Há muito o que se falar nesses dias sobre o que se passa cá em terras bandeirantes - e pouco tempo para tanto. Sim, foi muito bem sucedida a Marcha da Liberdade, realizada no último sábado na Avenida Paulista, enquanto os dois grandes partidos políticos ruminavam suas discórdias internas; de um lado, o PT segue arcando com a tragédia anunciada de Palocci, do outro, oPSDB em sua catastrófica convenção nacional, no qual pela enésima vez não conseguiu enterrar Serra - e ambos os problemas, como sacou de maneira agudamente perspicaz Rudá Ricci, se relacionam com a fissura central do Brasil, a saber, o velho problema da integração de São Paulo com o resto do país, o que não raro, por uma série de motivos, produz belos solavancos; e isso porque mesmo que os dois grandes sejam partidos paulistas, eles possuem a mais forte tendência modernizadora vista em partidos importantes na nossa história, mas que por uma série de motivos não conseguiram superar essa problemática que chegou a extremos como em 1932 (do lado tucano, paulistas não conseguem dialogar com mineiros e nordestinos; do lado petista, os velhos políticos bandeirantes do partido da estrela esbarram em velhas práticas políticas locais). Pior ainda, os tucanos paulistas seguem divididos entre o grupo de Serra e Alckmin, sendo que a ala do último, que detém o controle do governo do estado atualmente, sonha com 2014, à sombra da megalomania de seu rival local e dos eternos problemas de Aécio Neves - ora fortalecido pela Convenção Nacional, mas longe de ser aclamado ainda -; enquanto isso, o governo Alckmin, que conta com uma leniência considerável da mídia - algo que certamente nenhum governo petista dispõe ou disporá tão cedo -, encontra-se imerso na mais profunda letargia em seus primeiros cinco meses: agora, a falta de flexibilidade e o gerenciamento pífio dos serviços públicos - sobretudo a inércia na reposição salarial dos funcionários públicos ligados a áreas essenciais -, pode levar a uma temporada de greves em massa com paralisação do metrô, da linha de trens metropolitanos e da Sabesp (companhia de tratamento de água). Em suma, um governo que já nasceu morto como o de Alckmin pode descambar para uma crise gravíssima rapidamente, ainda mais no que toca ao transporte público, gerido aqui por outro secretário-tragédia-anunciada, um velho conhecido, Saulo de Castro Abreu Filho, secretário de segurança pública nos tempos da crise do PCC. Olho em São Paulo, olho do furacão.
P.S.: Aos incautos: os ferroviários cessarão suas atividades na zero hora de amanhã. Preparam-se.
atualização de 01/06 às 21:15: hoje, pararam os trens que vão para a zona leste - e rolará amanhã assembleia geral dos metroviários, o que vai ser fundamental; embora os trens de subúrbio percorram áreas maiores, o metrô é essencial para o funcionamento do núcleo duro da metrópole, se ele parar, pára a cidade. Também arrebentou uma greve nas empresas de ônibus do ABC.
atualização de 02/06 às 15:55: hoje parou tudo em São Paulo. Chega a ser inacreditável a incapacidade negocial do governo Alckmin. E essa gente ainda pensa que consegue governar o Brasil.
Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade! Devíeis praticar estas coisas, sem deixar aquelas. Guias cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo!
(Mateus 23:23, 24)
A minha tarde de sexta-feira começa com um cervejinha com os amigos, logo depois da aula, para (tentar) aliviar os males da alma - inerências de uma semana inteira sentado nos bancos da [anódina] faculdade de letras jurídicas na qual este pobre redator estuda. Depois disso, segue-se uma viagem tortuosa para os confins da região metropolitana - para lardocelar - e, uma vez nos meus aposentos, costumo dormir um pouco. Ao acordar, entro na Internet a espera de uma pequena vitória, uma microscópica boa nova: já me bastaria a notícia de que, ao menos, resolveram finalmente fechar a Caixa de Pandora dessa vez. Mas não, eu costumo me deparar com alguma notícia terrível - e elas andam piorando, sobretudo quando tratam de São Paulo, tanto que eu estou começando a desenvolver um senso de humor perverso diante da desdita. Eis que desta vez a notícia é não apenas terrível, ela é simplesmente jocosa: depois da proibição da Marcha da Maconha no sábado passado - e é uma tristeza ter de explicar aos magnânimos doutores da Lei que propor manifestações pacíficas por mudanças legais é perfeitamente constitucional-, agora, a resposta para aquela proibição, a Marcha da Liberdade, também foi proibida. Desculpem, mas isso é Kafka. Há tempos tenho batido na tecla que os problemas de São Paulo são gravíssimos, mas acho que as coisas saíram do lugar desta vez; os processos andam se tornando cada vez mais tortuosos, sem saída, prende-se por ter cachorro, prende-se por não ter cachorro; o brejo, companheiros, foi para a vaca. Acho que agora ir à Marcha se tornou fundamental ou, na impossibilidade disso, é fundamental apoiar e cobrir a mobilização. Para além disso, é preciso devir estrategista e pensar com mais seriedade na batalha quotidiana contra esse processo que, Judiciário à frente, na prática instituiu um estado de exceção dentro da faceta cândida do sistema Estado de Direito às custas de um sistema político movido à base de superstições e temores. Nesse confronto diário, também precisamos devir partisans e lutar sem medo nem esperança. Façamos um verdadeiro Estado de Emergência então - e nada melhor do que fazer isso na cidade que carrega o nome do apóstolo Paulo, aquele que sabia que o amor é a única força capaz de suspender a Lei dos homens de forma efetiva.
O mundo vive uma crise gravíssima. Se após a Segunda Guerra Mundial modelos políticos surgiam aos montes como saídas para realizar o sonho de uma humanidade livre, igualitária e feliz, o cenário atual é aterrador: o "socialismo" - que mobilizou um sem número de intelectuais pelo mundo - desabou, se auto-implodiu deixando um mar de escombros e poeira no Leste Europeu - salvo a China que readaptou o seu sistema para cumprir uma função na economia global capitalista e assim manter o sistema, mas terminou por ser um estranho cruzamento de capitalismo selvagem com socialismo burocrático -; por outro lado, a crença no liberalismo à la americana parece ter desabado de maneira inequívoca, seja pela desmoralização definitiva do país com suas atitudes desde Bush ou pela própria crise do modelo, seja em um sentido político ou propriamente econômico como vemos atualmente - bem como as fracassadas tentativas de reprodução do modelo americano em qualquer parte do mundo -; por fim, a própria social-democracia europeia do pós-guerra, a utopia de domar o Capitalismo e usar sua força incomensurável de produzir riqueza para servir à vida, também se desgastou e foi corroído na medida em que o leviatã soviético desapareceu - e com ele o temor da elite capitalista em ser derrubada por alguma Revolução, o que os autorizou a pôr as coisas de novo no lugar...
