segunda-feira, 30 de abril de 2012

O Sétimo Selo: Entre a Catástrofe e o Apocalipse

A Morte (Bengt Ekerot) joga xadrez com o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow)
"A arte é a única coisa que resiste à morte" -- Malraux

O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, Suécia, 1957), do mestre Ingmar Bergman é, sem sombra de dúvida, um dos maiores filmes da história do cinema. A narrativa do cavaleiro que retorna das Cruzadas para sua Suécia devorada pela peste onde topa com a Morte em pessoa - com a qual disputa um jogo de xadrez no qual sua própria está em xeque - é amplamente conhecida, mas para além de todas as questões cinematográficas - a belíssima fotografia, que dá uma dimensão ímpar à solidão, o grande elenco etc - há um ponto central, de cunho filosófico, que merece ser examinado com cuidado: a temática da catástrofe definitiva, entificada e consubstancializada, como uma das questões permanentes da existência da cultura ocidental.

Trata-se, nesse aspecto, de uma película potente: ela se agencia com a temática existencialista, tão presente na Europa daqueles anos 50, tanto quanto a critica para, no fim das contas, a subverter. O Cavaleiro Antonius Block, cujo ceticismo foi construído tijolo a tijolo pela sua experiência de dez anos na Terra Santa, é um incrédulo: ele quer chegar a Deus pelo conhecimento e está pouco interessado pela fé vendida pelos padres - em relação à qual a plebe, não por acaso, só se aproxima nos seus momentos de mais agudo desespero como agora, com a peste negra devorando a costa sueca. Esse Deus não está em parte alguma. Block não o vê, não o encontra, é como se Ele existisse somente para aqueles que querem que eexista. Não bastasse isso, Block trava um mau encontro com a Morte feita pessoa, logo ao chegar: para protelar o fim de sua vida, ele parte para uma disputa desesperada, no tabuleiro de xadrez, contra Ela.

A peste está em toda parte e é sua onipresença praticamente invisível que alimenta o medo da morte, matéria-prima da economia da fé. Block é um angustiado por saber que está apenas protelando o improtelável para conseguir realizar seu encontro - enquanto seu escudeiro, como um Sancho Pança, está pouco preocupado com a melancolia, transitando com ironia por todos os planos alegremente. Enquanto isso, uma pequena companhia de teatro, formada por uma família e um chefe oportunista chega à vila, se metendo em confusões e tendo sua exibição comprometida por uma auto-de-fé. Enquanto tenta adiar seu momento final, Block se dedica, no fim das contas, a protegê-la da Morte que ronda a todos: mais do que uma grande estrategista, a Morte nos parece uma grande estratégia.

É essa família de atores, no fim das contas, a única a vencer a Morte: a arte é aquilo que escapa, nomadicamente, à entificação da morte - alegoricamente representada por uma morte pessoal - justamente por ter a fuga como condição de existência. É assim que ela fura a catástrofe, ao conseguir cruzar a floresta escura em direção a um festival - não fugindo à Morte [ou à morte na forma da peste] ou a abraçando, dois movimentos pendulares que afinal, coincidem; nem as especulações metafísicas, nem o empirismo, nem a fé, mas sim a Arte como afirmação definitiva da vida. É uma provocação potente de Bergman: fazer a inevitabilidade da morte - posta como centro de gravidade e, por isso, como suposta fonte de uma angústia inerente à condição humana, materializada no advento da Catástrofe - ser, de repente, ultrapassada por um movimento que lhe é alheio: a produção artística fecunda e despreocupada.

A Catástrofe - aqui na figura da peste negra, que é outro lado invisível da moeda que tem  por Cara a Morte - está posta na nossa civilização desde que ela tomou forma definitiva na Idade Média, com a amálgama entre o helenismo, a tradição romana e judaica na Europa tomada pelos germânicos. Não que a extinção humana - ou pelo menos da nossa humanidade - tenha saído realmente algum dia do horizonte - isso só o fez em relação àquelas espécies que foram extintas -, mas é fato que aquele modo de pensar que se dá a partir da perspectiva da extinção - do imaginário futurista que gira em torno do ressentimento pelo futuro ser apenas uma imagem - não é "natural", mas sim ele próprio produção e ordenação de conceitos e afetos voltado, por suposto, a um propósito - via de regra, econômico. 

"Não temos futuro" - como se pudéssemos tê-lo em qualquer outro lugar que não a nossa imaginação. A peste, a fome, a guerra, o cataclisma seja qual for é uma teia de relações cuja intervenção artística - a política aí inclusa - precisa se voltar, a todo instante, para evitar a obliteração, mas não é possível produzir com base na própria obliteração sem cair num vazio de angústias que apenas justifica e dá forma ao dispositivo - condicionando o hoje pela suposta concretude de um amanhã -, mas sim a partir da Vida que se busca afirmar num esforço permanente: nem contra, nem pelo Cataclisma, mas a despeito dele.





domingo, 29 de abril de 2012

Eleições Francesas: Os Rumos da União Europeia

Hollande e sua esposa cumprimentam eleitores
O socialista François Hollande e o conservador, e atual presidente, Nicolas Sarkozy estão a uma semana da votação que definirá as eleições francesas. Até aqui, Hollande segue favorito do mesmo modo que já era há meses atrás. As pesquisas são claríssimas: Hollande alterna entre 54% e 56% das intenções de voto e só um fato novo muitíssimo relevante poderia tirar essa vitória dele - detalhe para o fato de que pesquisas nem sempre captam certos movimentos de última hora, nem o chamado voto envergonhado, que talvez favoreça Sarkozy em algum grau, mas que, a julgar pelos fatos, tende a não ser suficiente para ele neste momento.

