sexta-feira, 22 de julho de 2011

A Crise no Império de Murdoch e a Mídia Brasileira

O magnata australiano Rupert Murdoch construiu um império de mídia ao redor do mundo nas últimas décadas. Jornais, canais de TV, tudo o que você puder imaginar. Naturalmente, sua influência política se fazia imensa: Se nas democracias representativas, cada vez mais previsíveis e consensuais, políticos têm prazo para exercerem o mando - e os desmandos também -, os barões de mídia, por outro lado, são eternos - parafraseando aqui o indispensável Oscar Wilde -, logo, o beija-mão dos primeiros em prol dos segundos é de lei - só escapando à regra aqueles raros nomes e forças que ainda ousam escapar ao óbvio da encenação. O mítico jornalista Robert Fisk, inclusive, deu seu testemunho pessoal sobre como funciona a peculiar relação de poder no mundo de Murdoch.

No entanto, o jogo arriscado de Murdoch parece ter encontrado o seu limite: o tabloide britânico News of the World, com quase duzentos anos de existência e de propriedade de seu conglomerado empresarial-midiático, se viu envolvido numa trama bizarra, na qual telefones de milhares de pessoas foram grampeados - dentre eles, autoridades, celebridades e até pessoas comuns vítimas de crimes. O bombardeio a Murdoch e ao seu grupo  começou com as denúncias, ano passado, do jornalista Sean Hoare sobre as práticas do tabloide e do envolvimento de Andy Coulson - ex-assessor de imprensa do primeiro-ministro britânico David Cameron e diretor do News à época -, até que explodiu este ano, há poucas semanas, com novas denúncias, dessa vez de um detetive particular que prestou seus serviços para o jornal.

O que mais chocou o público britânico foi o fato do celular de uma menina de 13 anos, desaparecida e já morta, ter sido grampeado e sua caixa postal ter tido mensagens apagadas para que as mais antigas pudessem ser escutadas, o que  deu esperanças de que ela estivesse viva à família. O Guardian divulgou impiedosamente a trama, mas algo pior aconteceu em seguida: na medida em que mais e mais indícios do caso apontavam para a participação pouco digna de membros do Partido Conservador, ora no governo, e se aproximaram perigosamente do gabinete do premiê David Cameron, o denunciante Hoare apareceu morto. Para além das tragédias pessoais e o desrespeito aos direitos individuais, a trama tem uma dimensão política inquestionável e sua amplitude vai para muito além da ilha de Shakespeare. 

Murdoch e seus principais cabeças foram chamados a depor no Parlamento. David Cameron, idem, e ainda precisou se retratar, mas acabou triturado pelos trabalhistas naquilo que pode ser o início do seu processo de fritura. Algo impensável no Brasil, onde nossos onipotentes barões de mídia, diante de qualquer crítica, colocam-se imediatamente como vítimas de alguma conspiração contra a liberdade de imprensa - ao passo que movimentam seus lacaios habituais nos bastidores da República, para terem a devida cobertura oficial; tais lacaios e qualquer outra autoridade que esteja junto deles é imediatamente poupada. E isso não é, de forma alguma, uma prova de como são superiores as instituições britânicas em relação às brasileiras: Murdoch exerceu seu mando na terra da rainha da mesma forma que as famílias proprietárias da mídia nacional fazem no Brasil - e a promiscuidade é a mesma.

A diferença entre o caso britânico e o Brasil é que as forças políticas e sociais organizadas resolveram, finalmente, enfrentar a situação. Sim, o Estado britânico dispõe de instituições que facilitam isso, mas sem a atuação corajosa do Guardian - e da imprensa séria do Reino Unido - bem como dos atuais líderes do Partido Trabalhista, as coisas poderiam ficar por isso mesmo. Como ficam por isso mesmo no Brasil. Por exemplo, sobre o caso Palocci/Caseiro Francenildo, é sabido - pelo depoimento do próprio diretor da Revista Época - que as informações obtidas por meio da quebra do sigilo do caseiro, protagonista das denúncias contra o então ministro da fazenda, foram publicadas devido a um acordo direto entre o próprio Palocci e os Irmãos Marinho, os principais acionistas das Organizações Globo, proprietária da Época. 

Sobre o passado nebuloso de Palocci, então questionado pelas denúncias de Francenildo, pouco se investigou, mas a retaliação político-midiática contra o caseiro ocorreu de forma quase automática; o gesto impensado de Palocci, apesar do respaldo todo, lhe derrubou do cargo, mas isso se deu de uma forma tão singela que ele ainda teve forças para retornar à Casa Civil de onde foi nova e felizmente defenestrado este ano. Se tivesse se fingido de morto em vez de quebrar o sigilo do caseiro, talvez Palocci jamais tivesse caído da Fazenda. As Organizações Globo, parte imprescindível nessa história toda, passaram incólumes.

