Assim Falou Zaratustra... |
Texto-plano da minha fala apresentada no colóquio Democracia, Poder Constituinte e Estado de Exceção do ciclo Korpobraz, feito em parceria entre a Casa de Rui Barbosa e a Uninomade na última quinta-feira, 14 de agosto, no Rio de Janeiro.
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No Brasil contemporâneo, a prisões arbitrária de diversos ativistas, as variadas perseguições a qualquer um que destoe da música oficial, a recriação de inúmeros aparatos de repressão dentre outros fatores fazem com que o fantasma do estado de exceção
retorne à ordem do dia. Esse fatos constituem um evento em sentido ontológico: não apenas o momento cronológico onde as coisas "aconteceram", na forma de um corte narrativo objetivo, mas o plano próprio no qual o permanente fluir das coisas -- com suas idas e vindas -- encontram alguma consistência. Assim, nós vemos a reunião de acontecimentos inéditos, repetições e, também, velhos fatos que permaneciam ignorados, invisíveis ou sem significado vindo à luz.
Enfim, temos coisas novas acontecendo e, junto disso, velhos componentes que aí permaneceram se tornando relevantes, fazendo sentido ou, até, sendo ressignificados. Os ativistas presos é uma novidade, mas isso, visto em junto com o funcionamento há muito questionável das polícias, ministério público e judiciário, ganha uma novíssima qualificação. Estaríamos, pois, diante de um fantasma que julgávamos esconjurado?
O "estado de exceção", esse fantasma enigmático, tem em torno de si uma névoa dada pela doxa do irmão maligno: a exceção, o momento da suspensão de direitos e garantias individuais vigentes, só poderia pertencer a um regime autoritário -- assim tornando impropriamente ou pelo fato que nunca o deixou de ser --, sendo o gêmeo maligno do estado de direito; enquanto sob o gêmeo mau vivemos sob permanente insegurança face às autoridades que deveriam nos defender, abaixo da luz do gêmeo bom há direitos, segurança e paz, salvo se ocorrer um acidente.
Diante dessa premissa, o evento em questão nos colocaria diante de três hipóteses recorrentes. Isso poderia ser um acidente pontual, em relação ao qual nossa democracia teria por obrigação remediar e corrigir. A outra hipótese remete ao fato que estamos testemunhando o retorno aos "tempos da ditadura", uma vez que esse acidente não foi pontual ou, então, foi grave demais, nos colocando na prática de volta sob a égide de um regime autoritário. Por fim, a noção de recorrência ou gravidade do acidente revelaria outra verdade histórica: que, talvez, jamais saímos do "período de exceção", que nossa democracia é uma farsa criada pela ditadura para se manter.
As três hipóteses, no entanto, são frágeis. Pois elas não nos permitem nenhuma problematização do interior do sistema. O chamado "estado de direito" só poderia ser perfeito, logo, qualquer problema verificado em seus mecanismos seria algo pontual ou aludiria ao retorno ou à evidência da persistência oculta da "ditadura" -- uma referência à ditadura militar de 1964-1985, aparentemente o único momento de repressão generalizada considerado "fora da curva" pelo imaginário histórico brasileiro, notadamente positivista.
Dentro dessa ilusão de ótica positivista no campo histórico temos, no que toca ao conceito de "Estado de Exceção", um debate ainda incipiente marcado pela análise do legado da ditadura militar ou, no campo da filosofia, pelo debate em torno do projeto homo sacer do filósofo italiano Giorgio Agamben, da problematização do tema na épica trilogia de Negri e Hardt e, mais remotamente, algum reminiscência dos debates realizados no entreguerras por Carl Schmitt, Hans Kelsen e Walter Benjamin.
Se "estado de exceção", como noção ontológica-política central, é algo que surgirá, não à toa, em torno do avanço nazi-fascista na Europa, sua retomada nos dias atuais se dá em cima de um trauma importante: a percepção de fracasso da utopia constitucional-liberal na esteira dos abusos da Era Bush Filho e, em seguida, com a sistemática suspensão de direitos fundamentais como prática regular em muitos países ricos durante a crise econômica mundial.
Não que antes da problematização de Carl Schmitt, um dos pensadores mestre do nazismo, ainda não houvesse a figura do estado de exceção nas cartas constitucionais modernas, ou mesmo sua aplicação: o que Schmitt fez, pelo bem do desenvolvimento do sistema nazista, foi sua sistematização, ele criou uma filosofia e uma ciência da exceção para permitir um uso procedimental coerente daquele artifício.
