quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Situação de Dilma: Navegando na Tempestade

A Nona Onda (Grie)
Desde as Jornadas de Junho, temos testemunhado um verdadeiro bombardeio de novas análises. Todos concordam que nada mais é, e possivelmente não será, como antes. Mas ninguém também consegue definir o novo. Agora, com a proximidade das eleições gerais, um aspecto profundo dessas incertezas vem à tona: é a primeira eleição presidencial na qual a polaridade entre uma direita neoliberal -- primeiro, acidentemente incorporada por Collor, depois capitaneada pelos tucanos -- e o Partido dos Trabalhadores -- um complexo agenciamento sindical-popular-socialista -- está abalada. Nenhuma das duas narrativas estão gozam de confiança profunda, tampouco seus líderes e representantes. 

Desde a redemocratização, foram 12 anos de governos neoliberais e quase o mesmo de governos petistas. Dilma Rousseff pleiteia a reeleição, lidera todas as pesquisas, mas está em xeque, questionada por vários setores, por diversos motivos.  Nada indica, no entanto, um desejo de retorno ao neoliberalismo, embora isso possa acontecer por motivos acidentais exatamente como no fim dos anos 90, quando a polaridade parecia ser entre capitalismo de Estado fascista e alguma forma de social-democracia. Os anúncios da queda de popularidade de Dilma, verificados desde Novembro -- quando cessou um movimento de recuperação desde o impacto causado pelas jornadas --, sobretudo a última queda (nas pesquisas Datafolha e CNT), criam um paradoxo: hoje, Dilma ainda venceria no primeiro turno, mas seus próprios companheiros e aliados ensaiam um forte coro de "Volta Lula!"

O ano de 2014, pois, marca a primeira eleição na qual as "esquerdas" não estão mais, pelo menos na sua larga maioria como antes, convictas de que o PT é a saída. Intelectuais, artistas, militantes e quetais sempre estiveram ali, se mobilizando ou desmobilizando de acordo com o norte dado pela bússola do partido da estrela. Talvez o único momento em que isso não aconteceu foi o primeiro turno de 1989, quando o trabalhismo de Brizola disputou palmo a palmo com Lula e o petismo a posição de líder do campo canhoto do espectro. E Lula venceu essa disputa, mesmo que tenha perdido para a direita. Mas os rumos da esquerda brasileira foram definidas ali. Ironicamente, Dilma, que foi um importante quadro brizolista entre os anos 80 e 90 e, depois, foi peça chave do esquema lulista é quem está no olho do furacão. Nem por isso, o PSOL ou qualquer outro partido de esquerda tomou esse posto. Nem o PSB parece que esteja sequer disposto a disputa-lo -- ao contrário da Rede de Marina Silva que, a rigor, ainda não existe. 

O que desejam os brasileiros, afinal? Eles sabem bem, uma sociedade mais justa, pacífica, humana, mas não sabem como realizar isso, como dar forma institucional à essa imensa tarefa. E quando têm alguma ideia, se deparam com uma desoladora falta de canais e espaços para construírem saídas. Eles se ressentem, eles desejam mais e melhor, mas não encontram bem o que querem, se perdem em um desejo difuso, uma flutuação de ânimo considerável. Mas se o punitivismo penal é aparentemente palavra de ordem, por outro lado, dificilmente os seus concordam com violência contra os seus: dificilmente se verá alguém de classe média defendendo punição à sonegadores de tributos, tampouco trabalhadores tolerando violência policial, ou arbitrariedades judiciais, contra os seus -- algo que não defendem, por exemplo, para a população que se põe para fora do regime do Trabalho. Na verdade, falta senso comum, ou melhor, o senso de comum.

Entre os jovens, mobilização como nunca. E eles desconfiam dos partidos socialistas, embora não queiram a direita: a geração mais bem informada da história do Brasil, integrada à Internet e à sociedade global, defendem quase em uníssono a luta pelos direitos civis, pelas liberdades todas, mas não tem um norte tão definido quanto ao resto. A sociedade da informação, das redes sociais, do compartilhamento instantâneo, por um lado, ainda está longe da História. Algo, no entanto, de maneira precária, provisória e experimental tem se criado, esteja ou não à altura das demandas impostas. É claro, a História pode esquecer, mas não perdoa, o que não muda o fato de que há algo em criação e aplicação agora, em matéria de política. Entre esses ativistas dos fins dos tempos, as formas de anarquismo e autonomismo parecem mais divertidas: longe da disciplina socialista, sem aquele sentimento pesado de dever...