Antístenes, discípulo de Socrátes e fundador da Escola cínica
Uma juventude sem esperança se amontoa pelo mundo, passiva e descrente em assumir postura crítica frente à desdita cotidiana. Não raro, intelectuais de porte dizem que vivemos uma "era de cinismo" - nada mais falso, pelo menos à luz do que foi o movimento cínico na Heláde do século 4º a.C.; os cínicos, ao contrário do equivocado termo pejorativo contemporâneo com o qual estão associados, se afirmavam na Pólis como um poderoso movimento de crítica, lançando violentos ataques às convenções morais dos seus contemporâneos por meio de inserções chocantes no espaço público. Portanto, não há nada mais anti-cínico do que o modo de vida atual, onde frente à implosão das grandiloquentes narrativas pós-platônicas, a postura é justamente de acatar acriticamente o mesmismo reinante, abraçar o modo de vida dado e se retirar do espaço público. Precisamos de um retorno ao cinismo tal como nos tempos de Antístenes e Diógenes. Um retorno a uma vertente nascida do socratismo e que, curiosamente, seguiu o caminho oposto da linhagem dominante, a saber, o próprio platonismo reinante, que se impôs como a linha tradicional do pensamento do Ocidente.
O evento que ora se passa na Espanha, no qual o sistema político do país - uma construção astuciosa do Poder para mudar tudo sem mudar nada na imediata queda do Franquismo - é posto em xeque, trata-se, a exemplo do Revolução Árabe, do que pode ser um novo meio de atuação, um devir cínico na medida em que se constitui crítico, surpreendente e multitudinário. Não poderia ser mais equivocado o temor de que o movimento colocaria a "direita no poder" como se o ("direitista") PP e o ("esquerdista") PSOE não fizessem exatamente o mesmo jogo há anos, protagonizando uma polaridade conservadora que, para além da imagem dos debates duros no parlamento, não fez outra coisa senão conduzir a Espanha mais e mais para um projeto europeu obtuso - que transformou o país em uma colônia de consumo, destinado a um endividamento crônico, que, uma vez que o eixo franco-germânico se viu ameaçado pela Crise Mundial, acabou por ser rifado, obrigado a cortar salários e aceitar arrochos para pagar as dívidas de um crédito que até ontem lhe era dado incondicionalmente. Isso sem falar na própria opressão às minorias étnicas - como os bascos -, coisa que os "esquerdistas" do PSOE sempre conviveram muito bem.
Da mesma forma que o argumento da via única é falso - nada mais tolo do que a redução de todas as possibilidades políticas a um caminho necessário ditado, quem sabe, por um racional superior desconhecido que só se comunica com os sábios -, o maniqueísmo que se insurge contra ele é igualmente perigoso, pois a alternativa que ele busca ser - esse "ou" capcioso - traz em seu interior, no fim das contas, um autorizativo moral que pode justificar muita coisa em nome da Causa, na medida em que não exclui a lógica do caminho único, apenas se apresenta como o caminho correto, o qual poderia fazer qualquer coisa contra seus adversários, o que exclui também toda e qualquer outra possibilidade de insurgência e, uma vez no poder, toda e qualquer outra possibilidade de fazer política - a nossa moral e a deles. Se tanto a direita quanto a esquerda parlamentar da Espanha estão presos na armadilha da via única, também não será um falso alternativismo que servirá lá - ou em qualquer lugar do nosso tempo -; é necessário mais do que isso, uma nova esquerda, uma esquerda para o aqui-agora, precisa sair do mundo do moralismo-maniqueísta e entrar no reino das possibilidades (e da Liberdade); Puerta del Sol é alentadora nesse sentido assim como as experiências no Mundo Árabe. É isso que precisamos cá no Brasil.
Guido Mantega, por ora, o grande fortalecido nisso tudo
Enquanto de um lado o Antônio Palocci, o pretenso articulador-mór da República, balança mas (ainda) não cai e o problemático texto do Novo Código Florestal acabou passando - restando apenas a Presidenta correr os riscos inerente ao veto do texto -, do outro lado, as contas públicas vão muitíssimo bem, obrigado e o PIB deve apresentar um resultado muito bom este ano. Enfim, tudo segue como dantes no quartel de Abrantes. Mais até do que isso, as desditas e as vitórias do atual governo não deixam de ser perfeitamente previsíveis; Palocci, desde o começo, era um péssimo nome: sua enorme capacidade de articulação nos bastidores sempre foi ofuscada pela sua visão limítrofe de política e sua capacidade de se envolver em problemas - era líquido e certo que aquilo que está acontecendo agora não tardaria a acontecer, talvez até em momento mais inoportuno. O Novo Código Florestal, por sua vez, também já nasceu mal, basta ver a equipe responsável por sua redação - um AldoRebelo há tempos próximo dos ruralistas -, ter dado no que deu, jogando esse enorme abacaxi no colo de Dilmanão é novidade alguma, francamente. Por outro lado, o resultado das contas e do PIB era esperado, ainda mais com Dilma no topo da cadeia de comando; enquanto a oposição falava em "contas destroçadas" durante a campanha eleitoral, se aproveitando de um recorte momentâneo, estava claro para qualquer entendedor de economia que estava tudo sob controle: estava em curso ali o funcionamento do superávit contraciclíco, que consiste na contenção de recursos em tempos de fartura para gasta-los quando as vacas estiverem magras - uma vez retomado o crescimento, como foi conseguido com êxito durante a mais grave crise econômica desde 1929, com um esforço razoável as contas voltariam ao lugar. Agora, estamos diante da previsão de um crescimento de mais de 4% e as contas públicas já estão redondinhas com o superávit primário de 4,3% garantido, emprego e renda crescem. Ponto para o Ministro da Fazenda Guido Mantega, que se fortalece com o enfraquecimento de Palocci e com os resultados conquistados.
