terça-feira, 7 de julho de 2009

Um Pouco de Brasil

Como nós estamos acompanhando, a tragédia hondurenha acontece bem no momento em que os movimentos sociais latino-americanos conseguiram, pela primeira vez na História, alguma participação mais efetiva na política local, gerando algum grau de representatividade. É paradoxal, mas também expõe feridas ainda não cicatrizadas em praticamente todos os países do continente, seja por revelar alguns pontos, quanto por nos fazer ver coisas que estavam passando desapercebidas diante dessa evolução política.

Relacionando isso com a nossa Terra Brasilis, temos aqui um país onde a desigualdade social vem caindo desde a nova ordem representada pela Lei Maior de 1988 e apesar das atribulações desnecessárias dos anos 90, temos tido uma evolução notável no campo econômico durante o governo do atual presidente, em especial, nos primeiros dois anos de seu segundo mandato, onde o país cresceu gerando emprego, renda e com a desigualdade caindo. A política externa brasileira, pela primeira vez na história, deixa de lado a cerimônia do beija-mão em Washington para articular algo no campo externo. Foi tão bom quanto poderia ser? Não, mas não deixa, sob aspecto algum, de ser digno de nota.

O ponto nevrálgico dessa conversa é jogar uma luz num certo quarto escuro que, não raro, passa desapercebido: Para além dos avanços nos direitos civis e nos direitos sociais, essa nova ordem conseguiu equilibrar de modo razoável as relações de poder? Sendo mais claro, a Constituição de 1988 conseguiu regulamentar de modo eficiente o complexo sistema de pesos e contra-pesos que um país do tamanho do Brasil, seja no âmbito dos três poderes ou dos entes federados, necessita? Eu creio que não.

Não é incomum cairmos no vazio da análise desconectada de cada escândalo político nacional. Em cada um deles, elegemos nossos vilões e nossos heróis, mas ignoramos a inconveniente verdade de que isso é sistêmico e surgiu por culpa de boa parte das atuais grandes forças políticas do país, todas já atuantes nos fins dos anos 80.

O sistema eleitoral e a organização partidária pós-88 legou uma sistema político-partidário irremediavelmente condenado à inépcia, o que se revela, à priori, na disfuncionalidade do Poder Legislativo e desemboca praticamente em um Governo de Gabinete, onde o Presidente, via Medidas Provisórias, vai legislando de acordo com a correlação de forças do momento e dos conselhos de seus tecnocratas.

Se os anos 90 são marcados pelo avanço do centralismo presidencialista e a adequação das normas constitucionais referentes à Ordem Social e Econômica do país ao Consenso de Washington, os anos 00 são marcados, mais precisamente em 2004, pela chamada
mini-reforma do Judiciário e a consequente guinada desse poder - e também pela movimentação política em torno da transformção do STF de mera quarta instância em, pouco a pouco, um Tribunal Constitucional, o que encontra amparo com o advento das súmulas vinculantes instituídas na mesma reforma.

Hoje, temos um Legislativo que se tornou mero campo de luta entre as forças partidárias, enquanto o Judiciário e o Executivo travam uma verdadeira luta de esgrima pela hegemônia. De um lado, as Medidas Provisórias - o provisório eterno, se o capitalismo, como alguns dizem, trata-se de um estado de exceção permanente, então a nossa prática não chega a ser incoerente em si -, do outro, as Súmulas Vinculantes - que não são lei, mas tem força de lei, portanto, são apenas força como concordaria o Professor
Willis Guerra.

A guinada de Gilmar Mendes não é mera coincidência nesse cenário. Não é o juíz mau que surge para atormentar nossa proto-democracia tardia, mas sim uma figura que vem e se instala numa falha sistêmica que ele enxerga e compreende bem. A chamada crise no Senado, não é mero acaso: Primeiro, ela só virou crise no momento em que o moralismo seletivo do neoudenismo nacional achou que era oportuno, segundo, é um problema estrutural, tanto pela estrutura bicameral brasileira ser uma cópia do modelo estadunidense, quanto pelo fato de ser uma consequência natural da fragmentariedade esquizofrênica do nosso sistema partidário - querem maior exemplo disso que o nosso PMDB?

É também nas zonas mais escuras dessa quarto escuro onde se misturam empresários, jornalistas, políticos e juízes
nas mais torpes negociações.

É a análise dessa contradição superestrutural interna - assim como a própria e sempre indispensável análise da dinâmica econômica - que não podemos perder de vista para não sucumbirmos ao contínuo plano B e não perdermos os poucos e parcos avanços que conquistamos.

2 comentários:

  1. Perfeito, Hugo, esse é o tipo de raciocínio consequente, distanciado e crítico, que se deveria ler na imprensa, se ela o produzisse, ao invés de ficar-se ocupando com a crise e os vilões da vez.

    Há de se refletir em relação às estruturas, para se evitar que tanto tempo e oportunidades sejam desperdiçadas debatendo o momentâneo, quando o problema, como você mesmo diz, é sistêmico.

    Um abraço.

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  2. Maurício,

    Grande parte dos escrevinhadores de jornal não se dão conta disso mesmo, mas é isso que eles são: Meros redatores de teses que já vêm prontas "de cima" e cujos elaboradores são pessoas que têm exata noção das coisas.

    Mesmo a esquerda se perde um pouco nessa personalização idealista das coisas - como nas recentes crises do STF onde a crítica feita por muitas pessoas pára em Gilmar e não passa daí (quando, na verdade, o buraco é bem mais embaixo).

    No caso de Sarney, por exemplo, é o velho moralismo seletivo, algo bem antigo em nosso meio político e que remonta à velha UDN - da qual, ironicamente, o Senador amapaense fez parte. De repente, ele, que é apenas um ator canastrão num palco com defeito sistêmico, acaba sendo apontado como O culpado de tudo como forma de mirar em Lula.

    Ainda assim, continuo considerando que o Governo Lula acabou dependendo demais de Sarney pelo modo errático com o qual ele vem lidando com as instituições e, mesmo partindo da perspectiva da realpolitik, creio que ele apostou alto demais no esquema político do velho Senador.

    O que não se pode, no entanto, é embarcar em movimentos oportunistas e vazios como um Fora Sarney da vida porque isso, ao meu ver, é o mesmo que assinar um atestado de massa de manobra. Querem debater a atual crise do Senado? Debatamos unicameralismo, reforma política e afins, ser usado por um Arthur Virgílio da vida é que eu não vou ser mesmo - Virgílio é o famoso relógio quebrado: Só marca a hora certa duas vezes por dia e quando o faz, é pelos motivos errados...

    um abraço.

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