Intelectuais e variados tipos de ativistas também se enveredam mais por aí, no fundo, pegando textos dispersos, a esquerda ativa pode até não saber, tampouco admitir, mas concorda cada vez com Bakunin e menos com Marx quanto ao plano de ação. A distância geracional entre os jovens de 16 ou 18 anos com seus pares dez anos mais velhos é, no entanto, enorme: o homem de 2003, por exemplo, é peça de museu. Em outras palavras, via de regra, os estudiosos -- e entenda estudioso aqui como pensador "de Estado", aquele chato que Deleuze e Guattari imaginavam como o cara que escreve em lei transcendente o caos que ele organiza -- não têm boas explicações sobre o que estamos passando porque, simplesmente, não há projeto de atuação política suficientemente forte para se apoderar, ou reapoderar, da disputa de forças posta, na forma como ela está posta.

Cá da parte deste blog, a hipótese traçada parte da leitura da composição de classes sociais. E o social é aquilo que está entre a confusão que se tornou o econômico e o político no mundo moderno. O Brasil mudou, em parte pelas mudanças globais -- e não me refiro à mudanças tecnológicas, mas no próprio uso dessas novas tecnologias -- e pelas transformações internas.  A ascensão selvagem da classe sem nome é o processo anômico de suspensão multitudinária de uma certa ordem tradicional brasileira. Mas ela não é aquilo nem que o PT ou a esquerda clássica desejavam ou esperavam. Tampouco é também o que o velho tradicionalismo brasileiro, que tomou a forma da pós-moderníssima social-democracia-neoliberal, quer. 

As duas linhas mestras, parecem equívocos, ideologias que se tornaram credo até para quem as professa: a primeira, do governismo, de que tudo está bem e sempre esteve, mas que todo o abalo é fruto de uma larga conspiração parece cada vez mais maluca e disparatada, sobretudo quando se vê que os frutos do atual ciclo são renegados; a segunda, que une a direita neoliberal e a esquerda socialista, de que tudo sempre esteve mal, mas ninguém dava conta, não consegue explicar o porquê o atual estado de coisas, sobretudo quando se percebe que o caos reivindicativo não produz, nem na média, nem na moda, qualquer narrativa que se enquadre plenamente no discurso oficial seja do PSDB ou do PSOL.  

A falta de adaptação de esquerdas e direita ao processo se dá, dentre outras coisas, porque uma força política qualquer, mesmo que perceba certas mudanças, nem sempre possui a potência de atuar com elas -- e eu duvido que estejam sequer percebendo o que está em curso, mas suponhamos que não seja esse o caso. Foi Marx o primeiro pensador a formular uma crítica à essa leitura de mundo que mistura explicação e, por assim dizer, wishful thinking, a vontade de que as coisas sejam como se quer que elas sejam, o que ele chamou de "ideologia", mas ironicamente os próprios partidos socialistas estiveram presos na armadilha ideológica: e isso explica parte do fracasso do "socialismo real".  

A direita, pelo menos os setores de direita na fora do aparato político formal, na mídia, é quem tem melhor se adaptado ao novo cenário: a política de captura começa como política de cultural da grande mídia. E a representação da classe sem nome se dá na forma da caricatura, o popular vira populacho. Ironia das ironias, um dos programa responsáveis pela sedução e captura da CsN, o Esquenta, da TV Globo teve um de seus dançarinos morto em mais um ato de abuso policial das doces Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) - e a resposta foi um programa especial de homenagem cheio de sentimentalismos e...absoluto vazio político. Nada de críticas, nada de denúncias, contrastando com a postura indignada e corajosa da mãe da vítima. 