Declarar a exceção para Schmitt seria, em último caso, não desfazer o sistema constitucional-legal, mas suspendê-lo, conforme os interesses em jogo, pelo tempo e da forma que fossem necessários. O soberano schmittiano, condutor de um povo etnicamente homogêneo em relação ao qual ele nutria fidelidade absoluta por razões de sangue, aplicaria ou suspenderia Lei conforme seu arbítrio, como um pai amoroso que diz e até se contradiz pelo bem de sua família.
De outro lado, Hans Kelsen, ao contrário do que parece, surgia com uma outra forma de platonismo que apesar do aparente formalismo, era um sistema complexo que, no limite, reconhecia a soberania estatal plena, ou a possibilidade para tanto, com um direito meramente estatal e fundado na possibilidade de auto-subversão pela ordem da autoridade, isto é, o "intérprete autêntico": o capítulo VIII da Teoria Pura do Direito deixa pouco espaço para dúvidas nesse sentido.
É Walter Benjamin que, de modo incrivelmente audacioso, proporá o estado de exceção verdadeiro, assentado na história -- na "tradição dos oprimidos" -- que suspenderá a própria Lei. Ele não é congelamento tático de dispositivos legais, mas abertura permanente para uma revolução permanente, para além do regime das obrigações. Agamben, Negri e Hardt, quando se deparam com a decadência das ilusões constitucionais liberais no pós 11 de Setembro têm, cada qual à sua maneira, a ideia de estado de exceção verdadeiro de Benjamin: exceção que não se referencia pelo limite negativo, ou pela dívida infinita (o dever absoluto em relação ao Estado e suas misteriosas razões), mas pela própria superação de limites -- seja pela libertação do direito ou pela libertação no direito.
Essa lembrança sobre o estado de exceção, a diferença entre um estado de exceção soberano e o verdadeiro -- ou multitudinário -- servem, no plano prático para nos desfazermos de nossas próprias superstições -- como se as garantias e direitos constitucionais fossem saltar e se realizar automaticamente para nos salvar -- e, assim agirmos; as prisões de manifestações e a repressão que há um ano atingiu níveis perigosos é um evento da ordem da investida imperial de Bush Filho: são quadros igualmente horríveis, mas que atentam para a necessidade de colocarmos fim nas nossas ilusões.
O Estado brasileiro não mudou nos últimos meses. Não houve qualquer transformação não declarada. A possibilidade de fazer o que fez sempre esteve lá como potência concreta desse sistema. Não há o gêmeo bom e o gêmeo mau, mas sim gêmeos siameses: duas cabeças que compartilham o mesmo corpo. Antes de ser "de direito" ou "de exceção" temos o Estado e seu dualismo complementar.
Tira bom e tira mau, o senhor e o capataz, o presidente e o ministro da casa civil, o diplomata e o espião: Estado como dualismo,
regra e exceção são gêmeas siamesas: Aura Mazda e Arimã, ainda
Zaratustra, como nos primórdios dessa nossa tradição que é tanto mais persa do que semita. Bem e Mal simétricos e, em certa medida, mutuamente necessários.
A partir daí, a máquina política é glória absoluta aparente e violência oculta. Captura as conquistas sociais na forma da lógica da outorga -- como se o STF tivesse "feito" a união civil entre casais homossexuais ou Getúlio tivesse feito a CLT e não os movimentos constituintes (de direito) -- e age na forma da violência absoluta quando necessita e tem condições objetivas para tanto. O Estado concede e captura quando limitado -- e violenta quando não sofre pressão.
A questão não é a luta por dentro, a luta meramente institucional (de Estado), versus a luta nos movimentos, mas uma luta que venha de fora (da subjetivação do Estado) para dentro da máquina: sem ilusões de que garantias e direitos tenham vida por si, ou pela graça divina do Estado, mas apenas quando assumidas por Ele como verdades práticas. Atividade militante capaz de atuar nos mecanismos da máquina sem crer em sua religião, sem sentir culpa pela profanação. Nada de "Estado de Direito Democrático", mas sim, à maneira de Clastres, Democracia contra o Estado por meio de um direito comum feito na prática e em conformidade com as necessidades materiais.
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