P.S.: Para além dos problemas todos na articulação política, temos um problema grave no Congresso Nacional; a grave crise partidária e o clima obscurantista produzido pela oposição na última campanha presidencial deram em uma das piores composições da história do nosso Congresso, sobretudo, no que diz respeito à Câmara.
P.S. 2: Também não resta dúvida que o problema da inflação é uma grande ameaça ao Governo Dilma; e aqui eu não falo apenas das causas externas que ora se impõem, mas também da própria intensificação da tensão classista do momento presente; uma vez que os aumentos de emprego e renda salarial se colocam em trajetória ascendente, o capital tenta engolir os ganhos salariais reais com repasse nos preços - o que força mais reivindicações laborais na outra ponta. É basicamente sobre isso que eu me referia quando falava da dificuldade que o PT teria para não ser engolido pelas próprias mudanças (para melhor) que ele mesmo produziu.
Atualização de 26/05 às 12:48:O desemprego continua a cair. Agora, a taxa está em 6,4%. Viveremos um momento interessante quando a taxa passar dos 5%.
Ontem terminou o Revoluções no Sesc Pinheiros. As palestras de Bernard Stiegler,Michel Löwy e Slavoj Zizek foram realmente muito boas - em termos de conteúdo, a do primeiro foi a melhor, em termos de espetáculo, ninguém polemiza melhor do que o último hoje em dia. O seminário, em si, foi bem realizado e divertido, ainda assim, creio que que um ciclo de palestras que buscava ver a revolução por meio da política do sensível se perdeu um pouco em um frankfurtianismo extemporâneo; não gostei dos ecos de Adorno que ouvia aqui e acolá e acho que a filosofia contemporânea dá conta de uma série de problemáticas a respeito do sensível e da política - quando retoma Spinoza, vilipendiado por um inacreditável e onipresente EmirSader no desfecho do seminário -; será que já não era hora de pensarmos o sensível para além da consciência? Acho que, no fim das contas, só a fala do Stiegler me contemplou mesmo. Para além disso, depois de uma semana extenuante na PUC, foi uma boa diversão com os amigos, mas até agora não sei se eu devo rir ou chorar por conhecer metade das pessoas que estavam por lá. Esse nosso mundinho intelectual, tão familiar, tão pequeno...mas valeu pelo coquetel de encerramento, pelo menos no nosso mundinho existe refeição gratuita.
P.S.: A repressão violenta contra a Marcha da Maconha ontem - um ato de violência policial contra uma marcha perfeitamente legal, diga-se de passagem -, me fez lembrar de uma excelente piada de Zizek: Se há lugares onde a situação é séria, mas não é catastrófica, cá, a situação é catastrófica, mas não é séria.
Hoje foi o primeiro dia do seminário Revoluções: uma política do sensível, no Sesc Pinheiros. Tivemos uma abertura bastante mediana com Emir Sader e, depois, uma palestra interessante com Klemens Gruber (ao vivo) e Alexander Kluge (por vídeo conferência) - que se tornou divertidamente tragicômica pelos erros da tradução simultânea alemão-português e a falta de foco dos debatedores. Vladimir Safatle teve uma boa fala, embora eu considero que sua perspectiva decididamente hegeliana de estética não consiga captar o que interessa quando tratamos da função revolucionária da arte - o idealismo coloca o sensível a camisa de força da razão, na qual a consciência dita as regras. Infelizmente, perdi a palestra da professora Marilena Chauí. Amanhã, teremos a cereja do bolo do seminário: a presença às 17 horas do filósofo esloveno Slavoj Zizek (foto), um dos maiores pensantes da atualidade em relação a quem eu discordo de inúmeros pontos - talvez por considerar que o pós-estruturalismo já resolveu vários problemas ligados à ausência de uma teoria da subjetividade satisfatória em Marx -, mas admiro em tantos outros - a tenacidade no debate e a denúncia permanente das falácias da democracia representativa contemporânea.
A Casa Civil, desde a chegada de Lula ao poder, voltou a ter centralidade que não tinha há tempos, passando a ser o centro nevrálgico da articulação do governo - em todos os sentidos, seja com os ministérios ou com o Congresso Nacional. Embora seu ocupante tenha status de ministro, aquele órgão, não custa lembrar, é parte da estrutura da própria Presidência da República. Uma vez colocado o chefe da Casa Civil em tal posição de relevo - somado ao fato do PT governar sob um modelo de coalizão profundamente heterogêneo e complexo -, o seu chefe ocupa uma posição de destaque junto ao debate público - como estiveram em certo momento José Dirceu, a atual Presidenta e, agora, Antônio Palocci. Portanto, os atuais escândalos envolvendo seu ocupante, ora denunciado pela mídia em virtude de um suposto enriquecimento ilícito, não são pouca coisa.
O ex-prefeito de Ribeirão Preto, Antônio Palocci, aliás, foi uma surpresa enorme no Governo Dilma, ainda mais por sua queda, anos atrás, no Ministério da Fazenda com o escândalo Francenildo - onde, pelo que foi provado, sabia da quebra de sigilo de um caseiro que o denunciava enquanto ele era bombardeado por denúncias. Palocci, não resta dúvida, é uma figura controversa; ele galgou inúmeras posições na hierarquia petista ao ser um dos principais articuladores da eleição de Lula em 2002 e, depois, arcando com o ônus de substituir o falecido prefeito de Santo André, Celso Daniel, que era visto como o natural ministro da fazenda de um governo petista. Suas posições, no entanto, sempre confundiram e desagradaram a base petista, muito aquém de uma social-democratização do Estado, surgiam políticas de austeridade sem a devida preocupação com a alavancagem do crescimento econômico.
Ninguém, dentre os ocupantes de posições de destaque dos governos petistas, esteve sob tanto fogo dos próprios correligionários quanto ele; a imagem de Palocci sempre foi incômoda aos petistas na medida em que ela se configurava quase como a de um Tony Blair dos trópicos: um arauto da mesma política que seus adversários só que com a devida face humana; mas se na terra da rainha, Blair criou um novo trabalhismo com base em uma agenda social-liberal, cá no Brasil a vida de Palocci, dentro de um estrutura tão complexa quanto a do PT, sempre passou longe de ser fácil; se FHC sempre vendeu o seu peixe de que as opções que decidiu pôr em prática nos anos 90 eram o único caminho possível, Palocci nunca discordou muito disso, sua proposta era apenas de fazer isso mais bem feito - o que não difere muito da posição em que Blair estava em relação aos seus adversários conservadores e ao thatcherismo.
