quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Manuscritos não Ardem

(imagem retirada daqui)

é a frase com a qual se pode resumir perfeitamente O Mestre e Margarida, obra máxima de Mikhail Bulgakov, escrita entre 1928 e 1941 e considerada um dos melhores romances do século 20º. Trata-se de uma obra de realismo fantástico, com uma narrativa cujo ritmo em muito lembra os nossos modernistas - o que justifica as comparações dele com o nosso Macunaíma - e se presta a satirizar a vida na União Soviética no período de transição do seu momento inicial para o totalitarismo stalinista. A trama gira em torno de uma visita que o demônio em pessoa e a sua comitiva infernal - formada por uma bruxa nua, dois demônios e um gato de proporções espantosas, o célebre Behemot - fazem à Moscou do período - e como se pode deduzir da epígrafe do livro, o demônio da obra é o mesmo de Fausto de Goethe: ...quem és, afinal? Sou parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem.

Bulgakov (foto retirada daqui) é uma figura genial e controversa: ucraniano, foi médico de campanha do exército branco durante a Guerra Civil Russa, depois, continuou no país no período de formação da União Soviética - diferentemente de seus irmãos, que lutaram no exército branco e emigraram para a Ucrânia - e lá permaneceu ao longo dos anos 20. Longe de ser um reacionário pró-tzarismo, Bulgakov encarnava um espírito liberal, à direita dos mais diversos grupos de socialistas - que pouco depois viriam a ser depurados de uma maneira não muito sutil - e, ao mesmo tempo, alheio às viúvas do velho regime; o escritor manteve uma postura cética em relação ao regime boshevista durante os anos 20, seja politicamente ou artisticamente - pois não seguia os padrões do realismo socialista. Seu posicionamento só se converte em escárnio quando do recrudescimento da repressão.

A vida de  Bulgakov nos anos 20 era como a de muitos intelectuais: O período do nascedouro era marcado por uma profundo otimismo por parte do povo, da intelectualidade e dos artistas, pois depois de décadas de decadência sob a bota do Tzarismo e oito anos de guerra - somando-se a desastrosa participação russa na Primeira Guerra com a Guerra Civil que transcorreu simultaneamente àquele conflito, mas o ultrapassou, durando até 1922. O país finalmente voltava a crescer e se reconciliava sob a égide de Lenin; ainda que Bulgakov mantivesse o ceticismo em relação aos bolsheviks, o período, marcado por um verdadeiro renascimento cultural russo, era farto em oportunidades para os artistas e foi assim que ele continuou produzindo intensamente no teatro.

Aventurando-se na prosa pelos fins dos anos 20, Bulgakov acabou sendo vítima da nascente repressão stalinista:  A versão original de O Mestre e Margarida, escrita em 1928, foi apreendida por agentes do serviço secreto em seu apartamento em Moscou junto com todos os seus outros manuscritos. A partir daí, ele iniciou uma briga com Deus e o Diabo para retomar sua obra - o que acaba relatado, em forma de metalinguagem na versão atual do referido romance -, chegando a escrever uma carta para Stalin, o que reza a lenda, lhe valeu um telefonema do líder soviético em um momento onde a repressão sobre as artes alcança níveis tão insuportáveis que levaram o seu adversário estético e político, Vladmir Maiakóvsky, ao suicídio.

O escritor recuperou sua obra no início dos anos 30 e a queimou totalmente na sua lareira em um acesso de fúria. Das várias versões de O Mestre e Margarida que ele trabalhou junto a sua última esposa, Yelena Shilovskaya, ao longo dos anos 30, nenhuma foi publicada, sendo que a obra foi terminada apenas em 41 por ela a partir de manuscritos seus. A versão concluída em 1941 permaneceu escondida, conhecida unicamente por um pequeno círculo de intelectuais moscovitas até ser publicada com cortes - que permaneceram arquivados nos arquivos da KGB - nos anos 60 e só ser retomada quando os arquivos da polícia secreta soviética foram abertos na era Gorbatchiov e só aí pode-se conhecer a obra por inteiro. A obra chega até nós na sua primeira tradução direta do russo, feita recentemente por  Zóia Prestes - sim, filha do segundo casamento de Luís Carlos Prestes.
 
