estamos a espera disso, pois a expansão da Educação Superior não foi suficiente e ainda de baixa qualidade.

    abraços

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  5. Lucas: eu me referi à Educação Jurídica, portanto, um espécie de Educação de nível universitário, logo, um tripé constituído em ensino, pesquisa e extensão nos termos do art. 207 da Constituição.

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  6. james,

    Não só as faculdades de Direito, mas quase todas as universidades e centros universitários privados nascidos nos anos 90 - e, em alguns casos, boas e tradicionais universidades comunitárias que mudaram de lado com a nova ordem. O Governo Lula, reitero, investiu bastante nas universidades estatais, mas foi ambíguo quanto à mercantilização da Educação; o problema não é, no curto e médio e prazo, a existência de instituições privadas suplementando a estrutura pública, mas de universidades privadas praticando comércio como essas grandes redes fazem. O lobby delas é poderosíssimo, os governos estaduais do PSDB em São Paulo estão envolvidos com ele até o pescoço - essa mercantilização nasce, a bem da verdade, com o falecido Paulo Renato no Ministério da Educação de FHC - e o PT contorna bem o problema, mas não se aprofunda como deveria.

    abraços

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  7. A massificação dos cursos acadêmicos em geral e de Direito em particular atende a interesses não apenas do empresariado educacional, mas também de uma parte expressiva da população que quer e precisa de um curso superior sem fazer muita força, só a financeira.

    É gente que precisa de um diploma para manter um cargo na empresa ou concorrer a uma promoção e também aqueles que visam submeter-se a bons e medianos concursos, seja na área jurídica (até para Oficial de Justiça e Escrevente de Cartório já exigem o 3o. grau) ou nas demais.

    É o ápice da instrumentalização do ensino superior (!). Quando a OAB unifica a aplicação da prova num nível mais exigente ela parece querer colocar freios nesse processo de fuleirização - isso, claro, se o MEC levar em consideração as suas observações sobre a qualidade dos cursos e a necessidade de supervisão e acompanhamento. A verdade é que já está mais do que na hora de se passar da fase quantitativa para a qualitativa.

    Quanto ao excesso de formados em Direito e a carência de Defensores Públicos, acho que é uma realidade nacional. É uma pena que os estados não tenham o devido empenho na consolidação dessa importante e democrática instituição.

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  8. Anrafel,

    Eu discordo do seguinte, a inclusão no mundo universitário não exclui a qualificação dos serviços. E nós ainda temos muito o que incluir no ensino superior. Em 2008, nós só tínhamos apenas 11% da população entre 25 e 64 anos com diploma universitário. O índice chileno, no mesmo período, era de 24%. Dá para ver até mais coisas nesse relatório da OCDE.

    A história da massificação que acabou com a qualidade é mito; nós ainda temos pouca gente formada e pouca gente nas instituições de educação superior. O que ocorre é quem foi incluído dos anos 90 para cá, claramente, o foi, via de regra, de forma atabalhoada por conta de políticas públicas que deliberadamente abriram espaço para a mercantilização da academia brasileira.

    E esperar que o exame da OAB vá resolver qualquer coisa no campo da Direito é como acreditar que o Vestibular melhora a qualidade do ensino médio. Melhora? Eu creio que não. Na verdade, movimenta um comércio paralelo, o de cursinhos pré-vestibular, que giram um bom dinheiro, mas não representam lá grande acréscimo ao patrimônio intelectual do país.

    A única coisa que força, relativamente ao pouco de gente que está na Universidade, uma demanda no Direito é tanto mais uma crise nas outras áreas de humanidades que, por sua vez, se confunde com a própria crise do magistério, das muitas decorrências do desmonte da Educação Pública. Essa saída punitivista, de cortes de cabeças por meio de uma prova "rigorosa" - meramente mimética - é uma falácia que só serve para alimentar a paranoia alheia e, ainda, manter os salários dos advogados em alta por meio da redução de oferta de profissionais na sociedade.

    abraços

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  9. O processo de massificação do ensino universitário não exclui a qualificação. O problema é que o primeiro se deu na década de 90 junto com um descaso quase completo em relação à universidades públicas, as de melhor qualidade, o que é a grande herança do senhor Paulo Renato, corrigido de alguma maneira pelos governos de Lula.

    Não desconsidero o tremendo corporativismo dos profissionais do Direito, mas acho que os dados da prova da OAB revelam um diagnóstico preocupante. Daí a servir para políticas oficiais, é outra coisa.

    De fato os cursinho pré-vestibular em nada contribuiram (ou contribuem) para a relevância intelectual brasileira. Já os defini, inclusive, como os grandes gigolôs do fracasso educacional braileiro nos ensinos fundamental e médio. Resta saber como eles se comportarão com a consolidação do Enem (se esta acontecer).

    Para finalizar, vem aí o senador Álvaro Dias relatando o atraso de vida que é o projeto de lei 222/2010, que autoriza qualquer cidadão com nível superior a dar aulas em universidades.

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  10. Aliás, a respeito desse último item, valeria até um debatezinho.

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