sábado, 14 de março de 2009

A maior ameaça ao discurso jornalístico

é, ao meu ver, a natureza dos próprios conglomerados midiáticos e os interesses que derivam disso - que os têm levado, como insisto em dizer, a subverter o discurso jornalístico de dentro pra fora tendo em vista estabelecer uma narrativa claramente política.


Antes de mais nada, convém esclarecer o que eu denomino "discurso jornalístico" : É aquele que visa explicar o que "foi" ou "é" algo em termos factuais, traçando hipóteses para o futuro apenas no caso em que haja profunda fundamentação nesses fatos apurados sobre alguma Coisa - usando como meio, claro, um meio de comunicação necessariamente não-interativo; por sua vez, "discurso político" é aquele que visa decidir o que "deverá, terá ou poderá ser feito" no espaço de habitação comum, portanto, encontra-se logicamente no passado do "discurso jurídico" (o "dever ser") que nada mais é que o seu efeito - cabe ressaltar que para realizar o "discurso jornalístico" é necessário explicar o passado por meio de uma narrativa (isto é desse jeito porque X aconteceu, logo poderá, deverá ou terá de ser como eu penso ).


A esse respeito pode-se afirmar que o discurso político divide-se entre o democrático e o aristocrático, sendo o primeiro aquele que busca explicar o passado amparado na Ética como forma para se chegar ao bem de todos, enquanto o segundo se vê obrigado a deixar a Ética de lado para contar a versão que seja favorável para se chegar ao bem de alguns ( como diria Heidegger defendendo Hitler em 1933: "a verdade é a revelação daquilo que torna um povo certo, claro e forte em sua ação e em seu conhecimento"). O discurso político, portanto, é uma narrativa que explica o passado para poder definir o que se passa no presente e, por conseguinte, para estabelecer o que deverá ser no futuro - sendo o último item concretizável pelo Direito.


O "discurso jornalístico", por sua vez, não possui o intento de definir o que deverá ser, mas sim e tão somente informar - "formar por dentro", isto é, construir um discurso empírico por meio da descrição de algo se posicionando no meio em que ele se insere, diferentemente do discurso especulativo, próprio da Filosofia ( e também da sofística).


Nesse sentido, tenho visto, não apenas pelo Brasil, mas pelo mundo inteiro, uma certa corrosão do discurso jornalístico, não por meio da censura estatal, mas sim por meio de uma subversão dele pelo discurso político que é feito pelas corporações midiáticas - nesse sentido, não custa lembrar a cobertura da Fox News em relação à guerra do Iraque ou mesmo o nosso conhecido caso da ditabranda.


Sobre o editorial da ditabranda, inclusive, surge a velha e vazia alegoria do "respeito a opinião alheia", o que cai num círculo vicioso manjado: Se a opinião alheia é inviolável, isso torna a minha opinião em relação a opinião alheia inviolável também - eis as limitações de um debate travado no plano da doxa. Um editorial de um jornal - ou de um periódico - contém aquilo equivocadamente chamado de "opinião jornalística", o que, na verdade, é uma análise jornalística panorâmica que expressa o espiríto da publicação, portanto, não é mera opinião - ou opinião no sentido lato -, muito menos política. Quando alegou ter existido no Brasil uma "ditabranda", o editorialista da Folha nada mais fez que um discurso político - na medida em que procurava explicar o passado para definir o presente e chegar na especulação do "deverá ser", no discurso ante-diretivo da política e não no discurso informativo do jornalismo.


Isso, claro, é apenas um espasmo. Um sintoma do que se vê no mundo contemporâneo onde, ainda sustentados pelos ideais há muito ultrapassados de imparcialidade e objetividade, os grupos de mídia corroem o próprio discurso jornalístico com um discurso político velado (ou nem tanto) que objetiva apenas justificar seus interesses, visões e, sobretudo, aspirações políticas. Mais que isso, tais interesses, visões e aspirações políticas são cada vez mais autonômas; os grupos de mídia se tornam na medida cada vez mais políticos na medida em que a relação entre difusão de dados e poder se estreita ; eles não vêm mais à reboque de interesses de outras forças políticas porque eles mesmos são forças políticas agora, logo, são possuidores do próprio discurso político.