Um detalhe curioso sobre a provável vitória dos socialistas é que ela se daria dentro de um cenário no qual a direita, sim senhores, venceu o Primeiro Turno: somando os votos de Sarkozy, Marine Le Pen, Nicolas Dupont-Aignan e Jacques Cheminade, aquele campo registrou 47,1% dos votos - contra 41,4% da esquerda, contabilizando Hollande, Mélenchon, o anti-capitalista Philippe Poutou e a trotskysta Nathalie Arthaud, além dos 11,4% para o centro, inclusos aí o europeísta Bayrou e a verde Eva Joly. 

A despeito do fracasso do seu governo, é curioso notar como Sarkozy caminha para perder uma eleição para um socialista em um cenário que favorece, brutalmente, uma candidatura conservadora. O x da questão é que o buraco, em termos de política francesa, é sempre mais embaixo: não é sobre direita e esquerda que essas eleições tratam, mas sim sobre o posicionamento da França na União Europeia, quase que em um caráter plebiscitário.

Ainda que eleitores do direitista Front National tendam a votar em Sarkozy ou, simplesmente, não comparecerem às urnas, é fato que haverá relevante transferência de voto daquele setor para Hollande, o que parece completamente non-sense, mas não é: dentro da lógica dessa eleição, certos eleitores de Marine preferem ver uma mudança à esquerda na relação franco-europeia a não vê-la. 

E Sarkozy arca com o ônus de, ao longo de cinco anos, ter quebrado o consenso que permeou a França desde o pós-guerra, isto é, autonomia incondicional na política externa. Ter, pela primeira vez desde o Colaboracionismo, se alinhado automaticamente - e de forma submissa - a potências estrangeiras - com o agravante disso ter trazido prejuízos econômicos - é algo imperdoável. Mesmo que a maioria dos franceses não gostem das políticas socialistas para os imigrantes - mais sensíveis, capazes de enxerga-los como humanos -, isso caminha apenas para garantir uma votação muito além do que Sarkozy poderia ter.

O fato é que a França, a exemplo dos países mais ricos da União Europeia, se favorece da união cambial, uma vez que, em tese, dispõe de uma economia mais competitiva do que a de grande parte de seus vizinhos. O ponto é que mesmo assim, o país registra déficits comerciais e ele nem ao menos consegue reproduzir o modelo parasitário alemão - de se favorecer do câmbio para se tornar uma potência exportadora dentro da Zona do Euro e que, na hora da crise, abandona seus clientes à própria sorte lhes negando crédito para não se comprometer. 

Isto é, ter aceitado a valorização do Euro frente ao Dólar, junto de Berlim, não fez nenhum sentido para a França: ainda que o problema seja maior do que isso, o Euro supervalorizado é tão nocivo para a França quanto o é para Portugal e Grécia. Pior, ter tentado equilibrar as contas do país, agravadas pelo processo anterior, às custas de cortes no sistema de bem-estar só agravaram a situação de seu governo - como no caso dos mega-protestos contra o aumento da idade para a aposentadoria.

Quando Hollande apresenta um programa social-democrata contrário à austeridade, ele não está sendo irresponsável e os franceses sabem disso: as causas que forçam à austeridade dentro da Europa não são fenômenos naturais, eles têm a ver como a própria União Europeia se posiciona de forma torpe à farra dos EUA nos últimos anos - gastando horrores com guerras estúpidas e repassando seus custos para a comunidade internacional com a desvalorização do Dólar, além da emissão de moeda - e o comodismo alemão, que não precisa comprar briga nenhuma, uma vez que mesmo nesse cenário, Berlim continua a se manter estável pelo comércio intra-europeu.

Não há nada inovador em Hollande, mas é justamente isso que desestabilizaria o estado de coisas europeu atual: com a política externa francesa clássica, que une desde gaulistas e ultranacionalistas a socialistas e comunistas, boa parte do experimento que Merkel levou a cabo não teria sido possível. Se estiver disposto a confrontar isso, e ele parece realmente estar, Hollande terá o apoio firme mesmo de setores que não o apoiaram no Segundo Turno e, por tabela, considerável tranquilidade interna durante seus primeiros anos de mandato. Se conseguir uma inesperada virada, Sarkozy estará, mesmo assim, sob forte pressão desde o primeiro dia de governo e poderá ter tido uma vitória de pirro. Em resumo, o peso sem igual na política alemã.

Ainda é preciso considerar que Hollande teria algo bastante importante a seu favor (e, em sentido oposto, seria um grande problema para Sarkozy): a esquerda é majoritária no atual Senado francês, com 168 de suas 348 cadeiras contra 132 da direita e 41 do centro - mais 7 cadeiras de independentes. No mais, ainda que a composição da Assembleia Nacional (AN), na atual XIIIª legislatura, seja hostil à esquerda, é fato que a tendência aponta para a perda considerável das cadeiras por parte dos conservadores, com ou sem vitória de Sarkozy. 

Confirmando-se a derrota do atual presidente, é muitíssimo provável que a esquerda parlamentar se torne majoritária na AN em Junho deste ano, a despeito da boa votação da direita nas presidenciais, uma vez que são duas eleições com caráter bastante diferente (o próprio comparecimento nas urnas, em eleições parlamentares, é bem menor do que nas presidenciais, além de ser influenciado por elas, por isso Sarkozy gozou de um apoio na AN proporcionalmente maior do que os votos que ele recebeu para Presidente).

