Texto meu publicado para o dossiê da Uninomade sobre o Golpe de 1964.
Primeiro de Abril de 2014: Cinquenta anos de Golpe Militar e tanto a pensar. Existem dois discursos predominantes, e antagônicos, sobre a ditadura cujo marco inicial (um golpe!) ora completa o cinquentenário: (1) a ditadura acabou e, em seu lugar, sobreveio um ciclo democrático absoluto que, apesar dos seus defeitos, conseguiu colocar um termo no nosso histórico de autoritarismo -- e tudo o que não é democrático ou é herança não resolvida da ditadura ou, possivelmente, algum tipo erro; (2) a ditadura jamais terminou realmente, portanto, vivemos, na verdade, uma farsa democrática, um estado de exceção sofisticado em plena operação.
É natural que a elite política brasileira -- incluso aí os três últimos presidentes da república --, a qual ascendeu na luta contra a ditadura, tenha uma visão edulcorada sobre o processo de redemocratização. Do outro lado, muitos intelectuais de esquerda creem que o sistema incorporou esse entulho autoritário à sua essência (ou já o trouxe incorporado) e/ou que os supostos acidentes e erros seriam uma constância caracterizadora do regime atual -- a normalidade de exceção, exposta na ainda persistência de uma polícia militarizada e integrada à estrutura das Forças Armadas, a existência de uma Justiça Militar com jurisdição sobre civis em época de paz, a política desenvolvimentista implacável contra as minorias, a força de inúmeros políticos ligados à ditadura etc.
Poderíamos citar também a extrema-direita saudosa do regime militar, a qual vê no sistema atual apenas corrupção e degradação. Seria um “exagero” ou um “excesso” democrático. Mas, a rigor, isso é apenas uma forma de ver e praticar a primeira leitura -- isto é, o reconhecimento da existência de uma democracia plena, só que do ponto de vista de quem a odeia. A importância dessa peculiar forma de ver as coisas, na verdade, só tem importância para desconstruir o segundo discurso: por que justo os defensores da ditadura não veem continuidade alguma entre o regime militar e esta democracia, a ponto de fazerem marchas, escreverem blogs, atacarem os direitos humanos? Se justo eles reivindicam a volta da ditadura é porque há controvérsias quanto a continuidade linear de ambos os regimes.
É claro que isso poderia ser questionado: de repente, os setores golpistas e pró-ditadura preferem, hoje, a estratégia de estar nos bastidores de uma democracia de enfeite, ao contrário de uma extrema-direita alucinada. O ardil seria dissular dentro da ordem atual e corroê-la por dentro. Há problemas, pois, de todo modo, se dispositivos de dominação originários da ditadura ainda existem, e operam, nem por isso eles operam da mesma forma -- tampouco esses democratas de ocasião não são obrigados a aceitar uma série de políticas que, olhando bem, eram impossíveis na ditadura e eles próprios não concordam.
Tanto o discurso da desconexão absoluta quanto o da continuidade razoavelmente linear da ditadura e da democracia são, pois, meras expressões da interesses subjetivos no mundo da política e da academia. Eles são menos até do que “ideologia”. E não é questão de afirmar um objetivismo qualquer, mas há uma diferença entre um discurso com rigor conceitual e wishful thinking. Em outras palavras, seria mais próximo da verdade falar em um grande pontilhado entre uma coisa e outra, com a localização dos dois processos dentro de um mesmo plano: se os cortes históricos têm clara relação, vejamos nós, com mudanças de forma de entender o tempo, talvez o único corte desse gênero seja muito anterior ao golpe de 1964, lá atrás, com a proclamação da República.
O tempo republicano era o da pressa e do sobressalto. Ao contrário do tempo da colônia e do império, uma paradoxal encontro entre uma monarquia europeia pré-industrial e a temporalidade dos índios e dos negros, agora a ordem era a insana marcha para o futuro. Não à toa, do início da República até os dias atuais, a ideia de que o Brasil deveria se converter numa civilização “desenvolvida” o mais rápido possível -- e a qualquer custo -- resultou em períodos autoritários voltados a “desentravar” o programa assumido naquele instante: a bem da verdade, já na esteira do golpe de 1989, tivemos a república da espada -- de uma sanguinolência pouco lembrada --, a ditadura Vargas e, depois a ditadura militar. No meio disso, períodos de regularidade institucional, a república velha, a primeira democracia e a atual democracia, nas quais o grau de abertura do regime variou conforme o êxito da luta política.