É como se um sitiante vendesse os tomates que planta na beira da estrada. Até aí, ele depende de outras forças econômicas para ter dinheiro e a partir dele chegar ao poder. No entanto, surge um dia em que a economia se desmonetariza e o governo diz que os tomates passarão a ser base de troca de agora em diante. Esse é o dia em que esse sitiante experimenta uma relação direta com o poder, sem depender do intermédio de outros fatores e passa a ele ser em si uma força econômica autonôma. No que toca a mídia, vemos um caso parecido: O produto midiático se torna cada vez mais a grande moeda do mundo do século 21º, de tal maneira que isso altera por completo a relação de um grupo de mídia com os demais integrantes de sua comunidade graças à subversão que ele faz com o próprio discurso por meio do qual se dirige a eles. A morte do jornalismo, no fim das contas, poderá vir de onde menos se espera e pode ser mais sutil do que se imagina.

atualização (15/03/09 às 16:37): O que já estava ruim ficou pior e a Folha além de ter sectarizado o debate agora o está tornando algo pessoal, o que é inteiramente lamentável; direito de resposta não se viola. Sobre isso melhor escreve o Mauricio Caleiro em seu Cinema & Outras Artes.

atualização (16/03/09 às 19:20): alterei a redação do primeiro parágrafo para ficar mais claro o que eu queria dizer.

nova atualização em 18/06/09 às 20:24

6 comentários:

  1. Sempre considerei o discurso jornalístico, um discurso político. O poder da imprensa é grande de mais para não ser utilizado a favor de um grupo ou ideologia. Seja mais a esquerda, seja mais a direita. Para mim, a imprensa, seja ela qual for, é um aparelho ideológico.

    O problema, a meu ver, não é quando a imprensa serve a determinados interesses ou grupos, o que eu acho inevitável, mas quando essa subserviência se esconde atrás da máscara da imparcialidade. O que é uma mentira, mas rende uma credibilidade que a imprensa (boa parte dela, pelo menos) não deveria ter.

    Certa vez, conversando com um amigo jornalista sobre a animosidade da imprensa com o governo Lula e a condescendência desta com o governo Serra, eu brinquei dizendo que para aumentar o nível de emprego da categoria, deveríamos eleger apenas governos de esquerda. Assim a imprensa precisaria mobilizar grande parte de colaboradores para tentar encontrar qualquer traço de corrupção, conchavo, má gestão, manchas morais ou qualquer outra coisa que pudesse derrubar a aprovação do governo frente a opinião pública. Do contrário, se elegêssemos apenas governos de Centro ou Direita, a condescendência da imprensa com este não exigiria muitos profissionais, já que o interesse é preservar a imagem do governo. Se alguma denúncia aparecer e não tiver jeito, aí se publica, mas logo o assunto sai da pauta antes que provoque um dano conversível na imagem do partido ou de um político.

    Mas este meu amigo não gostou muito da brincadeira.

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  2. Eduardo,

    A Ideologia é a maneira que ordenamos as ideias de maneira racional como um argumento e por meio dela interpretamos o mundo. O discurso jornalístico assim como o discurso político são, portanto, ideológicos, mas enquanto um visa informar enquanto meta o outro se presta ao "deverá ser" da sociedade. A linha que os divide é bastante tênue e, não raro, é cruzada.

    O que eu estou colocando aqui é antes a mídia servia a interesses, ia à reboque, hoje ela é locomotiva, ela constrói sua própria narrativa porque tem poder para tanto.

    No caso do Governo Lula, isso é flagrante, o PSDB tem claramente um lobby, uma aparelhamento ferrado nas imprensas de São Paulo, Minas e no Rio Grande do Sul. Ainda assim, eu penso que a Folha é mais importante para Serra do que o contrário. Nos anos 50, a UDN era mais importante do que os jornais que lhe dava apoio. De lá pra cá algo mudou e mudou muito.

    Sobre os jornalistas brasileiros de hoje, sim, na média falta autocrítica - e falta muito. As vezes, eles parecem se levar mais a sério do que advogados ou historiadores e veneram seu ofício como uma espécie de credo laico. Pelo menos - e felizmente - os amigos que eu tenho na área possuem capacidade crítica, o que, nessa profissão, é tão essencial quanto raro.

    abração

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Concordo que o editorial do "caso ditabranda" seja um caso particularmente explícito do discurso político enunciando-se através de um meio jornalístico. Porém, creio que, atualmente, essa inversão nunca esteve tão caracterizada na nossa imprensa (e não só na mídia corporativa; mesmo a parte mais instituicional da blogosfera reverbera tal fenômeno).

    A propósito dos recentes desdobramentos da "ditabranda" - o direito de resposta exigido por Benevides e Comparato e o modo como foi publicado -, escrevi um post hoje, no qual, inclusive, linkei seu blog.

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  5. Maurício,

    Sem dúvida, esse fenômeno nunca esteve tão caracterizado na mídia nacional (e mundial) até porque ele é bem recente - no caso brasileiro, graças às idiossincrasias do nosso país, isso é mais pungente e revoltante do que a média do que se vê pelo mundo.

    Seu post sobre esse novo desdobramento ficou excelente. A Folha despirocou mesmo, está misturando política com jornalismo e ainda por cima escolheu um discurso político que é suicida.

    PS: Vou linkar sua postagem numa atualização aqui mesmo.

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  6. E,como comentei numa das respostas, podemos considerar que, devido à atuação do Otavinho, trata-se de um caso de suicídio assitido...

    Obrigado pelo link e pelos comentários, Hugo.

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