Ainda que não seja um grande orador ou um político simpático, a influência paloccista dentro do Governo cresce a olhos vistos, ainda mais sob a chefia de uma pessoa com formação essencialmente administrativa como Dilma Rousseff, ressentida de modo insanável de vocação política. Se Lula, um político nato, dependia da capacidade gerencial dos seus chefes da Casa Civil, qualquer que seja o ocupante de tal cargo no atual governo manterá relação inversa com a Presidenta. Portanto, é provável que Palocci tenha mais poder hoje do que Dirceu ou a própria Dilma jamais tiveram son Lula.
Também não nos parece ser coincidência que a ascensão de Rui Falcão à presidência do PT tenha antecedido em poucos dias tais denúncias; aqui, o recado é claro: incomoda ao partido a influência de Palocci, seja pela forma como ele exerce sua liderança - construída nitidamente por cima - ou pelo que seu projeto significa.Procuramos nos manter céticos sob os demais impactos da presidência de Falcão, mas é fato que ela passa pela reconstrução do campo majoritário petista - cindido em vários pedaços e unido pela figura de Lula - para que o partido tenha coesão suficiente para pautar Dilma e costurar alianças, isso muda a correlação de forças dentro do Governo e fulmina as (grandes) pretensões de Palocci sim - embora não se saiba se com a força suficiente.
Certamente, a chegada de Falcão não implica na (necessária) democratização que o PT precisa para arcar com as consequências das mudanças que ele próprio produziu, mas isso não quer dizer que tenha lá (alguns poucos) efeitos positivos, dentre eles, evitar que o Governo Dilma acabe navegando num mar incerto e seja levado pelo vento. Já alertávamos há meses para os problemas que Palocci, apesar das forças de bastidores, teria tanto para exercer seu cargo quanto para executar seu projeto; agora, o que está em jogo é tanto menos a veracidade das informações veiculadas, mas os rumos que o Governo Dilma irá tomar.
Dois temas polêmicos ligados à questão ambiental estão em pauta no debate público: Um é o caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte eo outro a aprovação do Novo Código Florestal. Em muitos momentos, o debate sobre questões ambientais me irrita porque ele não é problematizado, tudo é colocado em termos terrivelmente simplórios as causas - as relações econômicas determinantes - são somadas como necessárias e no lugar de questionamentos temos apenas interrogações: Você é contra ou a favor? Você acha isso legal ou não? Quando não, temos a moralização do debate como forma de desqualificação do outro lado. Não, isso não é tão simples a ponto de poder ser resolvido com um reles sim ou não e também não é questão moral, mas sim de cálculo.
Belo Monte, por exemplo, serviria para atender ao agigantamento (em alta velocidade) da demanda energética brasileira e sua forma de produção energética é sim renovável e pouco arriscada - diferentemente de usinas termoelétricas e usinas nucleares. Muitos dos críticos de Belo Monte não se ativeram ou não se atém, seja lá por qual motivo for, à questão das implicações elementares do desenvolvimento do Capitalismo no nosso país nos últimos anos e que, desse modo, a construção de usinas para a produção de energia seria inevitável. Se queremos tanto o Capitalismo como não podemos querer Belo Monte? E se não queremos Belo Monte, mas queremos o Capitalismo (ao menos, por ora) quais seriam as alternativas para essa responder à essa demanda nesse espaço de tempo?
Não, eu não quero debater Belo Monte, mas sim a problemática do modelo de produção e consumo que a transforma, no mínimo, em uma possibilidade crível de implementação. A chave aqui está em questionar o Capitalismo, algo que a esquerda marxista ainda faz, embora, não raro, ela tropece na crítica, pois confunde uma crítica de uma natureza idealizada com os dados reais de esgotamento de bens que até o século 19º eram tidos por inesgotáveis - e essa constatação trazida pela ecologia altera completamente o panorama da eterna discussão sobre teoria do valor na economia.
Sobre o Novo Código Florestal, nos deparamos com um projeto que, já em um primeiro momento, afrouxa as regras de fiscalização ambiental e favorece ao Agronegócio e não leva em devida consideração o custo dos impactos ambientais no médio e longo prazo. Sim, o projeto é ruim, tanto que os piores setores do Congresso Nacional o apóiam intensamente. Depois de inúmeras discussões a esse respeito, há pouco dias vimos um duro confronto no Congresso, quando o Governo pressionou o relator, o deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP) a emendar o projeto para restringir concessões à agricultura e ele, por sua vez, descumpriu o que foi acordado, produzindo uma celeuma inacreditável que acabou, graças a uma bem sucedida manobra conjunta do PSOL com a liderança do PT e do Governo na Câmara, implodindo a votação.
Ponto para os deputados psolistas e para o líder do PT na Câmara, o deputado Paulo Teixeira, e uma tremenda bola fora de Aldo Rebelo que, ao adotar um irresponsável discurso ultra-nacionalista - em que pese ser filiado a um partido comunista - que está o colocando à direita da extrema-direita do Congresso. Ainda assim, seria preciso ser muito ingênuo para achar que a resolução desse problema passa por um Código Florestal bom. Leis são discursos ficcionais que visam a orientar vontades, não fosse isso e não existiriam "leis que não pegam". É necessário, portanto, construir toda uma organização de política públicas viável para que uma vez exista legislação ambiental, ela tenha eficácia; isso aqui é questão de política de produção agrária, coisa que nem preciso dizer aos senhores que, a julgar pela idade da nossa Lei de Terras e pela pequena demora em realizar a reforma agrária, trata-se de um dos significativos nós górdios do nosso país - antes, apenas sócio-econômico, agora ambiental também.
Enquanto nos restringirmos a debater apenas efeitos ambientais da problemática econômica-ecológica - que antes de mais nada é uma problemática ética -, as questões postas continuarão a ser apenas meras interrogações pueris e seguiremos perseguindo o nosso próprio rabo: enquanto não obtivermos êxito estaremos a correr em círculos, mas se acertarmos, acabaremos por morder a nós mesmos. Mas estamos ainda muito longe de sair do círculo vicioso - e mais longe ainda de sairmos dele sem cairmos em um novo.
