terça-feira, 19 de agosto de 2014

Sobre Virtù e Fortuna na Terra do Sol: Marina e a Tragédia de Campos

No meio do caminho das eleições brasileiras houve um desastre aéreo. Um desastre aéreo que ceifou a vida de um dos principais candidatos, Eduardo Campos. E a tragédia mudou tudo. Embaralhou um jogo que caminhava, por inércia, para uma vitória já em primeiro turno de Dilma. Marina Silva foi trazida novamente ao jogo. Agora, por conta disso, tudo indica que teremos um segundo turno, como confirmam as pesquisas feitas, sem muito pudor ou demora, nos dois dias seguintes à morte de Campos: [pretendente a] rei morto, [pretendente a] rainha posta. Ninguém mais perde tempo na era dos selfies e das redes sociais. Embora Marina não seja, ainda, oficialmente a candidata à presidência, há poucas dúvidas que isso deixará de ocorrer diante da verdadeira aclamação de seu nome por vários setores na tétrica oportunidade aberta. 



Depois do choque do acidente, na manhã cinzenta e turbulenta da última quarta-feira, mais três dias de luto nacional até a gigantesca cerimônia fúnebre, celebrada cinco dias depois, no Recife, terra natal do falecido, o cenário é de perfeita anomia. As coisas ficaram fora do lugar. Em um dia, Campos estava no Jornal Nacional, no outro, morto. A última vez que o destino pôs a mão nos rumos da sucessão presidencial brasileira, não se esqueçam, foi, ironicamente, no episódio da morte de Tancredo. E o fato apesar da tragédia não se aplicar a um chefe de Estado eleito ou em exercício, mas a um pretendente, não exime o episódio de gerar aquela carga que se via no antigo Império e se repetiu nas monarquias: a morte do corpo do imperador, a lei viva, enfraquece a ordem vigente e, durante o luto, nada mais é como antes, as coisas caminham incertas, embora seja muitas vezes uma incerteza reveladora.


Campos teve uma carreira meteórica, marcada pelo ímpeto e pela audácia, até se tornar um dos protagonistas do Lulismo: de ministro de Estado até governador da base governista, ele foi lugar-tenente das políticas que produziram uma verdadeira virada histórica no país, sobretudo no que diz respeito à sua região, epicentro estratégico do Novo Brasil. Apesar da insígnia socialista, era menos isso, ao contrário do avô, e mais um modernista de Estado. 

De movimentos audaciosos em movimentos audaciosos, Campos não apenas rompeu com o PT sob Dilma, mas também fez de seu partido a atração das eleições municipais de 2012, lançou-se candidato à presidência -- quando todos achavam um blefe -- e ainda admitiu em sua chapa a ex-concorrente e colega de ministério Marina Silva -- a qual ficou alijada da disputa por não conseguir formalizar seu partido a tempo das eleições num episódio controverso.


Muitos falaram em fortuna, remetendo a uma leitura fraca de Maquiavel, como se simplesmente o acaso tivesse aparecido e mudado todas as certezas de uma eleição que caminhava, grosso modo, para a reeleição de Dilma. Já Marina prefere crer na intervenção de uma providência divina, que a salvou do pior, uma vez que poderia estar no mesmo voo. O fato é que as coisas parecem menos aleatórias ou divinamente preparadas. 

Essa "fortuna", possivelmente, é de outra ordem. A fortuna é a fortuna sob o capital e a fortuna que lhe escapa. Se fortuna é a sorte, por outro lado, seu uso metafórico para designar riqueza se consagrou: mas a riqueza não aparece, nem se mantém, aleatoriamente. Riqueza, concordam Smith e Marx (e Marx por causa de Smith!), vem do trabalho. Essa fortuna, pois, diz respeito das vultuosas quantias sobre as quais falamos diariamente quando falamos sobre economia política. Um fluxo de riqueza administrado pelo capital, o qual é dependente de uma classe política profissional, destacada da sociedade, fluída e desterritorializada de partidos políticos sólidos ou o que mais lhe possa atar -- o partido é, sobretudo, unidade econômica, casa de um senhor só que manda e desmanda. O que não quer dizer que não haja matizes ou que não haja resistências ali ou acolá, mas o grosso do sistema é isso.


A Nova República é feita do grande capital -- nas suas cisões e seções, a grande indústria, os bancos, o agronegócio --, mas também das grandes estruturas do Trabalho como as centrais sindicais -- e também de poupudos fundos de pensão que gravitam em torno delas, hoje mais importantes do eventuais bases de trabalhadores. Isso tensionado com uma organização do trabalho que se modificou duramente nos últimos anos, assumindo a forma de redes resistentes e exigentes. Um novo trabalho no qual temos uma multidão no lugar do proletariado industrial e, também, a metrópole no lugar da fábrica.