Sim, houve violência de Estado também no período de regularidade: durante a república velha, a primeira democracia e a atual, houve a mesmíssima marcha, com suas habituais vítimas, mas o modo de operação era oculto, à sombra da face pública e gloriosa da política, levada a banho-maria e, ainda, baseado em intervenções específicas e muito bem localizadas -- como, por exemplo, na guerra do Contestado (1912-1916). As ditaduras, sobretudo, a ditadura militar foram, pois, momentos extremos na qual as vilanias passam a ser realizadas pelo próprio senhor da casa, no máximo como segredo público -- ameaçando a todos de forma total.
A violência específica da ditadura militar residiu no fato de que, pela primeira vez, o movimento emancipatório conta com um fortíssimo devir-minoritário: até os segmentos da elite que se empenharam radicalmente na luta polítca estavam de tal forma enquanto minorias que, vejamos só, acabaram se tornando tão matáveis quanto os trabalhadores, negros, índios etc. Se a luta era comum, a repressão era total. Essa perspectiva de que não havia segurança no combate contra a ditadura, que ela estaria disposta a tudo, foi algo certamente inédito na nossa história, na qual mesmo nos piores momentos da ditadura Vargas ou do início da República, determinadas pessoas, feliz ou infelizmente, estariam a salvo.
Sim, qualquer Estado mantém, em latência, a possibilidade aplicar a exceção soberana e suspender garantias e direitos. Não é que ele deva, mas ele pode. Essa possibilidade de suspender o direito, no caso brasileiro, se dá pela dinâmica exploratória do “progresso” na forma como esta foi concebida no final do século 19º. Queremos um modelo de civilização impossível e nos tornamos uma caricatura tropical dos países europeus. Longe de maiores monarquismos, o fato é que, simbolicamente, o rei caiu, mas a nova ordem é uma monarquia sem rei: assim, as máscaras são a única face possível para um monstro sem cabeça, um monstro chamado República.
A relação entre ditadura militar e democracia não é imediata entre elas, mas entre as duas no sentido em que se situam no plano da tradição republicana brasileira. Sim, é possível que ocorra um novo golpe, mas a institucionalidade republicana pode muito bem, com os novos mecanismos de dominação biopolíticos, dispensa-lo. O controle territorial das favelas cariocas está sendo possível dessa forma: olhemos para o caso da presente ação dos fuzileiros navais, munidos de mandado de busca e apreensão coletivo expedido pela Justiça Militar, no Complexo da Maré, no Rio. Se essa tecnologia de poder falhar, por que não uma tecnocracia empresarial, judicial ou novamente militar? Tudo é possível.
No plano da lei, vivemos entre a exceção como regra e regra excedida. O problema do monstro, naturalmente, não é seu acefalismo, mas sim a insistência em ter uma cabeça novamente. E ela a encontra em toda parte, na política ainda semi-despótica ou no próprio capital. Na falta disso surgem as máscaras e a necessidade de deter o monopólio das mesmas.
Portanto, o tal Estado de Direito Democrático é, tanto mais, a resultante prática da Democracia contra o Estado. A democracia formal não quer dizer absolutamente nada. Muito, de fato, foi conquistado nos últimos anos, mas tudo isso se deu por fora e contra o Estado, no máximo, taticamente por dentro dele. Se o Estado é sempre uma máquina implacável, o republicanismo brasileiro só acirra isso.
Nada disso torna a análise de 1964 menos importante. Mesmo que estejamos falando de uma violência que excedeu a ditadura militar -- tanto no seu antes quanto no seu depois --, o golpe de 1º de Abril é o momento temporal e o local chave da luta brasileira no seu modo mais puro e evidente. Celebremos os nossos mártires partindo para o combate.
E se tivéssemos continuado como um Império, teria sido melhor?
ResponderExcluirsem dúvida! O Golpe de 1889 foi o primeiro de todos os golpes militares, uma farsa antecedendo a tragédia de 1964, uma tentativa de abortar o governo de uma mulher que tinha como meta a reforma agrária e a conclusão do processo abolicionista: a classe média moralista, a Igreja, os milicos e as oligarquias do centro-sul não toleravam a idéia.
ExcluirA esquerda brasileira precisa entender que defender os Bragança naquele momento era mais a esquerda do que defender uma república - e que nenhuma república é em si melhor do que uma monarquia constituicional: tá aí a Escandinávia que não me deixa mentir.