Acordo depois de uma (justa) tarde de descanso e me deparo com uma notícia bisonha: um grupo de moradores de Higienópolis está protestando contra a construção de uma estação de metrô no bairro. A alegação passa por argumentos confusos que vão desde a defesa de uma estação seja construída mais para o lado até pela admissão clara e inequívoca de um discurso elitista: "estações do metrô atraem gente 'diferenciada' como moradores de rua etc" - como colocou um morador. Ainda que o movimento, e é bom que isso fique claro, não fale em nome dos moradores do bairro (embora se ponha nessa posição, o que é revelador sobre sua posição no debate público), movimentos como esse ilustram um fenômeno bastante recorrente na metrópole paulistana e, por tabela, em grande parte das metrópoles brasileiras, haja vista que o modelo de urbanização brasileiro atual é inspirado no modelo paulistano dos tempos da ditadura - uma das consequências possíveis para um processo de urbanização que obedecia, desde o primeiro momento, uma lógica de não construção de raízes com o lugar e pela exploração bruta do meio pelo colonizador português, como nos lembra o sempre necessário Sérgio Buarque de Hollanda em seu " O Semeador e o Ladrilhador". A organização atomista da metrópole bandeirante, onde um núcleo duro de "civilização" é circundado por um anel de pobreza e miséria - ligados por uma estrutura de transporte público insuficiente - e o automóvel reina como necessidade para milhões de cidadãos - até como condição para a própria cidadania substancial, na medida em que não há espaço para pedestres e ciclistas - serviu de inspiração para as nossas principais metrópoles, embora, por razões óbvias, o modelo não pôde ser reproduzido em sua totalidade - pela diferença óbvia da máquina capitalista bandeirante em relação a qualquer uma das outras partes do Brasil. De maneira transversal, o fenômeno ainda se trata de um avanço da lógica da imunização, tão presente nos tempos bicudos de hoje, cuja face urbanística visível é um movimento simultâneo de encastelamento das classes abastadas em condomínios cada vez mais fechados e de isolamento da Favela - o Outro como pestilento em relação ao qual precisamos nos proteger isolando-o, algo que não é nada novo como nos lembra um tal de Foucault, mas que toma uma dimensão incrivelmente preocupante na nossa época e, sobretudo, no nosso meio. Em suma, peculiaridades culturais brasileiras e paulistanas se entrecruzam com a radicalização do fenômeno da imunização na nossa época, resultando num fenômeno curioso no qual o próprio equilíbrio sistêmico da cidade se torna mero detalhe para certos grupos - isso, enquanto causa de certo recalque existente, torna-se, ele mesmo causa de acirramento do processo. Mas não poderia o morador, em seu momento fascista, ter sido mais feliz: sim, estações de metrô atraem gente diferenciada mesmo - em seu gozo perverso, ele não percebe, no entanto, qual o problema do Mesmo.
Atualização de 13/05 às 19:58: Eu, honestamente, não tenho ideia do que houve com este post. Até ontem à noite, ele tinha seis comentários que simplesmente desapareceram e houve relatos que ele ficou fora do ar por algum tempo. [aliás, este post foi publicado dia 11/05, ele sumiu mesmo e foi republicado automaticamente (?!), ficarei atento, mas é bisonho que isso tenha acontecido]
Desde a mini-reforma do Judiciário, com a longa Emenda Constitucional n. 45de 2004, o STF ganhou, não à toa, uma centralidade nunca antes vista no debate público nacional - e isso não é à toa, na prática, os últimos marcam um crescimento considerável daquela corte, seja por conta daquela referida emenda - que aumento seus poderes - ou porque o Congresso Nacional está, a cada dia que passa, mais paralisado. Existem zonas cegas mesmo dentro do (sofisticado) sistema de atribuição de competências do Poder Soberano, onde ocupa quem for mais hábil - e o Judiciário e o Ministério Público, diante da inoperância aparentemente crônica dos organismos de Estado que possuem a primazia da representação política para a produção de normas (o Legislativo) ou para a Administração da Coisa Pública (o Executivo, ainda que esse último tenha perdido espaço apenas no plano municipal, o mesmo não se confirmando nos níveis estadual e federal). Seja como for, sob os auspícios do cândido, benévolo e salvacionista ativismo judicial, a Democracia corre riscos graves - principalmente o de ser engolida por uma judicialização, reduzindo-se a uma mera tecnocracia togada. Isso pode passar desapercebido, ainda mais nessa semana em que - felizmente, mas com certo atraso - o STF decidiu pelo reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas, o que deixa setores da esquerda simplesmente eufóricos com um Judiciário "do bem" tomando decisões "impossíveis de serem levadas a cabo no Legislativo". Mesmo que resultados benéficos colaterais como esse possam sair do Judiciário - sobretudo em relação a direitos de minorias -, é bom não esquecer que esse reconhecimento nada mais foi do que a afirmação da igualdade formal - já constante nas primeiras constituições republicanas do século 18º e 19º - e que seus méritos decorrem muito mais de décadas de ativismo gay nas ruas do que de "ativismo judicial" nos corredores do Poder. Nem vou citar como advertência o caso Battisti, como fiz no último post, mas um caso um pouco pior: a anuência do STF com a autoanistia que o Estado brasileiro sistematicamente reitera ao não punir os torturadores do regime militar. Isso nos valeu, não à toa, uma condenação na Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA. A explicação para tanto é simples, a Suprema Corte brasileira simplesmente anuiu com uma doutrina contrária ao Estado de Direito: Se desde o contratualismo de Hobbes, sob essa ou aquela matiz, sabemos que a Constituição do Estado não é o ato unilateral da vontade do soberano (nem uma mera avença), mas sim um contrato, não existe possibilidade lógica, dentro dessa racionalidade, de auto-anistia de uma das partes em virtude de seu desrespeito a uma das cláusulas, ainda mais a principal delas. Longe deste humilde redator partilhar de qualquer credo em relação a uma Constituição transcendental, prefiro mais o outro filósofo maldito, o Spinoza, e sua perspectiva de Constituição enquanto ficção destinada a organizar vontades para garantir a vida dentro de um plano de imanência - uma astúcia antes de mais nada. Mas dentro dessa visão, não tenho como não ser democrata, não um crédulo na democracia como fim em si mesmo, mas alguém que vê a democracia como um Ovo - em suma, um ente que serve como meio para que possa eclodir uma vida nova, embora sempre esteja sob o risco de acabar estéril (e podre) ou mesmo terminar sua existência na barriga de algum predador vulgar. Hoje, o avanço do STF, com todas as suas boas intenções, é um bom fato para se preocupar.