Nesse mundo, os arranjos políticos fracos e personalistas fazem com que a morte de um único ser humano operem mudanças. Candidatos, infelizmente, podem morrer durante o intercurso de uma campanha eleitoral, mas aqui eles não têm instituições partidárias sólidas para impedir que isso signifique, muitas vezes, a morte de um projeto ou sua transformação. Ainda que os limites demandados e impostos pelo mesmo sistema sejam cada vez mais estreitos -- e reativos a transgressões e ultrapassagens. Não existe "acaso", mas os efeitos necessários das possibilidades óbvias. 

Que deseja Marina, afinal? Certamente a manutenção sofisticada desse mesmo sistema, mas com a mera gestão, e não a governança, da "economia", preservada como uma reserva natural, uma vez que o estágio atual não admite qualquer eficácia em uma "intervenção" qualquer naquela esfera -- que deve ser, portanto, administrada por seus técnicos, como um André Lara Resende; por outro lado, a "superestrutura" se torna espaço de composição, a única área de atuação possível de um futuro governo. Há um certo ideário marxista de formação bem longínquo que, no entanto, cede lugar à democracia liberal como forma acabada, resultando na produção do sujeito do multicultural, de diferenças diluídas por um sistema universal.

Não é um projeto que deixe de ser reformista, mas não o é, em si, forte para se sustentar enquanto tal, para não capitular às linhas fracas de sua própria composição como às pulsões suicidas inerentes ao neomalthusianismo de ocasião -- que põe no consumo, por parte dos pobres, e não na superprodução, para a especulação, os efeitos da devastação ambiental -- ou a outras tendências apocalípticas ou catastrofistas podem ser muito bem apropriadas pelas elites. Quando a crise ambiental é pensada a partir do fim do mundo, ajuste por recessão ao sabor do mercado financeiro -- que, no Brasil, é uma máquina completamente anômica -- e santuarismo podem sim andar de mãos juntas. 

Marina não é menos economicista do que Dilma, apenas faz opções diferentes para a economia,  nem Dilma é menos "superestruturalista" ao fazer exatamente o inverso dentro do mesmo, isto é, governar a "economia" enquanto trata como penduricalhos -- rifáveis, inclusive -- tudo que estaria posicionado como exterior à esfera econômica.   Os costumes brasileiros, pensa Dilma, são assim mesmo pelo "estágio" da nossa civilização, portanto, é preciso trabalhar a partir de largos consensos mesmo que, por vezes, isso exponha as minorias, enquanto o desenvolvimento econômico ainda não dá conta de produzir o salto necessário. Em ambos os casos, é um pouco de um marxismo formalista e positivista de formação, que cinde "economia" das "outras coisas" e, nesse binarismo, faz opções de como articula-las.

Marina, aliás, pensa o mesmo da economia, do neoliberalismo, pois este só seria superado com o salto dado a partir da cultura, da formação de uma nova subjetividade, o qual não seria propriamente um cidadão emancipado, mas enquadrado em um regime de "tolerância" e "diversidade", enquanto temas sensíveis aos direitos civis seriam deliberados por plebiscitos como nos casos do aborto ou da descriminalização do uso da maconha. Mas se num libelo de tolerância Marina diz que o problema não é que um Feliciano seja evangélico, mas sim intolerante com os direitos humanos, o que é correto, por outro lado equipara uma  "cristofobia" à "homofobia" -- como se os homossexuais estivessem ou pudessem estar aí atacando cristãos (?!). Se não há uma formulação que determine o que é a parte majoritária ou minoritária da relação de poder, nos pegamos no mínimo diante de uma situação potencialmente perigosa.

Fato incontestável é que agora as eleições começaram. Porque Marina tem por trás de si, à base da nova economia ambiental e do setor financeiro, um bloco de poder que se usa, e é usado, por seu programa reformista, pareando-a com Aécio e Dilma, que como representantes de PSDB e PT já tinham essas condições há muito tempo. Curioso notar que venceria quem se aproximasse realmente, de corpo e alma, do continente desconhecido da nova composição de classe brasileira, mas a ordem é governa-lo e contê-lo, não se agenciar com ele. O desarranjo provocado pela entrada de Marina no jogo apenas cria uma tensão nas alturas, mas está longe de marcar um fluxo constituinte que faça nosso sistema sair da mesmice.  


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