Para além do caso Palocci, um petista de convicções e alianças estranhas, muito mais aconteceu nesses últimos anos. A Veja, por exemplo, largou sua habitual retórica punitivista em matéria de Segurança Pública quando da prisão do banqueiro Daniel Dantas,  momento em que passou a lutar contra um suposto "Estado Policialesco", fazendo referências a autoridades que teriam sofridos grampos telefônicos - por parte da inteligência do Estado brasileiro -, mas que, no entanto, jamais foram mostrados. Ademais, como nem todos os petistas têm o charme e as ideias peculiares de um Palocci, essa mesma mídia assumiu uma postura sacro-santa de fazer campanha para o PSDB e seu então candidato José Serra. Quanta coisa não é omitida no noticiário - sobretudo o paulista -, não? Não dá para saber o que é mais assustador, o que se passa nos meandros do governo estadual bandeirante ou o silêncio sobre isso.

A urgência por uma reforma da comunicação social no Brasil, portanto, é extrema. Assustador é saber que a Constituição de 1988 já previa a regulação da mídia, garantindo não apenas a liberdade de imprensa, mas também assegurando a liberdade de informação dos cidadãos - por um esquema claro de limitação de propriedade cruzada e demais inerências da aplicação da função social à propriedade midiática, algo sofisticadíssimo. Hoje, quase trinta e três anos após a promulgação da Carta Política, o máximo que temos é uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão do Congresso Nacional na criação de leis que, por sua vez, serviram para complementar os dispositivos constitucionais que regulam a mídia. O caso Murdoch/News of the World abre um precedente interessantíssimo. O papel dos movimentos de luta por liberdade de informação, por sua vez, devem se estender para muito além do devido cumprimento da ordem constitucional, apontando para um horizonte de construção de um espaço público de comunicação, no qual a expansão da Internet sem amarras é um belo instrumento. O governo Dilma fez pouco sobre isso até agora, mas se não se mover, é ele quem será a próxima vítima do monstro que alimenta. 



9 comentários:

  1. tão crucial quanto Cidadão Kane (cujos méritos são mais de Manckiewicz, roteirista, do que de Welles, diretor) neste tema que o episódio Murdoch evoca, é o sempre esquecido A Montanha Dos Sete Abutres, do mestre Billy Wilder.

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  2. 1) Montanha dos Sete Abutres é mesmo espetacular!
    2) Pior mesmo é ver que ministros do ínclito STJ comprando essa idéia ridícula de Estado policialesco. No entanto, se você perguntar a eles abstratamente "Você é contra a impunidade dos poderosos?", eles vão dizer "Claro que sim!"

    Depois, os Azande é que são inferiores e incapazes de perceber as contradições de seu sistema de pensamento...
    Devaneio antropológico: Creio que Evans-Pritchard foi muito incompreendido nesse trecho. Posso estar só projetando o que quero ver, mas acho que, no fundo, ele estava dando uma bela de uma alfinetada em nós mesmos.

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  3. HWB: Essa do Evans-Pritchard, que eu não conhecia, pode até não ter sido dolosa, mas cabe uma culpa básica. A angulação da alfineta é prova cabal de que ele assumiu o risco ;-)

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  4. Sim, eu sei, Anônimo, estou velho: 23 mesmo. E vossa senhoria?

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  5. Hugo, na verdade, o Pritchard não disse que os Azande são inferiores. Só disse que não são capazes de perceber as contradições de seu pensamento.

    Só que é muito fácil estender isso para "Há! Povos inferiores!", que nem eu fiz - ironicamente, é óbvio.

    Mas, no fundo, quem é capaz de perceber TODAS as contradições de sistemas de pensamento inteiros? E quem disse que, ao percebermos a contradição, iremos automaticamente desaparecer numa nuvenzinha de lógica, que nem o Deus dO Mochileiro das Galáxias?

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  6. Meu bom, HWB, eu não disse que ele disse (hehe) que os Azande são inferiores, mas que a agulhada - acidental ou não - na sociedade ocidental é digna de uma piada de velho advogado criminalista pelos efeitos :-)

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  7. Ah, beleza. É que eu escrevi de um jeito que, relendo, fazia parecer que o próprio Evans-Pritchard afirmava essa inferioridade.

    Mas que piada de velho advogado é essa???? Agora fiquei curioso. :^D

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