domingo, 13 de maio de 2012

Grécia Desgovernada: Por uma Práxis do Anti-Governo

Aurora Dourada: Por que não uma suástica de vez?
O resultado das eleições gregas ocorridas há uma semana foi claro: a Grécia está desgovernada no sentido em que dizemos que um carro está desgovernado. Evidentemente, isso não é à toa: o país, mais do que nenhum outro no Velho Mundo, foi atingido pela crise no Euro. Também, pouquíssimos países da Europa são tão problemáticos quanto a Grécia contemporânea em termos políticos: o rescaldo da independência do Império Otomano no século 19º, passando pelas constantes intervenções das potências europeias e incluindo a tragédia da Segunda Guerra Mundial e seus ecos no país - uma guerra civil entre fascistas e libertadores, um intermezzo democrático e uma ditadura militar - deixaram de legado um sistema político oligarquizado, controlado por famílias e prestes a explodir.

Há várias explicações para a crise grega. Os credores do país preferem aquela versão que culpa os gregos pela sua própria desgraça, restando apenas a resignação e o sacrifício do pagamento da dívida sem fim. Há outros mitos, como aquele que credita a crise à realização das Olimpíadas de 2004 em Atenas é causa do processo. O fato é que o Euro prejudica a economia grega desde o momento que a faz compartilhar do mesmo padrão monetário que um país como a Alemanha. Então, temos uma questão que vai para além de "equilíbrio fiscal": a conta corrente do país fica desequilibrada porque ele importa demais, suas cadeias produtivas tornam-se meras maquiadoras - viciadas, ainda, em empréstimos a juros baixos no mercado europeu (e o Estado se ancorou nisso para tomar dívidas e financiar algumas estruturas públicas).

É claro que o velho fisiologismo da política grega, o que resulta desde a vista grossa para a sonegação fiscal dos mais ricos - enquanto pessoas físicas - até o desvio de verbas públicas nas Olimpíadas contam, mas certamente não explicam tudo. Porque, do contrário, Espanha e Portugal não estariam em crise. Muito menos a Irlanda. E não há como exigir um arrocho fiscal desses países que seja capaz de equilibrar as contas: seja pelo fato da paridade absoluta entre desiguais ser aberrante ou, não percam isso de vista, a supervalorização internacional da moeda comum europeia - negociada por Merkel e Sarkozy para passar a mão na cabeça de Washington com sua demente irresponsabilidade fiscal - ajudar a asfixiar mais ainda as pequenas economias da Europa via comércio extra-europeu.

E a disputa política na Grécia moderna não é diferente do resto da Europa: um pastiche do que era o velho Sacro-Império Romano Germânico, onde papistas e defensores do imperador   eram os dois pólos em nível geral e em ramificações partidárias locais - o que só serviu para alimentar a desgraça de homens brilhantes como Dante Alighieri. Prevalece na Grécia o mesmo que no resto da Europa, seja internamente ou na política europeia: um partido de centro-direita (alinhado ao Partido Popular europeu, no caso o Nova Democracia) e outro de centro-esquerda (adequado ao Partido Socialista Europeu, no caso o PASOK) se alternando no poder com suas matizes. 

Na Grécia, essa ópera bufa sempre teve contornos piores, uma vez que os establishments partidários giravam em torno de famílias e oligarcas. Os socialistas sempre foram tributários da família Papandreou, enquanto entre os conservadores, podemos dizer o mesmo da família Karamanlis. E desde de 1974 são eles que se alternam no poder, com algumas crises tópicas, como aquele que resultou num grande governo de solidariedade nacional no fim dos ano 80 - que incluiu mesmo os comunistas - além de uma queda dolorosa de governo para a centro-direita, há pouco tempo, que trouxe o PASOK de volta ao poder para ter uma posição ambígua  com as políticas de austeridade que a Europa lhe obrigou; fenômeno que resultou no gabinete do governo técnico de Lucas Papademos (apoiado por uma coalizão ampla, a exemplo do governo Monti, na Itália), implodido pelas circunstâncias.