A representação da classe sem nome em caricatura é central para entender o novo Brasil -- e foi alvo de recente artigo de João Telésforo, muito embora sempre vá frisar cá deste cantinho que é bom diferenciar a captura da existência a ser capturada (e da forma como essa existência re-existe nos sem número de levantes plebeus que acontecem agora mesmo pelo Brasil, sobretudo nas favelas cariocas).  Seja como for, o que interessa é que essa representação se dá, grosso modo, em uma mídia de Estado, estabelecida muitas vezes em concessões públicas -- nos casos da televisão e do rádio --  e sempre sustentada por dinheiro público por meio da publicidade estatal.  Essa mídia funciona como doutrinadora da sociedade e como  filtro ideológico dos governos.

Enquanto existe uma crescente desconexão entre o PT e o Brasil que ele ajudou a criar -- o que é "resolvido"com tentativas de domesticação e, até mesmo, repressão militar contra essa magnífica multidão em ações elaboradas pelo, ou com anuência, do executivo federal. A mídia clássica, enquanto brada por um neoliberalismo, vive justamente do setor público e da porta giratória entre este e o setor privado. Setores como o PSDB ou PSB, embora não sejam, na matriz, conservadores, navagem à deriva de conexão com a "sociedade civil" e quando o fazem, aproximam-se do mercado, ou melhor do oligopólio capitalista que ocupa qualquer coisa que possa chamada de mercado. Como do mesmo modo, a esquerda tem uma aliança tática, fugaz, ocasional com a multidão, mas sua força reside em franjas sindicais burocráticas.

Há, é verdade, a questão mal-resolvida da nossa transição democrática, que na falta de disposição real de varrer o "entulho autoritário", acabou por incorpora-lo -- como seu viu, já nos anos 80, no PMDB, o curioso e acidental sujeito político-partidário hegemônico da redemocratização. Não foi a Ditadura Militar que perdoou os torturadores, ele sequer reconheceu qualquer violência para poder perdoa-la, foi o STF da democracia, cuja quase unanimidade dos membros foi escolhida por governos eleitos diretamente e aprovada por um senado na mesma situação, que reconheceu a existência de violações e as anistiou usando-se da expressão vazia dos "crimes conexos". Não diríamos que houve, sequer, uma pacto político estável durante a estadia de Dilma no poder, como diria o mestre Idelber Avelar na sua série sobre o "enigma de Junho" -- na feliz reativação do Biscoito Fino e a Massa -- conforme avaliamos no post deste blog sobre um ano do governo Dilma.

A queda nas pesquisas é natural. A larga vantagem de Dilma é, obviamente, inflada, posto que em nenhuma ocasião das últimas três eleições, o PT, seja com Lula ou com Dilma, conseguiu mais do que 50% dos votos válidos -- calcule então nas atuais circunstâncias --, portanto, o pleito em disputa, apesar de toda histeria a cada movimento, é apertadíssimo e só deve ter uma solução no segundo turno. A vantagem é recall, a vantagem real certamente é menor do que isso, mas nenhuma pesquisa irá calcular isso para trabalhar com a ansiedade da direção petista face às quedas e, assim, negociar uma queda à direita por parte do segundo governo Dilma ou do terceiro governo Lula. 

A genérica leitura de que "tudo depende da economia" pouco quer dizer. Para os não-proprietários sempre há crise econômica -- que pode ser maior ou menor --, para os proprietários raramente isso acontece, mas quando acontece, e só aí, é que se fala em crise. O fato é que a política social-democrata aqui, e em toda parte, fracassou na tentativa de distribuir renda sem modificar a forma de exercício da propriedade: até as pedrinhas da rua sabem, embora nem sempre admitam, que a inflação europeia dos anos 70 era a maneira como o capital tentava anular, na formação dos preços, os ganhos salariais conquistados pelos sindicatos. Não era nada fruto de qualquer mistério ou de alguma lei transcendente que foi violada. Mas a social-democracia, embora pudesse saber, não foi capaz de admitir ou agir em relação a isso. E compactuou, como compactua, com o desmonte do Estado de Bem-Estar Social. As cartas estão na mesa e a situação se tornou mais tensa do que, em uma situação habitual, já tornaria, com a interdição do debate nos últimos quatro anos -- e o que iria acontecer em alguns anos, precipitou. E agora cai uma tempestade.







sexta-feira, 25 de abril de 2014

E Rózà, Luxemburgo, foi às Ruas


Aqui jaz

Rosa Luxemburgo,

judia da Polônia,

vanguarda dos operários alemães,
morta por ordem dos opressores.
Oprimidos,
enterrai vossas desavenças!