A trama se tornou o entrelaçamento de três histórias: A visita de um Diabo intelectual à Moscou, tal como o Mefistófeles de Goethe, que, sob o nome de Woland, denuncia a miséria humana em meio a uma sociedade hiperburocratizada, seja por meio de suas provocações ou de eventos paranormais; a saga do Mestre, o escritor sem nome - e alter-ego do próprio autor - que foi parar em um hospício após queimar toda sua obra, revoltado pela perseguição que sofreu dos críticos literários de Moscou por ela não estar produzindo de acordo com os padrões do regime e assim acabou se desencontrando do seu grande amor, Margarida; os momentos finais de Cristo, narrados tanto pelo diabo quanto fidedignamente, no livro em que o Mestre trabalhava.Tentativas de reduzir Bulgakov a um mero reacionário anti-comunista esbarram na sua própria obra, onde ele promove um elogio à liberdade expresso pelo simbolismo do esoterismo pagão que representa, ao mesmo tempo, uma sátira aos padrões do cristianismo ortodoxo quanto ao rígido padrão da dogmática bolshevik; a Cristo negando o poder de César e o ritual da transformação de Margarida em bruxa, respectivamente a negação do do poder do Estado e a libertação feminina são exemplos disso.

O livro é dividido em duas partes que subdividem em capítulos. O início da trama se dá em praça de Moscou, bem no meio de uma conversa entre um crítico literário Berlioz e o jovem poeta moscovita Bezdomny acerca da inexistência de Deus. Eles acabam interrompidos por um velho estrangeiro de origem desconhecida, Woland, que começa a provoca-los e narra o interrogatório de Jesus, conduzido pelo Procurador da Judeia, Pôncio Pilatos - que remete o leitor imediatamente ao Grande Inquisitor de Dostoievsky, com a negação do poder de César por parte de Cristo. Isso é apenas o início de uma série de episódios paranormais pela cidade, onde cidadãos e burocratas são simplesmente levados à loucura. A narrativa é um misto de uma sátira de fina ironia com um ritmo vertiginoso que seja na matéria quanto na forma, conduzem o leitor à sensação da insanidade, da paranóia, da suspeição.

Só no fim da Primeira Parte o Mestre nos é apresentado e a segunda Parte adquire um caráter mais esotérico, ainda que na medida em que o gradual desenvolvimento de Margarida ainda traga em si uma forte temática política na medida em que se estrutura como uma série de simbolismos acerca da condição da mulher na sociedade russa e do seu desejo de libertação. Mas a temática principal é mesmo da espiritualidade, da dualidade dialética entre o bem e o mal.

A espiritualidade em Bulgakov tem um significado diferente do que em Tarkovsky, mesmo que ela seja também um meio de crítica - e aqui como na película tarkovskyana Andrey Rubliov, ambos os autores, em seus respectivos campos, tratem da condição do artista em uma sociedade opressora -; em Bulgakov, como dito, ela excede os limites do cristianismo, se projetando para fora, de uma forma lúdica e mágica, se desortodoxando na medida em que o próprio Cristo cativo ironiza o processo de escritura dos evangelhos; em Tarkovsky, o cristianismo se projeta não para fora, mas para dentro, reflexiva e introspectivamente, buscando uma verdade psicológica como é patente em Rublyov. É possível compreender essas diferentes visões ao comparar a cerimônia da transformação de Margarida em bruxa com a cena em que Rublyov se depara com os pagãos no filme. Ainda assim, na obra de ambos reside a crença na transcendalidade da arte, como o título do post suscita, na cena de O Mestre e Margarida onde o Diabo reavê a obra supostamente reduzida às cinzas do Mestre.

A compreensão da produção artística - em especial da condição do artista - na antiga União Soviética bem como a questão da sobrevivência de muitos elementos da ideologia ortodoxa no socialismo russo são pontos fundamentais para finalmente entendermos o fenômeno soviético, sua ascenção e queda, itens tão nublados pela polarização de falsas consciências que dominou a cena do debate político mundial no século 20º; a resolução de enigma é indispensável para um Ocidente que se vê às voltas com o esgotamento do seu modelo.

P.S.: Dentre as várias versões em outras mídias, existe uma versão em carne e osso de O Mestre e Margarida feita recentemente para a televisão estatal da Rússia em forma de seriado que é bastante fiel ao livro. Vale a pena dar uma olhada

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