O cenário atual, passados sete dias das eleições nacionais, é o rescaldo de uma tempestade: com uma abstenção relevante (na casa de 35%), a pulverização total dos votos - com a pior votação da história do Nova Democracia e a pior, desde que se tornou um partido relevante, do PASOK -, a ascensão de um partido nazista ao parlamento - o Aurora Dourada, cujo símbolo, uma suástica disfarçada, indica bem a que ele veio - e a impossibilidade de se formar governo imediatamente, fecham o quadro de desgoverno. A vantagem relativa que o Nova Democracia possui no parlamento é fruto, inclusive, de uma distorção pró-governabilidade no sistema eleitoral grego: se 250 das 300 cadeiras do parlamento são divididas conforme o voto proporcional, as outras 50 são um bônus para o partido que ficou em primeiro lugar (relativamente, que seja).

O ponto é que a vantagem do Nova Democracia de Antonis Samaras - 108 cadeiras contra o Syriza, uma coalizão de vários grupos da esquerda radical, que fez 52 deputados - se explica unicamente pelo bônus eleitoral. Se isso foi criado para construir uma vantagem para o vencedor das eleições em um país politicamente complexo, no cenário atual, apenas se torna um fator de distorção que constrói uma maioria abstrata e quase ilegítima. Mesmo com isso, um governo de direita na Grécia só seria possível caso Samaras resolvesse fechar com os Gregos Independentes (uma cisão de seu próprio partido) e com os nazistas do Aurora Dourada (sobre essa última opção, ela foi aparentemente descartada). Sem o Aurora, Samaras está em um mato sem cachorro. E existe a possibilidade que o PASOK consiga, apesar da terceira colocação, fazer o governo.

O atual estado de coisas do Estado grego é de pura indeterminação: a perda de crédito na política parlamentar - fundada na representação partidária com interface nas instâncias da União Europeia - além dos confrontos campais e quotidianos entre manifestantes e a polícia nas praças públicas geram uma pressão suficientemente grande para que haja uma crise no sistema, mas também não resultaram na construção transversal de uma nova organização. 

Se por um lado a esquerda venceu nas urnas (dentre os partidos que superaram a cláusula de barreira de 5%, que juntos representaram 80,97% dos votos válidos, a esquerda venceu por 57,5% a 42,5%) , por outro, a divisão dos vários partidos fez com que nenhum partido dela recebesse o bônus de 50 deputados, o que caiu no colo do Nova Democracia, garantindo a vantagem em cadeiras que, no voto, a direita não teve (162 a 138). Pior ainda, não há, entre os partidos organizados, um programa - ou uma disposição - suficientemente clara e forte para resistir às "políticas de austeridade", um eufemismo para o estrangulamento financeiro ao qual a Grécia é submetida neste exato momento.

O naufrágio está desenhado e o quadro grego é uma versão extremada do que não deixa de ser o de toda a Europa. O crescimento da extrema-direita - minando os velhos partidos de centro-direita, seja em versões mais moderadas, como o Front National da França ou, sem máscaras ou eufemismos, na forma do nazismo praticamente declarado como no caso do Aurora Dourada -, o desinteresse pela política partidária e a dificuldade dos movimentos sociais em constituírem alternativas concretas, produzindo um efeito pendular entre velhos modos de governismo (ou alternativas de esquerda que variam entre a velha social-democracia, o eurocomunismo e um suposto novo-esquerdismo) e o desgovernismo. 

Deleuze, por certo, tinha razão ao dizer que não havia governos de esquerda, mas também acertou quando colocou que não era possível encontrar uma saída apenas desconstituindo o posto: é preciso constituir o novo, a negação permanente do velho, por si só, é uma sombra, uma versão do Mesmo (um anti-governismo de desafortunados pelas urnas ou pela política, no caso). Esse é o desafio grego no momento, como também não deixa de ser dos franceses, é preciso trabalhar maquiavelicamente com o que está posto sem perder de vista o horizonte histórico - porque é lá para onde vão as linhas de fuga. Um desgoverno - uma "crise de governabilidade" - é apenas um governo às avessas, é preciso um anti-governismo obstinado, o que passa pelo enfrentamento positivo do Estado.

P.S.: Existe a possibilidade do PASOK formar o governo, apesar dos pesares, a única vantagem disso, em si, é que Berlim sofreria o segundo golpe duro em poucas semanas, o que freia a política de estrangulamento da Troika. Seria uma vitória no sentido de um recuo, ainda que não alente uma transformação tal como necessária.