"Não se separa por um parágrafo o que a vida uniu pelo afeto"
(Ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo, em seu voto)
Supreendeu-me em muito a decisão de quinta do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, em reconhecer a união estável entre casais homoafetivos. Como pontua Maria Berenice Dias, agora, tais casais não poderão mais ter negados os direitos concernentes à vida conjugal, o que sempre representou uma evidente ofensa ao princípio constitucional da igualdade - o que tem desde de desdobramentos patrimoniais (como no caso da herança) até os mais elementares efeitos humanitários: querem mais desumanidade do que proibir um cônjuge em acompanhar o outro, em seu leito de morte, só porque ele não era juridicamente reconhecido como tal? Pois é, tudo isso acabou, o cônjuge homossexual está em pé de igualdade com os cônjuges heterossexuais. Trata-se de uma vitória expressiva para os setores libertários da nossa sociedade - ainda mais depois do clima tétrico das últimas eleições, sobretudo quanto aos direitos civis - e, claro, uma medida inesperada - seja pela necessidade ou pela coragem - por parte desse Supremo cuja atuação em casos como o de Cesare Battisti, por exemplo, é nada menos do que bisonha. No entanto, é preciso ponderar que isso não foi uma outorga daquela corte, muito além de alguns bons votos de ministros libertários como Ayres Britto, o voto de conservadores como um Peluso, por exemplo, ilustra a efetividade das articulações que o Movimento Gay tem feito há anos. O resultado desse julgamento é histórico e representa um passo enorme na luta pela emancipação humana; o reconhecimento de tais direitos põe fim a uma sujeição absurda, fundada em certa perspectiva de moral, em relação à qual um número incalculável de casais se encontrava submetido. É inegável que não serão as instituições do Estado que garantirão uma efetiva liberdade, mas também não podemos desprezar a possibilidade de romper por dentrodelas com uma série de sujeições, neutralizando, assim, mecanismos de opressão - e isso vale para a própria desconstrução do Estado, o que demanda que as relações socioeconômicas que o sustentam sejam desligadas e não de um decreto. Trata-se de uma luta complexa.
P.S.: Claro que resta a briga pela aprovação do Casamento Gay propriamente dito, mas aqui um passo enormíssimo foi dado.
Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que há algo que não se encaixa nas versões da morte de Osama Bin Laden. De todo modo, o que importa é o ar farsesco do discurso do presidente americano BarackObama sobre um episódio cujas cenas podem até ser incertas e duvidosas, mas o mesmo não se pode dizer sobre os excessos narrativos, uma clara hollywoodianização dos fatos com fins eleitorais. Dias antes, o assassinato do filho e de três netos do ditador líbio Muamar Kadafi, em mais um bombardeio da Otan sobre aquele país, não ganhou a devida cobertura.
Ambas as ações - perfeitamente conectadas quando se observa o desenvolver do jogo geopolítico no Mundo Árabe - são atos nos quais a superpotência americana, em sua decadência, agoniza desrespeitando as conquistas mais elementares do Iluminismo. Sim, mesmo os nazistas foram levados a julgamento ao final de Segunda Guerra Mundial e o assassinato de Bin Laden, em território estrangeiro e a mando do líder americano sem qualquer julgamento,foi um crime inequívoco, tanto quanto os que ele cometeu - muitos dos quais, aliás, graças ao treinamento e ao financiamento americano nos tempos da Guerra Fria quando eles eram aliados.
No caso líbio, antes mesmo do assassinato brutal do filho e dos netos (todos crianças) de Kadafi, é bom lembrar que aquela própria guerra é, como nos lembra o sempre atento Tsavkko, uma ofensa à ordem internacional, na medida em que a resolução n. 1973 da ONU voltava-se para a criação de uma zona de exclusão aérea sobre o território líbio e a proibição de entrada de armas no país - ela jamais foi uma autorização para bombardeios massivos sobre a população civil tampouco disse respeito ao armamento dos revoltosos.
Estamos diante de um retorno a Schmittna medida em que, malandramente, o contrato foi suspenso e o soberano achou a desculpa que precisava para voltar a mandar e desmandar. A tentativa de construção de uma ordem internacional pacífica e cada vez mais integrada, mesmo com todos os seus percalços e falhas evidentes, neutralizou uma marcha rumo ao abismo que se desenhava claramente no século 20º. Uma vez implodido o poderoso Estado soviético e agonizante a tentativa de pax americana, os EUA se lançaram numa jornada tirânica que desequilibrou a geopolítica e a economia mundial.
O colapso das ditaduras da Tunísia e do Egito e o processo revolucionário em ambos os países neste ano esvaziaram, bruscamente, a relação de retroalimentação entre o imperialismo ocidental - e suas pequenas tiranias satélites - e os grupos terroristas que serviam de álibi para aquela forma de dominação - e vice-versa, pois esses próprios grupos também sempre se alimentaram das circunstâncias causadas por aquela forma de dominação -; de repente, surgiu uma multidão que já não mais se sujeitava ao discurso do déspota e os EUA viu-se sem chão - e o mesmo se pode dizer da própria e sempre superestimada Al-Qaeda.
Produzir uma guerra na Líbia foi a saída malandramente encontrada para que tudo mude sem nada mudar; derrubar uma ditadura agora amiga, mas pouco confiável serviu para construir um posto avançado para manter tropas capazes de suprimir desdobramentos mais libertários que os processos tunisianos e egípcios possam ter. O assassinato de Bin Laden, nas condições ainda pouco claras e cercada pela nuvem pirotécnica obamista, trata-se tanto mais de um golpe de marketing eleitoral contra um adversário praticamente irrelevante para as pretensões americanas - mas não para as pretensões eleitorais democratas.
Obama que poderia representar o reestabelecimento de uma ordem contratual na comunidade internacional - que é tirânica também à sua maneira, mas não se iguala ao que vemos hoje -, simplesmente jogou pela janela as oportunidades que teve, uma consequência clara da chegada ao poder de um político jovem, sem o devido controle da sua máquina partidária e que, por sua vez, parecer desconhecer a verdadeira natureza dos problemas que deve responder. Sua reeleição, hoje, está praticamente garantida, uma vez que a retórica barulhenta e oca de Sarah Palin e do Tea Party foi abafada pelo acaso -o atentado contra a congressista democrata Gabrielle Giffords, alvo do mapa de Palin e vítima de um franco-atirador lunático, contagiado pela radicalização política local - e pelos efeitos da encenação da morte do vilão-mór - o que surtiu efeito junto ao eleitorado que ele precisa disputar.