Essas eleições exprimem, como todas as mais recentes na Europa, uma insatisfação generalizada, uma angústia total que resulta desde uma linha de fuga nomádica, como se vê com as acampadas por toda a Europa, até o seu inverso, com o crescimento de movimentos nazi-fascistas - e essa polarização fica clara com o tamanho da votação somada da extrema-direita e da extrema-esquerda na França, de quase um terço dos votos válidos. 

Na prática, esse processo tem levado a trocas de governos de centro-direita por governos de centro-esquerda - ou o contrário, conforme a situação -, embora no caso islandês a volta da social-democracia ao poder depois de 30 anos tenha se verificado pelo aprofundamento de sua agenda e, no caso húngaro, tenha radicalizado a direita parlamentar para o canto extremo.

A conjuntura europeia atual, sem dúvida, encontra maiores semelhanças com os anos 30 do que com 68, embora o devir-68 presente no modo como os movimentos sociais resistiram talvez esteja fazendo a diferença porque, até agora, em larga escala, o único caso verdadeiramente preocupante é mesmo a Hungria. No que toca à 68, não resta dúvida que a França foi seu centro de irradiação para todo o mundo - e talvez a última vez que o tenha realmente sido -, mas ali, as mobilizações multitudinárias não conseguiram nem construir uma alternativa ao sistema representativo, nem produzir uma alternativa por dentro dele de forma imediata. 

1968 serviu para atestar o quanto o Partido Comunista Francês era obsoleto no campo canhestro e jogar, nos anos que se seguiram, o país um pouco para a esquerda - o que, na prática, resultou na reorganização das forças social-democratas do país em torno da figura do atual Partido Socialista, cujos frutos foram verificados, sobretudo, a partir de 1974, sob a liderança de Mitterrand - que só venceu em 1981 pelo impacto de médio prazo de 68 sobre a cultura e o modo de vida franceses, potencial que, no entanto, ele não foi, nem poderia, ser capaz de extrair no grau necessário.

No atual cenário, os socialistas franceses foram capazes, à sua maneira, de compreender e absorver mais rápido as demandas do atual ciclo do que no final dos anos 60 e, atentem para isso, sem cometer os mesmos erros dos gabinetes da Frente Popular nos anos 30, que terminaram por se isolar frente à sociedade francesa - o que colaborou para o avanço do fascismo no país. Naturalmente, Hollande não é Mitterrand, cuja figura só pode ser comparada a De Gaulle na política francesa do século 20º, mas ele sabe disso e não pretende sê-lo - ao contrário de Lionel Jospin, cuja liderança entre os anos 90 e os anos 00 resultou no maior ciclo de trapalhadas da história do atual PS.

A questão que se põe, entretanto, é a problemática que restou em aberto no final dos anos Mitterrand, isto é, qual o potencial que a social-democracia ainda tem como ente transformador para melhor da vida - agora, agravada pela complexidade trazida pela emergência dos novos sujeitos políticos como a multidão e o precariado. Como bem observa Antonio Negri, o próprio Mélenchon - cujo papel nessa eleição, a meu ver, foi central para uma reforma programática no campo comunista e filo-comunista da esquerda francesa -, ainda assim não deixou de exprimir essa mesmíssima limitação.
   
Se a atuação da esquerda, na França ou aqui mesmo, depende cada vez mais de uma movimentação nem institucional, nem não-institucional, mas sim transversal e em rede - coisa que a direita, ao seu modo, já aprendeu há décadas -, a provável vitória de Hollande precisa ser vista com necessário desapego: ela será sim uma vitória da esquerda apesar de suas limitações - e não precisa ser comemorada efusivamente, tampouco desprezada, uma vez que se ela não se constitui em uma grande saída por si só, ao menos produz linhas de fuga cruciais neste momento em que a Europa, sete décadas após o auge do fazer morrer na forma do nazi-fascismo, assiste ao ápice do deixar morrer na forma das políticas de austeridade conduzidas por Merkel.


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Sobre Quotas e o STF

Plenário do STF durante o julgamento
A notícia do momento trata do fato de que o STF decidiu, por unanimidade, que as quotas raciais são constitucionais ao julgar ação movida pelo Democratas contra o referido mecanismo de inclusão  -  o que, provavelmente, já deve ser a quinta  morte do referido partido, se contarmos a queda de José Roberto Arruda do governo do Distrito Federal, a hecatombe eleitoral sofrida nas eleições de 2010, o racha que deu origem ao PSD e a implosão de Demóstenes Torres no escândalo Cachoeira.

A um primeiro olhar, aquilo que se constitui em uma derrota do DEM, somado a uma simultânea vitória do movimento negro, só pode se tratar de uma boa nova, mas, para variar, o buraco é mais embaixo. Vemos aqui, o velho problema do agigantamento gradual do STF como espaço de captura do debate político.

Para muito além do aumento da importância daquele tribunal em virtude da Emenda nº 45 de 2004, existe uma tendência à neutralização, até mesmo, das arenas de mediação política do próprio Estado para a redução da luta ao meramente judicial - a retirada dos embates do campo da disposição, ainda que mediada, para a sua reinscrição na linguagem da dívida infinita. 

O governo não compra brigas, não entra em polêmicas, apenas defende certas posições via AGU - junto com sua capacidade ímpar de fazer lobby junto aos ministros - e resolve as questões por meio máquina transcendente do STF. A oposição não confronta diretamente nada, mas apela para a transcendência da lei: uma confrontação que, no campo da política, jamais seria inciada pela inevitável pecha de racismo, acaba mascarada pelo aparato legal.

O que parece uma astúcia interesantíssima do atual governo, dadas as suas posições razoáveis no campo social e dos direitos civis, é, na verdade, uma redução que se envereda por um caminho perigoso: as decisões do STF variam entre o óbvio e o descalabro, mas elas estão disfarçadas pela névoa neutra da lei  (isto é, o pendulo que varia entre o poder de veto dos sábios até a benevolência da outorga). 