Atualização de domingo, 20/05: Sem governo, novas eleições foram marcadas para Junho, mas as pesquisas tornam a dar vantagem para o Nova Democracia, levando pequena vantagem sobre o Syriza. O impasse está longe, bem longe de ser resolvido.

4 comentários:

  1. Hugo,

    Dificilmente a Grécia escapa de novas eleições. E aí, seja o que Zeus quiser...

    E seguindo o que falei no comentário do post anterior, o inferno eleitoral de Frau Merkel continua aumentando. Ontem foi na Renânia do Norte-Vestfália. (Detalhe: já é quarta eleição regional em que o Partido Pirata alemão quebra a cláusula de barreira...).

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    1. Eu creio que o governo que sair dessas eleições, caso algo saia daí, será irremediavelmente fraco. Mas não sei sequer como haverá a montagem de governo, inclusive porque à direita ou à esquerda não há disposição em negociar ou a compor. É um problemão.

      Sobre Frau Merkel ter perdido na terra de Marx: é irônico e aponta uma tendência de exaurimento da Democracia Cristã, sobretudo com alguns dilemas da social-democracia se resolvendo...

      abraço

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  2. Ótimo artigo, Hugo. Eu só faria uma observação: em termos econômicos, há dois problemas na UE - um é esse que você aponta, o efeito da moeda única para os países mais frágeis. O segundo é o fato de que os países se viram totalmente impedidos de fazer política econômica anticíclica, já que estão subordinados ao BC europeu cujas regras são ortodoxas. Os países não têm moeda própria nem autonomia para política econômica: no entanto, são responsabilizados integralmente pelos efeitos negativos advindos da integração. Isso está posto desde a criação da UE com a estrutura que foi montada. A gente tá vendo as conseqüências mais radicais agora. E a Grécia é só o ponto mais evidente disso: fora a Alemanha, não se salva ninguém.

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    1. Obrigado, Renata, mas eu tendo a ver os dois problemas como os desdobramentos da mesma questão: não há, para os países periféricos, como fazer política anticíclica porque a impossibilidade de emitir moeda própria - e, assim, regular de algum modo os fluxos monetários que se movimentam para dentro e fora de suas economias - e o compartilhamento de moeda (irrealmente) forte gera um déficit comercial inercial e constante, logo não há outra maneira de manter a estabilidade senão (i) tomar empréstimos a perder de vista para fazer ancoragem (até a corda estourar, como aconteceu recentemente) da conta corrente, cobrindo o déficit ou (ii) manter superávits fiscais indigestos para cobrir o rombo por si mesmo (o que seria pesado em tempos tranquilos, mas, agora, no cenário de crise imediata e com o crédito escasseado, torna-se social e economicamente impossível). Nesse sentido, nunca houve realmente como Grécia ou Portugal conseguirem poupar em tempos de bonança para investir na tempestade, pois o Euro sempre impôs um custo - que era ignorado pela crença na solidariedade europeia e na superstição da corda eternamente elástica do endividamento - que retirava recursos para poupar com tal fim e, consequentemente, investir nessa situação. O único modo de uma moeda única não ter gerado essa tremenda confusão seria, p.ex., a existência de um mecanismo de política anticíclica em caráter continental, que determinasse que os grandes assumissem, de forma solidária, a dívida dos periféricos em tempos de crise - baseado na primazia que eles gozam de acesso aos mercados e recursos daqueles nos tempos de prosperidade. Merkel trabalha paranoicamente por uma austeridade por vários motivos, dentre eles porque mesmo com todos os privilégios que a UE concede à sua Alemanha, o país mesmo assim não cresce - por gargalos internos pesados que ela está pouco disposta, ou é pouco capaz, de resolver - e, por isso, ela prefere uma política oportunista e parasitária a enfrentar a situação. Não é nada muito diferente, em escala social, à exploração do trabalho pelo capital: certamente o fraco da relação não é o trabalhador, pois ele é o ente parasitado; do mesmo modo, podemos dizer que a crise não é grega ou portuguesa (mas é preciso parecer ser), mas sim alemã.

      abraços

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