Bertold Brecht, Epitáfio de Rosa Luxemburgo


Rózà, espetáculo teatral em cartaz na Casa de Povo, narra a história da revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo. O título da peça é assim mesmo, com a grafia original do nome dela, o que desperta um efeito exótico como a música de fundo, em ídiche, do teaser da peça: uma Rosa primeira, uma arqui-Rosa que, no entanto, não é uma Rosa velha, mas uma Rosa atemporal. O ex-ótico é sempre isso, aquilo nos salta ao olhar (usual) e nos faz ver as coisas de um jeito diferente. 

Eu nunca tinha me dado conta da grafia original do nome dela, mas isso desperta a atenção para uma coisa óbvia (e o óbvio é sempre revolucionário, embora nem sempre seja evidente): a Rózà mulher, judia, comunista e polonesa, todo esse seu magnífico -- e privilegiado -- estar-em-minoria não é apenas um adereço, um detalhe biográfico, mas sim o próprio fundamento da Rózà revolucionária. 

Isso ajuda explicar porque Rózà não apenas esteve na esquerda revolucionária, mas também esteve à esquerda. E a sua atualidade, em um momento de tamanha agitação, que suscita, dentre outras coisas, também o pré-guerras, é instantânea. Como se portar diante das manifestações que, enfim, chegaram ao Brasil? Da emergência da questão feminina? De uma escolha necessária de lados face ao racha do blocos de poder mundial? Não é que isso não seja novidade, mas é que não há como não sê-lo, seja em qual época for.

Rózà, assim como os bolsheviks, colocou a questão da Revolução novamente na ordem do dia da esquerda mundial -- quando os social-democratas já ensaiavam uma grande aliança com o Poder -- mas ela, mais do que eles, pensou a questão do pós-Revolução -- e só conseguiu fazê-lo pela sua condição de pensadora, e militante, maldita no sentido que dizemos que Marx foi maldito. Daí o fato dela ser uma personagem histórica formidável. E é essa noção que essa obra transmite bem. 

Tudo na peça transcorre com três Rosas confinadas em um quadrado forrado por plásticos brancos dentro do qual também ficam os espectadores. Elas se intercalam momento a momento, se reunindo apenas quando formam uma banda -- uma banda --, protagonizando uma sucessão de experiência sensoriais: imagens projetadas nas paredes, música, a leitura das cartas -- as várias etapas e momento da vida, Rózà jovem e furiosa, Rózà presa, Rózà solta para depois ser morta. 

Uma vida em meio às massas que foi, a rigor, uma vida solitária -- quando não, na própria solitária. Sons e silêncios, épica e dramática, multidões e solidões giram em uma peça que assume o ponto de vista do feminino, do comum, do perseguido -- e que opção mais feliz do que escolher como palco justo da Casa do Povo, fundada por tantos judeus fugidos e estabelecidos no agitado centro de São Paulo.

Pelo menos duas sacadas merecem atenção no texto: a referência às manifestações atuais e à prisão das Pussy Riot na Rússia de Putin -- justo a mesma Rússia que, hoje, força a esquerda a cair na mesma falácia de "escolher um dos lados". Isso tudo passado na mesma Alemanha na qual o consenso ainda persevera entre as forças políticas, sobretudo no que toca à "austeridade" -- o nome bonito que deram à política de crise, equivalente macroeconômica à política de guerra (civil ou não) daqueles tempos. 

Rózà, pois, é mais atual impossível, sobretudo quando pensada nos termos de uma Rózà-minoria. E as atrizes seguram bem a peça com carinho e afetuosidade, sobretudo no final -- envolto por uma carga dramática densa e potente: Rózà morre e a prisão se desfaz, as paredes são destruídas, mas ela ressurge, literal e metalinguisticamente...nas ruas...