No entanto, a governabilidade do país está cada vez mais ameaçada, seja pela maneira como a estratégia imperial americana tropeça nas próprias pernas ou pela forma como as causas da crise econômica não são enfrentadas - e ambos os problemas, curiosamente, se entrelaçam, a indústria parasitária da guerra está junto dos problemas econômicos do país, embora ambos aludam para um modelo de produção e consumo insustentáveis. A questão é que os EUA podem mesmo implodir levando o mundo junto ou não.
O vídeo acima pode até ser auto-explicativo, mas vale a pena refletir um pouco mais sobre ele. Tratava-se de um happening, no qual o artista aparecia como um terrorista islâmico que subia em dois orelhões - logo ali na frente do Conjunto Nacional, na Paulista - e disparava seu fuzil de brinquedo, do qual saía uma flor. Eis que a polícia militar bandeirante surge e resolve participar da intervenção, derrubando-o com um soco para depois dar-lhe bons pontapés. Foi a partir daí que meus amigos Lucas e Marcela resolveram filmar o que se passava, o que deu origem a este post do blog do nosso coletivo no Direito puquiano, o Disparada - lá, uma pequena tentativa nossa, e de mais alguns outros esquizos, de romper com certa polaridade que perpetua a mesmice da política estudantil no nosso ambiente, operando por meio de pequenos agenciamentos rizomáticos, por dentro do Direito, mas tanto por fora quanto por dentro dos muros da Academia.
A situação em questão é toda absurda, mas o artista - que seguiu adiante, discursou e continuou a intervenção, sendo preso em seguida para sair de cena até o presente momento - cumpriu seu papel; happenings são intervenções artísticas em lugares públicos, imprevisíveis e que buscam afetar as pessoas presentes naquele meio. Trata-se de uma espécie de intervenção artística primorosa, pois rompe de maneira radical a cisão capciosa entre plateia e palco, esvaziando o discurso da representação por dentro dele, rompendo, também, com a cortina de fumaça (não à toa) estabelecida entre o Drama e a Política - ; não é por acaso que falamos e vivemos sobre uma democracia dita "representativa", a noção de representação está no Drama e dele foi vertida para a Política como tantas outras coisas, o Teatro e a Praça Pública cumprem funções parecidas e o Palco inacessível onde se representa está para o Drama como o Estado está para a Política.
O fato é que do mesmo modo que a inacessibilidade do Palco não é um limite real - fictício, ou melhor, deslocado -, o mesmo pode se dizer da representação política no palácio de cristal do Estado. Vem o happening e tudo é embaralhado e esquizofrenizado: Coloca-se fim à divisão entre atores e plateia, à hierarquização própria da representação e, nesses termos, também é desfeita a divisão entre Drama e Política. Portanto, quando o Governo Kassab resolve proibir manifestações artísticas na Avenida Paulista - mesmo sem fundamento legal ou constitucional, por meio de sua exótica e preocupante Operação Delegada-, ele pode estar cometendo um ato absurdo, mas não é, em absoluto, incoerente com o projeto que ele representa. A questão é se ele, com isso, é capaz de neutralizar os efeitos de intervenções como essa, o que eu duvido: uma performance dessas produz, de um modo ou de outro, rizomas, desdobramentos que escapam à captura do tirano; um happening envolve as pessoas e se desdobra por suas vidas, mesmo que seja reprimido, torna-se um vídeo, um post, outro post, inúmeras tuitadas - o pesadelo do sistema em pessoa, o fluxo indecodificável, algo que seja permitido ou seja reprimido irá se desdobrar e desdobrar a própria Vida sem Saída.
*Meu amigo André Paschoa, em fina ironia, deu de letra à la Agamben: Não existe Estado de SP, mas Estado de (S)SP.
** Não sabemos para onde foi levado ou o que aconteceu com o artista em questão depois que ele foi levado pelo camburão -- não lute contra a tirania do passado, ela se foi e jamais voltará, olhe para o aqui-agora.
Ovídeo acimatrata-se do pronunciamento da Presidenta Dilma Rousseff para o (seu primeiro) Primeiro de Maio, veiculado em rede nacional na última sexta-feira. Uma fala precisa tecnicamente e sóbria, como lhe é peculiar. O discurso poderia ser resumido em duas palavras: Desenvolvimento e Democracia - de onde ela parte para elencar quatro desafios-chave; qualificar mão de obra, resolver o nó górdio da infraestrutura, crescer de forma "harmônica e sustentável" (isto é, sem inflação) e erradicar a miséria. Um discurso bem articulado, não resta dúvida, que expôs bem o que é o Governo Dilma, seja por sua forma - a precisão técnica e o cuidado metódico na identificação dos grandes problemas, a propositividade etc - ou por seu conteúdo - tanto pelo seu lado bom, a concepção de que a vida de todos deve ser garantir e é sim possível construir uma coexistência social para melhor, quanto pelo lado ruim, a crença no desenvolvimentismo, na incessante "marcha harmônica do Brasil para o futuro".
Dilma alude a um progressismo de esquerda, que elogia o Trabalho e homenageia os trabalhadores, mas não deixa de falar na sociedade por suas categorias de renda no lugar de classes sociais - em parte por didatismo, em parte por falta de clareza no raciocínio; a perspectiva da necessidade de qualificação educacional para o trabalho não é de todo desarrazoada, a história ensina que é preciso ter ganhos de produtividade ao lado do aumento da massa salarial e do nível de emprego para que a economia não superaqueça e não abra flancos para os teóricos do desemprego (que usam o superaquecimento como álibi para a defesa de um exército de reserva maior, isto é, mais desemprego como é do interesse de quem eles estão a soldo), mas é preciso ir muito além, a educação precisa conceber um...sentido histórico ao processo educacional...é preciso educar as pessoas para que elas sejam muito mais do que trabalhadores melhores, senão nunca vamos sair da armadilha educacional na qual estamos presos e que esvazia o potencial transformador da nossa democracia.