A Constituição, enunciada como uma divindade pelos ministros-oráculos, poderia dizer que os negros continuariam apartados da Universidade, mas também poderia, como o fez, tomar a voz dos excluídos e fazer uma luta ganha pelos próprios quotistas - que desmistificaram toda sorte de argumentos contra si nos últimos anos - passar a ser sua: o STF ratificou as quotas e só isso importa.

Na prática, a verdade histórica produzida pelos quotistas negros e pelos quotistas do Prouni, enquadrados por critério social - em que pese a consideração étnica em enquadramento subsidiário - é que eles próprios constituiram a desmistificação da névoa ideológica usada contra si e por isso forçaram o sistema, por meio dessa ratificação, a absorver-lhes na tentativa de lhes capturar pela impossibilidade de uma exclusão estanque determinada pela sua própria resistência.


Essa absorção é estratégia de sobrevivência da Ordem, mas gera um risco dentro de si,ao seu funcionamento interno, com o qual ela será obrigada a conviver de agora em diante. No mais, ainda resta o bônus que o presente processo ajudou a levar consigo o que há de mais ofensivo em termos de partido grande brasileiro.


domingo, 22 de abril de 2012

Conexão Brasil-França: Notas sobre um Mundo que se Encontra

Sarkozy e Dilma na ONU - Ricardo Stuckert
Neste dia chuvoso de Abril, duas notícias sobre a grande cena política chegam até nós: a primeira trata do fato de que Dilma Rousseff bateu novamente o recorde de aprovação presidencial no Brasil, a outra  fala que François Hollande está registrando uma vitória mais apertada no Primeiro Turno das eleições presidenciais francesas e, a julgar pela boa votação de Marine Le Pen, ele terá uma certa dificuldade em um Segundo Turno para o qual, entretanto, ainda é favorito.

Dilma é um fenômeno assentado na popularidade herdada por Lula, pelo momento relativamente bom que vive o país e por não representar, pessoalmente, a ameaça que seu antecessor se afigurava junto à classe média tradicional do sul-sudeste. Ainda, Dilma vive uma situação curiosa: ela alterou, sem muita cerimônia, alguns vetores importantes do modo de fazer política do governo Lula como, por exemplo, a relação com a grande mídia - que antes era de confronto, agora é de aliança como Palocci defendia - e com os movimentos sociais e ativistas em geral - que foram colocados na berlinda. 

Com isso, Dilma agrada quem simpatiza com o PSDB e mesmo quem votou em Serra, enquanto, pela falta de uma oposição consistente à esquerda, ela não tem perdido essa fatia do eleitorado - que é precisamente a mais fiel ao PT em termos históricos, mas que não está tão satisfeita assim e ainda é saudosa de Lula. Dilma agrada tucanos e desagrada petistas porque acha que já tem os segundos e precisa pregar para não-convertidos, além de, também, suas convicções pessoais - que passam por um asceticismo gerencialista.

Também não é de se ignorar a má relação de Dilma com os intelectuais: se FHC, intelectual de cátedra, só agradava sua patota - não era de se estranhar, dificilmente um intelectual no poder faria o contrário - Lula, político nato e não-intelectual, ouvia a todos, os fazia sentir ouvidos e fagocitava-lhes o que lhe interessa e só não teve relações com os intelectuais que o rejeitavam. Dilma é diferente porque não é intelectual e tampouco é política nata, não está disposta a afagar o ego de ninguém e confunde ouvir os outros com indulgência: manda de forma centralizada e deixa isso claro. 

Os intelectuais estão em choque: qual o seu papel diante de um governo muito popular e que não os ouve? O governo Dilma torna-se, assim, um fenômeno tão preocupante quanto exótico nascido no meio da disputa que mobilizou o Brasil nas últimas duas décadas. Ironicamente, o desintelectualismo falsamente atribuído a Lula pela pequena burguesia encontra, na verdade, sua forma acabada em Dilma e junto disso recebe aplausos das camadas médias.

Na distante terra francesa, o pêndulo move-se em direção contrária: em um país, ao contrário do que o imaginário esquerdista brasileiro supõe, tendente à direita, o governo altamente desmoralizado de Sarkozy ruma para a perda de uma reeleição que poderia ser tranquila, embora boas doses de xenofobia ou mesmo do tradicional conservadorismo brando francês lhe garantam o Segundo Turno. Hollande, seu opositor e possível vencedor do Primeiro Turno, é morno, mas ousou mais do que os socialistas ousaram desde o primeiro Mitterrand e a coalizão com os comunistas. 

As estrelas dessa eleição francesa, no entanto, não são nem Sarkô, nem Hollande: são Marine Le Pen, candidata da extrema-direita francesa e sucessora política de seu pai, Jean Marie, e o esquerdista Melénchon que com sua Frente de Esquerda tentou recuperar o espírito da velha Frente Popular. Juntos, eles somaram quase um terço dos votos, enquanto os dois primeiros colocados sequer chegaram, com sua votação somada, a metade dos eleitores. 

Marine, no entanto, ilustra também um voto difuso de insatisfação com a União Europeia, justamente por isso, uma parte de sua votação - estimada em 25% - migrará para Hollande, enquanto o mesmo não pode se dizer dos eleitores de Melénchon que majoritariamente devem votar em Hollande, ainda mais com seu candidato declarando apoio incondicional e sem contrapartidas a uma cruzada anti-Sarkozy.