Rózà, Brasil (2014), direção de Martha Kiss Perrone, Joana Levi; Dramaturgia: Martha Kiss Perrone e Roberto Taddei; Instalação Cenográfica: Renato Bolelli Rebouças; Criação Vídeo: Marília Scharlach, Olivia Niculicheff; Direção Musical: Edson Secco; Composição: Edson Secco, Ligiana Costa; Preparação Vocal: Ligiana Costa; elenco: Lowri Evans,  Lúcia Bronstein e Martha Kiss Perrone. Casa do Povo, Rua Três Rio, 252, Bom Retiro, São Paulo-SP. Página da peça no Facebook.

domingo, 20 de abril de 2014

Réquiem para Gabo: A Excedência do Fantástico

Ilustração retirada daqui
"Antonio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhaes na primeira viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional escreveu crônica rigorosa que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relincho de cavalo. Contou que puseram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia e que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor de sua própria imagem. Este livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germes de nossos romances de hoje, está longe de ser o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles tempos. Os cronistas das Índias nos legaram outros, incontáveis (...)"

Gabriel García Márquez, A Solidão da América Latina, trecho inicial do discurso de agradecimento ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982.

Faleceu na última quinta-feira, 17 de Abril, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, o Gabo, estandarte do realismo fantástico latino-americano. Ele foi autor de obras magníficas como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera -- o último filmado há poucos anos --, mas sua contribuição foi, sobretudo, sua presença como seu mais intenso personagem; um e mordaz crítico da realidade latino-americana, ativista e combatente que amou sua gente como poucos e lutou com suas armas: a caneta e uma imaginação sem limites.

Gabo foi o quarto latino-americano a conquistar o Nobel de Literatura -- e hoje o número chega a apenas seis nomes dentre os mais de cem já premiados ao redor do mundo:  a chilena Gabriela Mistral (1945), o guatematelco Miguel Ángel Asturias (1967) e o também chileno Pablo Neruda (1971) o antecederam; depois, só o mexicano Octávio Paz (1990) e o peruano Mario Vargas Llosa (2010) foram lembrados. Bobagem hierarquizar o conjunto de uma obra literária pela conquista, ou não, de um Nobel, mas também como não há como negar o peso e a chancela política que o prêmio concede aos seus vencedores, sobretudo quando premia, talvez por acidente, alguém do escopo de Gabo e ainda mais vindo destes confins exóticos da Terra.

Alguns dirão: foi amigo de Fidel e limitou sua enorme capacidade criativa em virtude de um, digamos, apoio ao autoritarismo "só que de esquerda". Mas Gabo não precisa de defesa quanto a isso: assumiu o lado que lhe cabia no seu contexto histórico e, venhamos e convenhamos, não foi o regime cubano o maior responsável por qualquer irresignação diante do analfabetismo nem pela miséria na América Latina, apesar de suas claríssimas limitações -- do mesmo modo que nenhum artista pode ser responsabilizado pelas contingências residuais de posições políticas, determinadas e pontuais, que venham a assumir. No entanto, provavelmente você não lerá por aí que Mario Vargas Llosa é cúmplice da morte de incontáveis pessoas largadas ao relento pelo neoliberalismo, o que mostra o óbvio: não há simetria possível entre as partes envolvidas nessa conversa.

No caso de um escritor que tinha o que dizer como Gabo, digamos que a importância da láurea foi de lhe dar voz para denunciar o mascaramento do conflito social latino-americana -- coisa que ele fez, magistralmente, já no seu discurso de agradecimento à premiação em Estocolmo, o fabuloso A Solidão na América Latina. É certo que Mistral, Asturias e Neruda já o tinham feito com singular habilidade, mas foi Márquez que apanhou a crítica à América Latina e a elevou além dos limites da realidade, mesmo da realidade poética.

Pode parecer uma contradição em termos que o idealizador de Macondo, e tanta coisa fantástica e mágica, também seja, ele mesmo, um dos maiores reivindicadores da verdade histórica de sua terra, mas não é: nada mais surreal e desafiador do que trazer à tona a história da América Latina aos olhos do mundo, pois Gabo sabia muito bem que o real é aquilo que está chancelado pelo, e como, discurso del Rey -- isto é, a verdade da luta e dos oprimidos será sempre realismo fantástico.

