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Hollande e sua esposa cumprimentam eleitores |
O socialista François Hollande e o conservador, e atual presidente, Nicolas Sarkozy estão a uma semana da votação que definirá as eleições francesas. Até aqui, Hollande segue favorito do mesmo modo que já era há meses atrás. As pesquisas são claríssimas: Hollande alterna entre 54% e 56% das intenções de voto e só um fato novo muitíssimo relevante poderia tirar essa vitória dele - detalhe para o fato de que pesquisas nem sempre captam certos movimentos de última hora, nem o chamado voto envergonhado, que talvez favoreça Sarkozy em algum grau, mas que, a julgar pelos fatos, tende a não ser suficiente para ele neste momento.
Um detalhe curioso sobre a provável vitória dos socialistas é que ela se daria dentro de um cenário no qual a direita, sim senhores, venceu o Primeiro Turno: somando os votos de Sarkozy, Marine Le Pen, Nicolas Dupont-Aignan e Jacques Cheminade, aquele campo registrou 47,1% dos votos - contra 41,4% da esquerda, contabilizando Hollande, Mélenchon, o anti-capitalista Philippe Poutou e a trotskysta Nathalie Arthaud, além dos 11,4% para o centro, inclusos aí o europeísta Bayrou e a verde Eva Joly.
A despeito do fracasso do seu governo, é curioso notar como Sarkozy caminha para perder uma eleição para um socialista em um cenário que favorece, brutalmente, uma candidatura conservadora. O x da questão é que o buraco, em termos de política francesa, é sempre mais embaixo: não é sobre direita e esquerda que essas eleições tratam, mas sim sobre o posicionamento da França na União Europeia, quase que em um caráter plebiscitário.
Ainda que eleitores do direitista Front National tendam a votar em Sarkozy ou, simplesmente, não comparecerem às urnas, é fato que haverá relevante transferência de voto daquele setor para Hollande, o que parece completamente non-sense, mas não é: dentro da lógica dessa eleição, certos eleitores de Marine preferem ver uma mudança à esquerda na relação franco-europeia a não vê-la.
E Sarkozy arca com o ônus de, ao longo de cinco anos, ter quebrado o consenso que permeou a França desde o pós-guerra, isto é, autonomia incondicional na política externa. Ter, pela primeira vez desde o Colaboracionismo, se alinhado automaticamente - e de forma submissa - a potências estrangeiras - com o agravante disso ter trazido prejuízos econômicos - é algo imperdoável. Mesmo que a maioria dos franceses não gostem das políticas socialistas para os imigrantes - mais sensíveis, capazes de enxerga-los como humanos -, isso caminha apenas para garantir uma votação muito além do que Sarkozy poderia ter.
O fato é que a França, a exemplo dos países mais ricos da União Europeia, se favorece da união cambial, uma vez que, em tese, dispõe de uma economia mais competitiva do que a de grande parte de seus vizinhos. O ponto é que mesmo assim, o país registra déficits comerciais e ele nem ao menos consegue reproduzir o modelo parasitário alemão - de se favorecer do câmbio para se tornar uma potência exportadora dentro da Zona do Euro e que, na hora da crise, abandona seus clientes à própria sorte lhes negando crédito para não se comprometer.
Isto é, ter aceitado a valorização do Euro frente ao Dólar, junto de Berlim, não fez nenhum sentido para a França: ainda que o problema seja maior do que isso, o Euro supervalorizado é tão nocivo para a França quanto o é para Portugal e Grécia. Pior, ter tentado equilibrar as contas do país, agravadas pelo processo anterior, às custas de cortes no sistema de bem-estar só agravaram a situação de seu governo - como no caso dos mega-protestos contra o aumento da idade para a aposentadoria.
Quando Hollande apresenta um programa social-democrata contrário à austeridade, ele não está sendo irresponsável e os franceses sabem disso: as causas que forçam à austeridade dentro da Europa não são fenômenos naturais, eles têm a ver como a própria União Europeia se posiciona de forma torpe à farra dos EUA nos últimos anos - gastando horrores com guerras estúpidas e repassando seus custos para a comunidade internacional com a desvalorização do Dólar, além da emissão de moeda - e o comodismo alemão, que não precisa comprar briga nenhuma, uma vez que mesmo nesse cenário, Berlim continua a se manter estável pelo comércio intra-europeu.
Não há nada inovador em Hollande, mas é justamente isso que desestabilizaria o estado de coisas europeu atual: com a política externa francesa clássica, que une desde gaulistas e ultranacionalistas a socialistas e comunistas, boa parte do experimento que Merkel levou a cabo não teria sido possível. Se estiver disposto a confrontar isso, e ele parece realmente estar, Hollande terá o apoio firme mesmo de setores que não o apoiaram no Segundo Turno e, por tabela, considerável tranquilidade interna durante seus primeiros anos de mandato. Se conseguir uma inesperada virada, Sarkozy estará, mesmo assim, sob forte pressão desde o primeiro dia de governo e poderá ter tido uma vitória de pirro. Em resumo, o peso sem igual na política alemã.
