Ilustração retirada daqui |
"Antonio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhaes na primeira viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional escreveu crônica rigorosa que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relincho de cavalo. Contou que puseram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia e que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor de sua própria imagem. Este livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germes de nossos romances de hoje, está longe de ser o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles tempos. Os cronistas das Índias nos legaram outros, incontáveis (...)"
Gabriel García Márquez, A Solidão da América Latina, trecho inicial do discurso de agradecimento ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982.
Faleceu na última quinta-feira, 17 de Abril, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, o Gabo, estandarte do realismo fantástico latino-americano. Ele foi autor de obras magníficas como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera -- o último filmado há poucos anos --, mas sua contribuição foi, sobretudo, sua presença como seu mais intenso personagem; um e mordaz crítico da realidade latino-americana, ativista e combatente que amou sua gente como poucos e lutou com suas armas: a caneta e uma imaginação sem limites.
Gabo foi o quarto latino-americano a conquistar o Nobel de Literatura -- e hoje o número chega a apenas seis nomes dentre os mais de cem já premiados ao redor do mundo: a chilena Gabriela Mistral (1945), o guatematelco Miguel Ángel Asturias (1967) e o também chileno Pablo Neruda (1971) o antecederam; depois, só o mexicano Octávio Paz (1990) e o peruano Mario Vargas Llosa (2010) foram lembrados. Bobagem hierarquizar o conjunto de uma obra literária pela conquista, ou não, de um Nobel, mas também como não há como negar o peso e a chancela política que o prêmio concede aos seus vencedores, sobretudo quando premia, talvez por acidente, alguém do escopo de Gabo e ainda mais vindo destes confins exóticos da Terra.
Alguns dirão: foi amigo de Fidel e limitou sua enorme capacidade criativa em virtude de um, digamos, apoio ao autoritarismo "só que de esquerda". Mas Gabo não precisa de defesa quanto a isso: assumiu o lado que lhe cabia no seu contexto histórico e, venhamos e convenhamos, não foi o regime cubano o maior responsável por qualquer irresignação diante do analfabetismo nem pela miséria na América Latina, apesar de suas claríssimas limitações -- do mesmo modo que nenhum artista pode ser responsabilizado pelas contingências residuais de posições políticas, determinadas e pontuais, que venham a assumir. No entanto, provavelmente você não lerá por aí que Mario Vargas Llosa é cúmplice da morte de incontáveis pessoas largadas ao relento pelo neoliberalismo, o que mostra o óbvio: não há simetria possível entre as partes envolvidas nessa conversa.
No caso de um escritor que tinha o que dizer como Gabo, digamos que a importância da láurea foi de lhe dar voz para denunciar o mascaramento do conflito social latino-americana -- coisa que ele fez, magistralmente, já no seu discurso de agradecimento à premiação em Estocolmo, o fabuloso A Solidão na América Latina. É certo que Mistral, Asturias e Neruda já o tinham feito com singular habilidade, mas foi Márquez que apanhou a crítica à América Latina e a elevou além dos limites da realidade, mesmo da realidade poética.
Pode parecer uma contradição em termos que o idealizador de Macondo, e tanta coisa fantástica e mágica, também seja, ele mesmo, um dos maiores reivindicadores da verdade histórica de sua terra, mas não é: nada mais surreal e desafiador do que trazer à tona a história da América Latina aos olhos do mundo, pois Gabo sabia muito bem que o real é aquilo que está chancelado pelo, e como, discurso del Rey -- isto é, a verdade da luta e dos oprimidos será sempre realismo fantástico.
Uma América Latina cheia de gentes com cor, cheiro, sensualidade e afetuosidade, na qual "ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida" é o plano que Gabo registrou; um mundo de pequenas e profundas intensidades, fugazes chamas que apesar de tudo transbordam e se fazem vivas. A literatura de Gabriel García Márquez é a escrita do triunfo do elemento vivaz do comum e do plebeu em meio à guerra permanente de nossa América. Viveu virtuosamente e partiu idoso deixando tantos mundos a se criar a partir do nosso.
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