Já o centrista François Bayrou tende a ser o fiel da balança, mas seus votos devem se repartir quase que perfeitamente entre os dois candidatos e a abstenção, o que dá, no fim das contas, vantagem moderada - e, para falar a verdade, pouco segura - para Hollande. Em termos práticos, um governo Hollande abalaria os alicerces do atual consenso europeu justamente porque seria um governo tradicional de centro-esquerda francês - e por tradicional entenda-se nacionalista e pouco disposto ao alinhamento automático com os EUA e, por tabela, com o governo Merkel em Berlim que lhe serve de tarefeira. 

Basicamente, uma vitória da centro-esquerda francesa, que pouco tem a ver com a experiência petista e mais com com a experiência tucana - que, no entanto, se endireitou -, favorece ao Brasil e aos países pobres apesar do eventual protecionismo: hoje, a maior ameaça é, sem dúvida, os efeitos dessa governança tecnocrática voltada para o mercado financeiro, em relação ao qual Sarkozy é a pedra de toque, por mais que o protagonismo aparente caiba à Alemanha - e isso é suficiente para que, no íntimo, Brasília prefira um socialista em Paris ao atual mandatário, com quem tanto Lula quanto Dilma nutrem boas relações.

Seria uma vitória para a diplomacia de Dilma, que já se pegou às turras com Merkel: mas a pendenga aí teve menos a ver com o jeito de fazer política e tanto mais com a direção do projeto. E Hollande, ainda que acene para uma direção de oxigenação da política, não pertence a um partido historicamente disposto a isso - coisa que Melénchon pareceu ser, depois de décadas de paralisia mental da esquerda francesa, presa entre o estupor filo-stalinista do PCF e o tecnocratismo pequeno-burguês do PS, coisa que só Mitterrand furou levemente.

Enquanto o mercadismo implode, o Plano, repaginado, volta à ordem do dia como possível novo paradigma do Programa. É o que está em jogo por aqui.


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Sobre Escassez e Superabundância no Brasil

Os Retirantes -- Portinari
Talvez o melhor livro de Giorgio Agamben seja o Reino e a Glória. Para além de todas as críticas que se possa fazer ao autor, à luz da filosofia da imanência, é preciso reconhecer sua competente pesquisa sobre como o conceito de economia foi moldado durante a Idade Média pela Teologia - e como os modernos são tributários disso, quando o aplicam para explicar (e ordenar, por tabela) as relações de produção entre os homens. 

Há uma questão fundamental que é, precisamente, o fato de que Deus quer que todos se salvem, mas mesmo assim nem todos se salvarão. De um lado, há a superabundância de bondade divina, do outro, a escassez da salvação. É um contraste que permeia o pensamento medieval, mas só irá encontrar sua concretização, ironicamente, no Moderno, com a estruturação da máquina estatal e a instauração do capitalismo.

Vivemos em um sistema econômico no qual as nossas necessidades são inventadas - ou até mais que isso, as próprias subjetividades são inventadas para que, a partir daí, padrões de consumo sejam construídos - e existe, portanto, uma superabundância de produtos - às custas da sociedade e da natureza - e, ao mesmo tempo, uma escassez de acesso a eles, pela problemática da não realização do valor: os trabalhadores gastam o que ganham, enquanto os capitalistas ganham o que gastam (e, por isso, não gastam tudo) como nos lembra Kalecki.

O sistema capitalista impulsiona para que todos enriqueceram, mas nem todos se enriqueceram, pois a riqueza é condição relativa à existência de pobreza. A aparente mobilidade capitalista - em comparação ao imobilismo estamental - cai por terra, pois a condição de existência do capitalismo é a mesma da mitologia cristã medieval: nem todos se salvarão, pois a salvação tem por condição lógica a não-salvação de outros tantos, uma vez que ela é relativa à necessária existência de uma danação. 

Há uma dificuldade quase crônica nas fileiras esquerdistas em compreender isso. Quando falamos no avanço do consumo dos mais pobres no governo Lula- e os problemas da esquerda em ver isso como algo positivo -, na questão industrial brasileira - enquanto partes expressiva da esquerda alardeiam que estamos cercados pelo fantasma da desindustrialização -  ou quando nos deparamos com a face medieval sob a máscara übermoderna dos veganos - como nos demonstrou, em um post irretocável de Lucas Portela - vemos isso.

Há um trecho de Lucas que merece um destaque especial:

"(...)que fome não é estarvação, porque há fome específica; que fome dá lucro, porque é gerando escassez que se especula sobre a superabundância alimentar. Portanto, caro vegan, se os pobres comessem mais carne poderíamos paradoxalmente produzir menos boi – desde que a ampliação do consumo adviesse da melhor distribuição, do impedimento canino pelo Estado de que o Capital especule com os víveres e comodities alimentares"

É exatamente essa bola que eu levantei quando tratava do avanço do consumo dos mais pobres no governo Lula: ainda que haja um sem-número de armadilhas - a capitulação ao desenvolvimentismo puro, p.ex. -, é fato que o aumento de consumo reordena para melhor a produção em suas múltiplas esferas e facetas. Inclusive porque um número de trabalhadores consumindo mais significa maior controle deles sobre a própria produção.

A questão chave, e certamente Dilma não o percebe, é que não é produzir mais, mas produzir melhor, o que seu governo faz colateralmente ao manter o estímulo ao mercado interno via consumo das famílias. Não é aumentar a superabundância, mas sim reduzi-la - e por tabela também a escassez - ao reorientar as relações de consumo. 

Ao fazer os produtores serem, gradualmente, senhores da própria produção, resolve-se a problemática central do capitalismo que é, precisamente, a dissonância entre uma coisa e outra. A partir daí, os padrões da produção passam a poder ser pensados em termos de sustentabilidade: a demanda concreta passa a assumir o lugar da demanda imaginária que o capitalismo produz. Podemos produzir menos, finalmente, porque, afinal de contas, não precisamos de tudo isso.