Ainda é preciso considerar que Hollande teria algo bastante importante a seu favor (e, em sentido oposto, seria um grande problema para Sarkozy): a esquerda é majoritária no atual Senado francês, com 168 de suas 348 cadeiras contra 132 da direita e 41 do centro - mais 7 cadeiras de independentes. No mais, ainda que a composição da Assembleia Nacional (AN), na atual XIIIª legislatura, seja hostil à esquerda, é fato que a tendência aponta para a perda considerável das cadeiras por parte dos conservadores, com ou sem vitória de Sarkozy.
Confirmando-se a derrota do atual presidente, é muitíssimo provável que a esquerda parlamentar se torne majoritária na AN em Junho deste ano, a despeito da boa votação da direita nas presidenciais, uma vez que são duas eleições com caráter bastante diferente (o próprio comparecimento nas urnas, em eleições parlamentares, é bem menor do que nas presidenciais, além de ser influenciado por elas, por isso Sarkozy gozou de um apoio na AN proporcionalmente maior do que os votos que ele recebeu para Presidente).
Essas eleições exprimem, como todas as mais recentes na Europa, uma insatisfação generalizada, uma angústia total que resulta desde uma linha de fuga nomádica, como se vê com as acampadas por toda a Europa, até o seu inverso, com o crescimento de movimentos nazi-fascistas - e essa polarização fica clara com o tamanho da votação somada da extrema-direita e da extrema-esquerda na França, de quase um terço dos votos válidos.
Na prática, esse processo tem levado a trocas de governos de centro-direita por governos de centro-esquerda - ou o contrário, conforme a situação -, embora no caso islandês a volta da social-democracia ao poder depois de 30 anos tenha se verificado pelo aprofundamento de sua agenda e, no caso húngaro, tenha radicalizado a direita parlamentar para o canto extremo.
A conjuntura europeia atual, sem dúvida, encontra maiores semelhanças com os anos 30 do que com 68, embora o devir-68 presente no modo como os movimentos sociais resistiram talvez esteja fazendo a diferença porque, até agora, em larga escala, o único caso verdadeiramente preocupante é mesmo a Hungria. No que toca à 68, não resta dúvida que a França foi seu centro de irradiação para todo o mundo - e talvez a última vez que o tenha realmente sido -, mas ali, as mobilizações multitudinárias não conseguiram nem construir uma alternativa ao sistema representativo, nem produzir uma alternativa por dentro dele de forma imediata.
1968 serviu para atestar o quanto o Partido Comunista Francês era obsoleto no campo canhestro e jogar, nos anos que se seguiram, o país um pouco para a esquerda - o que, na prática, resultou na reorganização das forças social-democratas do país em torno da figura do atual Partido Socialista, cujos frutos foram verificados, sobretudo, a partir de 1974, sob a liderança de Mitterrand - que só venceu em 1981 pelo impacto de médio prazo de 68 sobre a cultura e o modo de vida franceses, potencial que, no entanto, ele não foi, nem poderia, ser capaz de extrair no grau necessário.
No atual cenário, os socialistas franceses foram capazes, à sua maneira, de compreender e absorver mais rápido as demandas do atual ciclo do que no final dos anos 60 e, atentem para isso, sem cometer os mesmos erros dos gabinetes da Frente Popular nos anos 30, que terminaram por se isolar frente à sociedade francesa - o que colaborou para o avanço do fascismo no país. Naturalmente, Hollande não é Mitterrand, cuja figura só pode ser comparada a De Gaulle na política francesa do século 20º, mas ele sabe disso e não pretende sê-lo - ao contrário de Lionel Jospin, cuja liderança entre os anos 90 e os anos 00 resultou no maior ciclo de trapalhadas da história do atual PS.
A questão que se põe, entretanto, é a problemática que restou em aberto no final dos anos Mitterrand, isto é, qual o potencial que a social-democracia ainda tem como ente transformador para melhor da vida - agora, agravada pela complexidade trazida pela emergência dos novos sujeitos políticos como a multidão e o precariado. Como bem observa Antonio Negri, o próprio Mélenchon - cujo papel nessa eleição, a meu ver, foi central para uma reforma programática no campo comunista e filo-comunista da esquerda francesa -, ainda assim não deixou de exprimir essa mesmíssima limitação.
Se a atuação da esquerda, na França ou aqui mesmo, depende cada vez mais de uma movimentação nem institucional, nem não-institucional, mas sim transversal e em rede - coisa que a direita, ao seu modo, já aprendeu há décadas -, a provável vitória de Hollande precisa ser vista com necessário desapego: ela será sim uma vitória da esquerda apesar de suas limitações - e não precisa ser comemorada efusivamente, tampouco desprezada, uma vez que se ela não se constitui em uma grande saída por si só, ao menos produz linhas de fuga cruciais neste momento em que a Europa, sete décadas após o auge do fazer morrer na forma do nazi-fascismo, assiste ao ápice do deixar morrer na forma das políticas de austeridade conduzidas por Merkel.