Uma América Latina cheia de gentes com cor, cheiro, sensualidade e afetuosidade, na qual "ainda assim, diante da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida" é o plano que Gabo registrou; um mundo de pequenas e profundas intensidades, fugazes chamas que apesar de tudo transbordam e se fazem vivas. A literatura de Gabriel García Márquez é a escrita do triunfo do elemento vivaz do comum e do plebeu em meio à guerra permanente de nossa América. Viveu virtuosamente e partiu idoso deixando tantos mundos a se criar a partir do nosso.







domingo, 13 de abril de 2014

Uma Antropologia Americana no Terror às Avessas de Stephen King

Stephen King, autor de umas boas dezenas de livros de terror e suspense, muitos deles reproduzidos com sucesso em outras mídias, como os clássicos O Iluminado, Carrie, Christine, Cemitério Maldito, À Espera de um Milagre, Na Hora da Zona Morta (Dead Zone, tanto no cinema quanto na TV) é um cara que tem o que dizer. Talvez seja um dos últimos ícones pop americanos a ter o que dizer. Seja na sua defesa da cobrança de tributos sobre os mais ricos (inclusive sobre ele mesmo) ou na sua crítica à venda desenfreada de armas de fogo em seu país. Mas o que interessa realmente é a sua obra e o que ela diz.

King, por dentro e contra, subverteu o típico romance de terror americano e tirou dele o seu melhor. Muitas de suas obras assustam mesmo. Agora, a novidade de King é ter, massiva e intensamente, brincado com o ponto de vista do paranoico: olhando a partir dele, de seus temores, ele apresenta um mundo no qual a ameaça e as contradições internas dão origem ao Mal -- que não vem "de fora", mas  já está "dentro". 

O Iluminado: papel icônico de Jack Nicholson
A genealogia do terror americano aponta para um aspecto importante da fundação do país, a tradição da agressão vinda da ameaça externa, do outsider como o inimigo perpétuo: não só aquilo que é externo ao país, mas externo à comunidade, à vizinhança. Olhado do ponto de vista do forasteiro, da minoria, isso é pura paranoia, indiferença e intolerância, mas do ponto de vista da comunidade sob o regime do pavor que se protege, se imuniza se fechando é diferente: de fato, o inesperado, o diferente e a novidade dão medo, horror real e profundo que corrói a alma. King não assume o ponto de vista nem de um, nem de outro, mas subversivamente assume que o medo do paranoico pode ter explicação para, daí, o desconstruir.

Martin Sheen em Dead Zone
O político conservador e oportunista em Dead Zone (foto), os alunos populares em Carrie ou, de maneira mais explícita impossível, o racismo e o sistema prisional americano em À Espera de Um Milagre -- imortalizada pelas atuações brilhantes de Michael Clark Duncan e Tom Hanks -- constituem em alguns exemplos dessa subversão. Do mesmo modo que em o Iluminado e em Cemitério Maldito (Pet Sematery) não é quem vem de fora que traz o Mal, mas sim que o Mal já está lá, incutido no ambiente doméstico e fechado, nas suas contradições convenientemente abafadas e escondidas.


Se a literatura de terror de King, até  hoje, não caminhou para a vertigem fóbica segundo a qual tudo se passa à sombra de um terror(ismo) exterior, onipresente e transcendente -- a exemplo do que aconteceu com um Frank Miller, para ficar na cultura pop -- é justamente porque ele sabe que a causa do medo é interior e imanente: não há porque invocar ameaças externas, sendo  que, a priori, as ameaças estão nas contradições internas, nossas e da nossa comunidade.  

Se é de paixões tristes que se faz o poder, a incorporação delas e sua subversão talvez seja o melhor remédio. King nos faz sentir medo, mas seu medo nos desperta para um mal que está no lado no normal, do homem e das pessoas "de bem". Com o mundo global calcado cada vez mais na forma na (bio)política do terrorismo, sob a sombra da lógica da caça às bruxas -- tão comum nos EUA do século 17º, no marcatismo dos anos 50, na guerra ao terror e, também, no nosso e tão nosso culto ao punitivismo e na nossa cultura de linchamento --, as pequenas operas trágicas de King, no susto, nos fazem refletir que o problema não é o Outro.



domingo, 6 de abril de 2014

50 Anos do Golpe Militar: A nossa República é um Monstro sem Cabeça



Texto meu publicado para o dossiê da Uninomade sobre o Golpe de 1964.