A insistência nossa sobre a dicotomia entre uma demanda concreta e uma demanda imaginária, antes de ser marxista é spinozana - e é de Marx por ele ter lido Spinoza - e se opõe ao projeto do moderno, sobretudo cartesiano, que não irá admitir, no fundo, essa distinção, reduzindo o funcionamento produtivo, tal como pensado a partir de Smith, não à toa, a um conveniente jogo de espelhos [e de especulação]: a demanda é naturalizada e, ao acontecer isso, tudo é reduzido ao mesmo cesto comum de supostas necessidades.

O problema do atual governo termina por ser a dissonância entre a colateralidade de suas medidas, o resultado material de uma redistribuição funcional da renda em favor dos trabalhadores - e seu próprio acesso ao crédito - e a teleologia do Programa - moderno e keynesiano - que vê na  produção maior o mesmo que produção melhor - como se o problema não fosse produzirmos em demasia porque o fazemos mal (e vice-versa), pois consumimos pouco, questões que o Keynesianismo jamais foi capaz de dar conta pelos motivos óbvios de seus propósitos.

Mas se a resposta para o desemprego não é o pleno emprego, também não quer dizer que o desemprego - supostamente estável e administrável - seja bom - e o mesmo se aplica entre a lógica de crescimento e estagnacionismo. A produção não precisa crescer, estagnar ou decrescer, ela precisa se ajustar à vida pondo-se em função dela - o que significa fazer um giro copernicano em relação ao que prevalece agora.

A partir daí, é preciso não apenas criticar o desenvolvimentismo dilmista, mas fazer, também, a crítica da crítica ao desenvolvimentismo, uma vez que ela tem se fiado nos seus mesmos paradigmas - quando não, dentro da sua lógica mesma, como quando vemos Marina ou Plínio, a exemplo de Serra, denunciando a desindustrialização. Uma produção melhor não é mais, nem menos, é apenas a melhor mesmo. Simples assim.

domingo, 15 de abril de 2012

Réquiem para o Revolucionário

Robespierre vai ao cadafalso


O réquiem do revolucionário se aproxima,
cabeça ainda erguida por pescoço de véspera degolado,
é árido e frio o clima
e ainda há quem lhe pergunte qual o seu lado.


Na mente, lembranças, rancores, tremores
de andanças, amores, temores
danças, cores, odores
lanças, dores e clamores.


Sabe bem que não se vive pela morte
mas se morre pela vida
e só haveria culpa numa jornada torpe
na qual se caminhasse pela dívida


Caminha o revolucionário
passo a passo para a guilhotina,
eis aí o seu irônico calvário:
uma vida que se lamina


Sua morte, concreta ou simbólica
pouco importa,
seja na manhã mais clara ou numa tarde bucólica,
não é nada perto da vida que ora se corta


Se morrem jovens aqueles que os deuses amam
- por lhes querer ao seu lado -
o mesmo se diz daqueles pelos quais eles clamam
- aqueles que veem o criado como um dado -


Resta-lhe apenas a reminiscência daquele sorriso eterno
branco como a cor de marfim daquela pele
e cândido como o afeto que lhe tem sincero e terno
daquela moça que se distingue na plebe. 


Vai-se o revolucionário para o cadafalso,
orgulhoso como um alvo,
mas pouco importa a sentença de seu carrasco:
ele sabe que já está salvo...


A Crise na Indústria

A cena clássica de Tempos Modernos
Um tema recorrente, levantado como objeção frequente ao projeto petista, é a dita crise na indústria brasileira, o fantasma da "desindustrialização" levantado de Serra a Plínio na última campanha eleitoral e, agora, reverberada em recente artigo de Marina Silva para a Folha. Há muitas lendas sobre a questão e pouca profundidade nessas análises, até pelas necessidades imediatistas da política partidária e da mídia - o que, a bem da verdade, não diferem mais tanto assim.

Em um primeiro momento,  a questão industrial brasileira não é um problema exclusivamente macroeconômico e atual, mas parte relevante da nossa problemática histórica. Vejamos, o Brasil se industrializa tarde demais, depois dos esforços homéricos de Mauá contra toda uma legião de obscurantistas, uma República Velha inteira privilegiando os interesses de cafeicultores em detrimento de todos os demais setores e, só nos anos 30, há algum oxigênio.

A radicalização do processo de industrialização em Vargas é a combinação de várias coisas: a doutrina de gestão estatal direta e total somada, ao sabor da época, à construção de um mercado interno para substituir um mundo que ruía por conta da crise de 29. É também o início do casamento entre o capitão-da-indústria do Sul Maravilha com o Coronel do Norte, o segundo enviando mão-de-obra barata para se aliviar da pressão por reforma agrária, o segundo abrindo os braços.

O desenvolvimento no pós-guerra encontra algumas chaves, a primeira é a entrada forçada do capital internacional depois da morte de Vargas - em um processo conexo -, o modelo carrocêntrico de JK - que é fator determinante para o escoamento da produção e, ao mesmo tempo, para determinar a própria dinâmica de produção - e, como fecho, a organização corporativista encabeçada pela Ditadura em articulação com a FIESP, a modernização do sistema financeiro com a instituição do BACEN entre outras coisas.

O tripé capital estatal/capital nacional/capital estrangeiro, a política de Estado nacional-desenvolvimentista e tudo mais fale em um determinado momento: para além dos boicotes estrangeiros para o desenvolvimento de uma indústria de ponta no Brasil, o fato é que aquilo que sai de todo esse processo é um indústria ineficiente, dependente da tutela estatal - e do constante financiamento - pouco competitiva.

