Ouroboros em velho texto alquímico grego |
Se a Filosofia nasce como uma disputa entre rivais, pretendentes que duelam discursiva e encarniçadamente em praça pública, não resta dúvida que, neste sentido, o eterno retorno nietzscheano consiste em uma das mais cobiçadas noivas dessa conversa. A disputa por ela é a própria disputa da Filosofia. Em alemão, "eterno retorno" diz-se (atualmente) "ewige wiederkehr", embora, originalmente, fosse enunciada como (o arcaísmo) "ewige wiederkunft".
Enquanto "ewige" traduz-se quase exatamente como "eterno", "wierderkehr" já é uma palavra tipicamente germânica, construída pela aglutinação de "wieder" ("de volta", "novamente", ou o equivalente ao prefixo "re", bastante frequente nas línguas latinas) e "kehr" ("tráfego"); enquanto, originalmente, tínhamos "wieder" aglutinado ao termo "kunft" (termo arcaico para vir que serve, inclusive, de elemento constitutivo para "futuro": zukunft [zu-kunft] que, no entanto, seria ao pé da letra o bíblico adventus/advento [ad{zu}-ventus{kunft}] cuja flexão verbal é advenire/advir ). Embora zukunft seja recorrente ainda hoje em alemão, wiederkunft não mais, tendo sido substituída por wiederkommen (sendo que o termo kommen [vir] tem, obviamente, a mesma raíz que o inglês come).
O eterno retorno é, sendo fiel ao método do próprio Nietzsche, o movimento de constante volta daquilo passível de trafegar (kehr) ou vir (kunft/kommen), portanto, não se trata - nem pode se tratar - do Mesmo, pois é algo que torna como novo e diferente, em fluxo, dentro de uma lógica móvel. Distancia-se, também, do eterno concebido pela filosofia cristã (estático e contemplativo), inserindo-se em sentido intensivo e não quantitativo.
Neste sentido, a noção de fluxo em Deleuze e Guattari é inevitável (e pouco coincidente), e o mesmo podemos falar da noção de devir (em inglês, becoming, que pode ser permutando por tornar-se, embora, uma simples análise etimológica demonstre que não é exatamente o mesmo que isso) - sobretudo pelo paralelismo entre wiederkunft/wiederkommen, a referida construção do zukunft e a relação nada ocasional disso com o latino adventus e, portanto, com o verbo advenire (mesmo que devir, em alemão, não guarde, exatamente, relação com "vir", mas, aí literalmente, com "tornar-se", isto é, werden). Tudo isso, perfeitamente de acordo com a filosofia de Heráclito e seu (helênico) panta rei (tudo muda, tudo flui, como a máxima que diz que o rio que um homem entra hoje, não é o mesmo que ele entrará amanhã ou entrou ontem.
Neste sentido, a noção de fluxo em Deleuze e Guattari é inevitável (e pouco coincidente), e o mesmo podemos falar da noção de devir (em inglês, becoming, que pode ser permutando por tornar-se, embora, uma simples análise etimológica demonstre que não é exatamente o mesmo que isso) - sobretudo pelo paralelismo entre wiederkunft/wiederkommen, a referida construção do zukunft e a relação nada ocasional disso com o latino adventus e, portanto, com o verbo advenire (mesmo que devir, em alemão, não guarde, exatamente, relação com "vir", mas, aí literalmente, com "tornar-se", isto é, werden). Tudo isso, perfeitamente de acordo com a filosofia de Heráclito e seu (helênico) panta rei (tudo muda, tudo flui, como a máxima que diz que o rio que um homem entra hoje, não é o mesmo que ele entrará amanhã ou entrou ontem.
Os franceses traduziram o termo por "éternel retour" - ao pé da letra, o nosso "eterno retorno", embora não custe lembrar que "tour", em francês, é frequentemente utilizado como substantivo, o que já não acontece em português: dizemos "o retorno", mas jamais usamos "o torno" (talvez a variante "o turno", só que apenas em situações específicas, como a política ou e o futebol), mas sim "a volta" (ainda que usemos a locução "em volta" com praticamente a mesma conotação que "em torno"). O verbo "voltar", por sua vez, é equivalente a "retornar", mas também a "tornar" - "eu voltei/tornei a escrever este post", embora nos casos que faça referência a espacialidade temos coincidência entre voltar e retornar: "eu voltei/retornei ao meu quarto para escrever isto".
Curiosamente, o verbo "revoltar" possui uma conotação assombrosamente mais virtuosa: sublevar-se, indignar-se, confrontar (como minoria) a ordem - descolado, a um primeiro olhar, da ação que ele repete (o inocente ato de voltar/(re)tornar) pela evidente superioridade de potência entre ele e o primeiro; há uma distância enorme entre "eu (me) volto" e "eu (me) revolto", um dos mistérios, na forma de incongruência, da língua, que precisamos aceitar para saber como trabalhar estrategicamente com ela - afinal, a língua é aquilo que se faz dela no uso corrente, não o que determinada regra lógica diz que é, do contrário, na melhor das hipóteses, falaríamos ainda latim.
Se o Eterno Retorno está longe de qualquer contemplação, inserindo-se no mundo dos devires, dos cortes e do tudo muda de Heráclito, ele mantém distancia maior ainda do mesmo, do igual ou do idêntico - como coloca Deleuze em seu Diferença e Repetição - na medida em que consiste em mais do que um mero retorno - como o entendemos usualmente -, mas sim em uma revolta - no sentido em que a enunciamos usualmente: só retorna "o que é extremo, excessivo, o que passa no outro e se torna idêntico" [Diferença e Repetição, p.49], uma identidade que surge a partir da diferença (e não o contrário) na qual o "re" diz respeito ao novamente e não à cópia: como a rima, na qual o que volta não é a mesma palavra do verso anterior, mas aquilo que lhe há de mais abundante e excessivo, isto é, a sílaba tônica.
Eterno Retorno como Eterna Revolta, como poesia da vida na vida: (re)volta do que há de intenso, excessivo e abundante de modo iconoclasta e cruel, tal e qual as massas que se levantam no "passado, presente e futuro" frente à opressão (não em termos maniqueístas, mas como relação de retroalimentação entre opressor-oprimido, seu esquema próprio de representação masoquista), re-existindo no campo de batalha, daquilo que rouba sua existência pelo exaurimento de sua potência.
Se os descaminhos da História e a palidez intelectual dos legatários de Marx e Nietzsche os distanciaram, quando um pouco de ponderação e prudência poderia ter levado a um movimento inverso (e muito mais produtivo), vemos que a revolução - sobretudo a permanente, que Trotsky apreendeu bem de Marx, embora tenha feito, a exemplo dos marxistas em geral, uma análise indigente do legado nietzscheano - e o eterno retorno referem-se a um nexo de relações próximo, senão coincidente, o que torna-se, inclusive, cada vez mais claro quando o momento histórico em que nos encontramos expõe a fratura da dívida (infinita) como questão emergente (e emergencial) da economia - como expõe perfeitamente Maurizio Lazzarato.
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