Primeiro de Abril de 2014: Cinquenta anos de Golpe Militar e tanto a pensar. Existem dois discursos predominantes, e antagônicos, sobre a ditadura cujo marco inicial (um golpe!) ora completa o cinquentenário: (1) a ditadura acabou e, em seu lugar, sobreveio um ciclo democrático absoluto que, apesar dos seus defeitos, conseguiu colocar um termo no nosso histórico de autoritarismo -- e tudo o que não é democrático ou é herança não resolvida da ditadura ou, possivelmente, algum tipo erro; (2) a ditadura jamais terminou realmente, portanto, vivemos, na verdade, uma farsa democrática, um estado de exceção sofisticado em plena operação.

É natural que a elite política brasileira -- incluso aí os três últimos presidentes da república --, a qual ascendeu na luta contra a ditadura, tenha uma visão edulcorada sobre o processo de redemocratização. Do outro lado, muitos intelectuais de esquerda creem que o sistema incorporou esse entulho autoritário à sua essência (ou já o trouxe incorporado) e/ou que os supostos acidentes e erros seriam uma constância caracterizadora do regime atual -- a normalidade de exceção, exposta na ainda persistência de uma polícia militarizada e integrada à estrutura das Forças Armadas,  a existência de uma Justiça Militar com jurisdição sobre civis em época de paz, a política desenvolvimentista implacável contra as minorias, a força de inúmeros políticos ligados à ditadura etc.

Poderíamos citar também a extrema-direita saudosa do regime militar, a qual vê no sistema atual apenas corrupção e degradação. Seria um “exagero” ou um “excesso” democrático. Mas, a rigor, isso é apenas uma forma de ver e praticar a primeira leitura -- isto é, o reconhecimento da existência de uma democracia plena, só que do ponto de vista de quem a odeia. A importância dessa peculiar forma de ver as coisas, na verdade, só tem importância para desconstruir o segundo discurso: por que justo os defensores da ditadura não veem continuidade alguma entre o regime militar e esta democracia, a ponto de fazerem marchas, escreverem blogs, atacarem os direitos humanos? Se justo eles reivindicam a volta da ditadura é porque há controvérsias quanto a continuidade linear de ambos os regimes.

É claro que isso poderia ser questionado: de repente, os setores golpistas e pró-ditadura preferem, hoje, a estratégia de estar nos bastidores de uma democracia de enfeite, ao contrário de uma extrema-direita alucinada. O ardil seria dissular dentro da ordem atual e corroê-la por dentro.  Há problemas, pois, de todo modo, se dispositivos de dominação originários da ditadura ainda existem, e operam, nem por isso eles operam da mesma forma -- tampouco esses democratas de ocasião não são obrigados a aceitar uma série de políticas que, olhando bem, eram impossíveis na ditadura e eles próprios não concordam.

Tanto o discurso da desconexão absoluta quanto o da continuidade razoavelmente linear da ditadura e da democracia são, pois, meras expressões da interesses subjetivos no mundo da política e da academia. Eles são menos até do que “ideologia”. E não é questão de afirmar um objetivismo qualquer, mas há uma diferença entre um discurso com rigor conceitual e wishful thinking. Em outras palavras, seria mais próximo da verdade falar em um grande pontilhado entre uma coisa e outra, com a localização dos dois processos dentro de um mesmo plano: se os cortes históricos têm clara relação, vejamos nós, com mudanças de forma de entender o tempo, talvez o único corte desse gênero seja muito anterior ao golpe de 1964, lá atrás, com a proclamação da República.