O dilema dos anos 90 para cá é o que fazer com a indústria. Collor e FHC preferiram abrir a economia, dar um choque de mercado fazendo-as competir com a indústria internacional - muito mais eficiente e, ainda, gozando de condições macroeconômicas mais vantajosas - para produzir uma seleção natural. O impacto geral foi a modernização do grande capital industrial, em geral o multi ou transnacional, o colapso da pequena indústria, uma maré de desemprego que pôs em xeque o mercado interno já atrofiado. Controle de preços a um custo alto.

A eleição de Lula em 2002 é retrato da insatisfação desses setores - representados, aliás, pelo então vice-presidente José Alencar. E é o nascimento do social-desenvolvimentismo lulista que ganha sua face mais hardcore, agora, com Dilma: a volta do Estado ao planejamento, ainda que longe de uma participação direta. Se o primeiro momento é de uma alavancagem, o segundo, com a manutenção do Real propositalmente valorizado, é da perda da importância relativa da indústria.


O fato é que existe de um lado uma demanda não só por mais e melhores produtos como, também, por preços equilibrados no mercado interno - o que nem sempre a indústria nacional deu conta, diga-se. Por outro lado, é necessário manter empregos e renda, não é possível desmobilizar a indústria nacional ou a expor como feito nos anos 90, de Collor a FHC.


O governo petista conseguiu um equilíbrio grande nisso, ainda que surjam n problemas. Foi beneficiado, inclusive, pelo boom do setor de serviços - o que é uma tendência real e presente da economia capitalista - e da agricultura - em termos não muito satisfatórios em termos da organização do trabalho nas zonas agrícolas, mas que representou equilíbrio dos preços de produtos alimentícios e, ainda, gerou saldo positivo na balança comercial.


A indústria, nesse sentido, perdeu espaço relativo de forma indolor porque os preços estão estáveis e o desemprego está baixo. O maior problema dela é, hoje, sua ineficiência em gasto de energia e toda problemática que envolve o modelo de transporte da produção - que  importa em produção de transporte também. 


Não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, diga-se de passagem, essa tendência - com a indústria chinesa recepcionando fábricas de todas as bandeiras e marcas - é global. A corda da superprodução - cuja origem é a criação de demandas socialmente inúteis - em escala global, é claro, passa pelo esgotamento ambiental e social, principalmente por parte da indústria.


Uma problemática posta nos termos de "recuperemos a indústria nacional" é balela. É preciso reinventar a indústria no Brasil, não aumentar a importância relativa de sua (super)produção em relação à (super)produção geral da nação. Se os planos de recuperação da indústria do governo atual parecem farsescos - e em certa medida demagógicos - sua macroeconomia tem sido sábia, embora falte muito para se conseguir praticar a reinvenção industrial que precisamos. No entanto, uma oposição que discursa - pela falta de discurso - sobre "desindustrialização" está, na verdade, sem discurso.  


P.S.: este post marca a saída do blog do breve sabático dos últimos dias, causado tanto por falta de tempo quanto por falta de inspiração.




domingo, 8 de abril de 2012

Venta

Lucifer - Zichy
Vento frio em minh'alma, 
eu me protejo com as asas de anjo caído, 
mas nem por isso minha dor acalma, 
nem se apaga o tempo ido.


Pai não me perdoai, eu desejei cair
tombar antes do dia do juízo
ficar longe de ti
e tão perto do martírio


Tempo vivo que me envolve
como mar de lágrimas
nada se resolve
nas torrentes cálidas


Uma lembrança, um beijo
um suspiro
da vida um lampejo
achado quando terminei perdido


Se já que quem  canta é a cotovia
vou-me em tempo 
pois não é a noite que ela anuncia
é hora de sumir como o vento...





sexta-feira, 6 de abril de 2012

Dilma 77 e o Outono Frio

Folhas de Outono - Millais
77% de aprovação, esse é o número - recorde, por sinal - de Dilma Rousseff depois de 15 meses de governo. Ainda longe da aprovação deixada pelo seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, mas à frente dele no mesmo período de governo, Dilma governa de um modo próprio e alheio à tradição petista, como já enfatizamos: busca distender relações com a mídia de massa, deixando de lado a relação com ativistas (alguns históricos aliados do Partido dos Trabalhadores), além de articular com toda sorte de setores, alguns dos quais antagônicos à esquerda. O clima político de normalidade absoluta - e normalização suprema - cria um clima político de outono frio.

Se, por um lado, militantes - ambientalistas, midialivristas ou pró liberdades civis - se encontram na berlinda, a direita parlamentar compõe o governo desde que aceite suas regras - mas não há mais espaço para antagonismos capitais. A (justa) pressão sobre Demóstenes Torres, senador demista e estandarte da oposição desde o primeiro governo Lula, é uma mostra disso: para além das pantomimas que o governo pode ensaiar no parlamento, em nome do consenso, na prática, não há mais espaço para destoar tanto.

E a queda de Demóstenes leva por tabela todo o DEM junto - o mais ressentido e conservador partido anti-lulista, rachado ainda pela manobra do prefeito paulistano Gilberto Kassab que calhou no PSD, fisiológico por natureza. E pelo meio é que se estrutura a governança do Novo Brasil, no qual velhos caciques precisam virar cristãos novos para sobreviver. E Demóstenes é figura para lá de marcada, inclusive pela forma como sua relação com o inefável Carlinhos Cachoeira tem ligação com os ataques iniciais (e pesados) ao governo Lula

Nesse ínterim, a oposição está paralisada. Seja ela à esquerda - seja a velha extrema-esquerda  - ou à direita  - o bloco oposicionista além de reduzido nas últimas eleições, está debandando e o que resta está sob ataque e dividido. Dilma tem uma popularidade alta porque seu governo, embora não venha alcançando altas taxas de crescimento, leva a cabo, por inércia, a política de distribuição de renda e ampliação do mercado interno deixada pelo seu antecessor, o que deixa no ar a sensação térmica de empenho na justiça social. Sua origem de classe e sua postura, por sua vez, abranda maiores oposicionismos vindos da classe média.