A Inflação, não resta dúvida, trata-se do grande problema que se impõe no tempo presente. A tendência de aumento de preços pode ser uma das inerências da economia capitalista, mas o tamanho dessa tendência é variável conforme determinadas situações e estamos expostos a um pico nesse momento, seja por causas externas - a saber, o aumento do preço do petróleo fruto da ofensiva dos especuladores, que se usam da instabilidade política no mundo árabe para valorizar seu produto e, também, a irresponsável emissão de moeda feita pelo Governo Obama - ou, por problemas internos que vão além das decorrências naturais do boom de crescimento econômico e dizem respeito, atentem para isso, a pontos que passam, misteriosamente desapercebidos no debate econômico como, por exemplo, os velhos mecanismos de correção monetária que geram suas pequenas bolas de neve uma vez provocados - a inflação sobe, vem a correção que alimenta um novo aumento e assim por diante -, os velhos problemas infraestruturais do Brasil - um modelo extremamente dependente de estradas de rodagem - e um, em particular, que parece bastante incômodo : o grau de concentração de mercado que existe na nossa economia.
Estamos sim mais expostos a picos inflacionários que boa parte das economias parecidas com a nossa, portanto a taxa de juros de curto prazo (a Selic) - o índice que remunera as operações financeiras cujos pagamentos são realizados a prazo, tais como empréstimos e compra a prazo - torna-se um instrumento fundamental para o controle de preços no curto prazo e, pelas circunstâncias, acaba alcançando um tamanho superior à média mundial - pois funciona como um freio em relação ao consumo e às expectativas de consumo, aumentando estoques e fazendo com que os preços desacelerem, como a necessidade disso é grande, logo, a Selic torna-se maior que as demais taxas pelo mundo mesmo. Isso, frise-se, não deixa de ter um custo econômico, posto que o Estado remunera os títulos da dívida de acordo com o valor da taxa de juros. Mas juros são uma medida de curto prazo que temos insistido há muito tempo por falta de pró-atividade na regulação da economia - menos por esse governo e o anterior, muito mais por todos os outros e pelo legado da ditadura militar e seu sistema industrial oligopolizado.
É claro que o problema é muito maior como nos lembra Marx. Como disse, a tendência inflacionária é problema crônico do Capitalismo, ela só pode ser controlada, mas não eliminada definitivamente, a importância de enfrentar o problema aqui e no agora é que o processo inflacionário incide sobre majoritariamente sobre a renda salarial por sua natureza peculiar - e só relembrando os velhos Deleuze e Guattari, as rendas oriundas do Trabalho e do Capital podem ser reduzidas à axiomática da moeda, mas, na verdade, só podem ser medidas por grandezas diferentes. Tem mais, a simples existência de uma taxa de juros alude um problema central do sistema capitalismo: a dívida infinita decorrente da impossibilidade dos trabalhadores realizarem o valor; isto é, as próprias pessoas que produziram os bens não têm dinheiro para compra-los, pois sua produção é explorada (a massa salarial é inferior ao valor da produção, a renda do capital acaba economizada e não serve ao consumo de todos bens produzidos que restam por ser comprados no mercado), logo, as operações de longo prazo tornam-se uma necessidade e não fruto da escolha das pessoas.
Nesse sentido, as pessoas permanecem trabalhando - na quantidade e nas condições estipuladas por quem detém os meios de produção - porque estão "endividadas" permanentemente, o que é curioso, pois se elas são alijadas da riqueza que produzem, depois, é preciso dar-lhes condições para que elas, inconscientemente, realizem aquele valor, mas a riqueza social lhes é retornada na forma de uma dívida sem fim - algo que não nasce no Capitalismo, mas lhe é anterior como bem aponta Nietzsche. Nesse sentido, a própria língua portuguesa é particularmente bem-sucedida, pois graças a herança galega - xuros -, ela refuta o uso do radical latino interes -como na maior parte das principais línguas europeias, exceto o russo e o alemão - e remete - como pontua o economista Eduardo Gianetti- a um tipo de dívida perpétua que o soberano pagava a um particular na Galícia da Idade Média. Claro, pela perspectiva econômica de Gianetti - diametralmente oposta a nossa -, o enfoque dado é outro, mas o que nos interessa aqui é questão filológica mesmo, a enorme felicidade que os portugueses - que em seu jovem reino criaram o capitalismo financeiro e mercantil já no século 13º - tiveram em relacionar o que seria essa espécie de remuneração com uma noção de dívida infinita - dessa vez, do particular para o sistema, infinitamente, o que não resta dúvida, é perfeitamente compatível com a realidade do Capitalismo.
Juros menores, menor endividamento e mais liberdade - ou menos sujeição, para ser mais realista. Assim mesmo, esquematicamente. Mas se por outro lado os preços aumentam violentamente, a liberdade se esvai por outro buraco, pela perda do poder de compra salarial. E a tendência de aumento dos preços bem como a necessidade da dívida estarão ali como realidade imutável do Capitalismo. O ganho de produtividade da mão de obra por meio de capacitação (técnica), a melhoria de rodovias e estradas de ferro e a diluição de oligopólios, em uma perspectiva tática, controlam a doença porque tornam sistematicamente sustentáveis os movimentos de aumento do nível de emprego e da renda oriunda do Trabalho - fatores que não exaurem o Capitalismo, mas enfraquecem a sujeição que ele produz e fertilizam o terreno para que a transformação seja feita (e não se faça, como creem alguns).
A Presidenta Dilma acerta em parte (relevante) do diagnóstico, mas não tem em vista escapar do Capitalismo, mas sim dar-lhe face humana ou, no máximo, supera-lo por meio de um auto-esgotamento causado pelo desenvolvimento intensivo dos meios de produção - pelo progresso -, o que me parece distante e equívoco. Não, quando defendi meu voto aqui para a Dilma, não o fiz por auto-engano como parte da esquerda anti-capitalista o fez, tampouco, deixo de apoiar o Governo em exercício por sua inequívoca ausência de ímpeto revolucionário, meu ponto é muito mais simples do que isso: as políticas petistas bem ou mal garantem uma expansão dos instrumentos de garantia da vida (em quantidade e intensidade), apesar dos seus equívocos todos, mesmo que no limite ela seja insuficiente para garantir uma verdadeira emancipação humana, seus meios - e suas próprias colateralidades - também não impedem que essa libertação seja produzida, é preciso força-lo a não se desviar, mas é preciso também arregaçar as nossas mangas para fazer as coisas acontecerem aqui-agora, aproveitando-se dessas circunstâncias históricas.