O tempo republicano era o da pressa e do sobressalto. Ao contrário do tempo da colônia e do império, uma paradoxal encontro entre uma monarquia europeia pré-industrial e a temporalidade dos índios e dos negros, agora a ordem era a insana marcha para o futuro. Não  à toa, do início da República até os dias atuais, a ideia de que o Brasil deveria se converter numa civilização “desenvolvida” o mais rápido possível -- e a qualquer custo -- resultou em períodos autoritários voltados a “desentravar” o programa assumido naquele instante: a bem da verdade, já na esteira do golpe de 1989, tivemos a república da espada -- de uma sanguinolência pouco lembrada --, a ditadura Vargas e, depois a ditadura militar.  No meio disso, períodos de regularidade institucional, a república velha, a primeira democracia e a atual democracia, nas quais o grau de abertura do regime variou conforme o êxito da luta política.

Sim, houve violência de Estado também no período de regularidade: durante a república velha, a primeira democracia e a atual, houve a mesmíssima marcha, com suas habituais vítimas, mas o modo de operação era oculto, à sombra da face pública e gloriosa da política, levada a banho-maria e, ainda, baseado em intervenções específicas e muito bem localizadas -- como, por exemplo, na guerra do Contestado (1912-1916). As ditaduras, sobretudo, a ditadura militar foram, pois, momentos extremos na qual as vilanias passam a ser realizadas pelo próprio senhor da casa, no máximo como segredo público -- ameaçando a todos de forma total.

A violência específica da ditadura militar residiu no fato de que, pela primeira vez, o movimento emancipatório conta com um fortíssimo devir-minoritário: até os segmentos da elite que se empenharam radicalmente na luta polítca estavam de tal forma enquanto minorias que, vejamos só, acabaram se tornando tão matáveis quanto os trabalhadores, negros, índios etc. Se a luta era comum, a repressão era total. Essa perspectiva de que não havia segurança no combate contra a ditadura, que ela estaria disposta a tudo, foi algo certamente inédito na nossa história, na qual mesmo nos piores momentos da ditadura Vargas ou do início da República, determinadas pessoas, feliz ou infelizmente, estariam a salvo.

Sim, qualquer Estado mantém, em latência, a possibilidade aplicar a exceção soberana e suspender garantias e direitos. Não é que ele deva, mas ele pode. Essa possibilidade de suspender o direito, no caso brasileiro, se dá pela dinâmica exploratória do “progresso” na forma como esta foi concebida no final do século 19º. Queremos um modelo de civilização impossível e nos tornamos uma caricatura tropical dos países europeus. Longe de maiores monarquismos, o fato é que, simbolicamente, o rei caiu, mas a nova ordem é uma monarquia sem rei: assim, as máscaras são a única face possível para um monstro sem cabeça, um monstro chamado República.

A relação entre ditadura militar e democracia não é imediata entre elas, mas entre as duas no sentido em que se situam no plano da tradição republicana brasileira. Sim, é possível que ocorra um novo golpe, mas a institucionalidade republicana pode muito bem, com os novos mecanismos de dominação biopolíticos, dispensa-lo. O controle territorial das favelas cariocas está sendo possível dessa forma: olhemos para o caso da presente ação dos fuzileiros navais, munidos de mandado de busca e apreensão coletivo expedido pela Justiça Militar, no Complexo da Maré, no Rio. Se essa tecnologia de poder falhar, por que não uma tecnocracia empresarial, judicial ou novamente militar? Tudo é possível.

No plano da lei, vivemos entre a exceção como regra e regra excedida. O problema do monstro, naturalmente, não é seu acefalismo, mas sim a insistência em ter uma cabeça novamente. E ela a encontra em toda parte, na política ainda semi-despótica ou no próprio capital. Na falta disso surgem as máscaras e a necessidade de deter o monopólio das mesmas.

Portanto, o tal Estado de Direito Democrático é, tanto mais, a resultante prática da Democracia contra o Estado. A democracia formal não quer dizer absolutamente nada. Muito, de fato, foi conquistado nos últimos anos, mas tudo isso se deu por fora e contra o Estado, no máximo, taticamente por dentro dele. Se o Estado é sempre uma máquina implacável, o republicanismo brasileiro só acirra isso.



Nada disso torna a análise de 1964 menos importante. Mesmo que estejamos falando de uma violência que excedeu a ditadura militar -- tanto no seu antes quanto no seu depois --, o golpe de 1º de Abril é o momento temporal e o local chave da luta brasileira no seu modo mais puro e evidente. Celebremos os nossos mártires partindo para o combate.