Não resta dúvida que o campo aberto deixado ao fim do governo Lula lhe dava possibilidades maiores, mas o caminho escolhido é o fogo brando do cordialismo, a moderação sóbria e o inercialismo frente ao legado que herdou - que ela repete dando fôlego ao seu aspecto social-desenvolvimentista. Não existe uma força política com uma agenda sólida, e disposição para fazer incursões na massa, capaz, neste momento, de lhe fazer frente. A postura da esquerda libertária, ainda que tenha em mente como horizonte de atuação a produção de subjetividade, o devir-multidão e a atuação transversal, não consegue pôr isso em prática, seja pela falta de densidade no seu próprio campo ou por suas dificuldades estratégicas. 

Embora as eleições municipais não sejam determinantes no plano federal - o PT ganhou a Presidência da República em 2002 com pouquíssima prefeituras -, um mau resultado da oposição pode fazer toda a diferença para sua sobrevivência - mas se há uma disputa realmente pungente é a de São Paulo, na qual José Serra enfrenta o ex-ministro da educação Fernando Haddad, enquanto o agora governista Gabriel Chalita também tem uma candidatura competitiva (em outras palavras, é o que resta da oposição contra o PT e também contra o governismo não-petista).

No mais, em uma das melhores sacadas da blogosfera este ano, o Sensho fez uma belíssima observação do que a esquerda deveria aprender com os evangélicos: sim, baixemos a bola da nossa petulância, a esquerda que tanto fala em plebe, reclama das desditas da história e fala em becos-sem-saída esquece o fenômeno espantoso de crescimento da religião evangélica pelo país nos últimos anos; será que é tão impossível assim chegar às massas e trabalhar junto com elas? Por que há tantas igrejas evangélicas e tão pouca esquerda pelas periferias?  É essa a condição necessária seja para uma mudança de rumos do governo Dilma ou para estabelecimento de uma alternativa para ela no médio prazo.



domingo, 1 de abril de 2012

Primeiro de Abril

É o Dia de Mentira e, também, aniversário do Golpe de 64 no Brasil - não à toa, considerado ontem pelos apoiadores, mais ou menos declarados, daquele episódio, afinal, a ironia seria tremenda. 1964 significou várias coisas para o Brasil, dentre elas o fracasso do modo de luta social promovida e liderada pelo Partidão no pós-guerra, o naufrágio do Trabalhismo - ou o que restou do positivismo varguista no pós-guerra, desvencilhado de sua faceta fascista e aproximado de seu lado social - e a maior vitória de pirro da história da nossa direita.

Dizer que o Brasil estava bem antes de 64 é tão ingênuo - ou, quem sabe, desonesto - quanto dizer que os golpistas tinham razão: aconteceu o que aconteceu tão somente porque estávamos exauridos e, para fechar o caixão, fomos arrebentados pelas ondas da Guerra Fria. Goulart não foi ingênuo, lutou até o último momento, mas padeceu de uma torpeza que, em matéria de política, não perdoa até os melhores: quando se enfrenta forças totalitárias, seja elas quais forem, o cenário com que se deve trabalhar é sempre o pior.

É ingênuo supor que 64 foi causado pela ação de todos os entes maléficos do nosso país juntos; como toda ditadura, sua sustentação se deu por causa tanto mais de um certa convicção honesta do sujeito comum e, também, de setores organizados não necessariamente perversos na ação:  sem a ala liberal do exército (a turma da Sorbonne), anti-bolshevista (com lá suas razões) e não fascista, não haveria golpe tanto que, ela mesma, tomou um golpe mais adiante com o AI-5. 

Hoje, quando falamos da Ditadura, certamente não interessa qualquer rancor sobre o que passou, o que foi-se, mas sim uma discussão sobre aquilo que subsiste daquele período aqui-agora. Enfrentar Médici, hoje, é enfrentar um moinho de vento, enfrentar seu legado - e as assinaturas daquele período na nossa vida política - é o que interessa. Daí, o que interessa é a Memória histórica: punir torturadores, por mais lícito que seja, é apenas referendar os métodos deles com a ilusão de que podem ser usados para "o bem", trazer à tona o que aconteceu é outra coisa.

A Ditadura, inclusive, não teve o mérito de iniciar ou sistematizar a tortura no nosso país, mas sim, na sua debilidade, de universaliza-la e, assim, ao torna-la sombra permanente nos salões da boa gente, fazer com que os procedimentos de esmagamento dos mais pobres pudessem ser considerados em toda sua gravidade a partir daí. A verdade que precisamos extrair de hoje é o resultado da própria luta substancializada, a narrativa mais metódica e leal da perspectiva que parte daqueles que estão na pior posição possível - não dos que opressores, dos bem acomodados, tampouco daqueles que assumem a voz do outro sem assumirem sua posição.

Os 21 anos da Ditadura não foram um mal necessário ou a tomada do país por um mal sobrenatural, mas a expressão das nossas disfuncionalidades e da nossa miséria enquanto grupo. Isso foi, é e não precisa ser mais assim. Precisamos parar com eufemismos ou mesmo bravatas de confrontação vazios.

*dei uma mexida para arredondar o texto do post.