terça-feira, 26 de agosto de 2014

Cem anos de Palmeiras: Dá-lhe Porco!

A máquina de 1996: O Melhor Palmeiras que eu vi Jogar
O futebol e o Palmeiras apareceram cedo na minha vida. Ainda garotinho e recém vindo de Pernambuco para São Paulo, ouvia e via muito do mundo da bola em casa. Papai amava -- e ainda ama -- futebol, tinha até jogado no time amador da nossa vila natal, e mamãe adorava tudo aquilo. Lembro, como se fosse hoje, da vinheta tosca Futebol 92 passando na nossa primeira TV, um aparelho preto-e-branco que durou um tempão. Eram tempos bicudos na terra estranha, cinza e incompreensível onde eu fui parar. 

Meus pais torciam pelo Náutico na terra natal, mas adotaram um time novo na terra nova. Papai já gostava do Palmeiras, talvez desde sua primeira vinda para cá, no começo dos anos 80, mas depois aderiu de vez. E continua sendo um alvirrubro que adota o alviverde neste outro mundo pelos qual transitamos. Eu, ao contrário: gostava do Palmeiras, da cor do Palmeiras, do time do Palmeiras. 

Do Náutico, eu ouvia falar com respeito, mas era uma ideia tão distante quanto o lugar onde eu nasci -- e que, por vezes, eu confundia com outros lugares em São Paulo: perguntava para mamãe se um riacho, à beira da ferrovia Santos-Jundiaí, levava à Limoeiro, pois a vegetação e o riacho lembravam meu sítio natal, cuja memória, a bem da verdade, já ali era como o borrão de um sonho.  

E era o começo da Era Parmalat, quando as crianças se impressionavam com aqueles esquadrões e os velhos se reanimavam. Em 1993, os títulos voltaram ao Parque Antártica, mas para mim eram os primeiros títulos; o Verde tinha pouquíssimos torcedores jovens, a maioria dos adolescentes e jovens adultos eram são-paulinos e corintianos -- efeito da seca de títulos do Palmeiras dos anos 80, coisa que eu só fui saber que aconteceu depois, com certa surpresa. Torcer pelo Palmeiras era impressionante. 

Lembro daquele time estupendo, bi-campeão brasileiro e paulista de 1993-94, treinado por Luxemburgo e com craques como Edmundo, Evair, Zinho, Veloso e Mazinho. Adorava o Edmundo. Era um óbvio mau exemplo, um anti-herói, mas era ele que eu admirava. Porque além de craque, eu via sob aquela carapuça animalesca, talvez, um incompreendido. Isso na mesma época em que o Brasil levou o Tetra, quando todos diziam que o "Palmeiras era melhor do que aquele time que o Parreira levou para a Copa" -- muito embora, aquele time estivessem os nossos Zinho e Mazinho. E como eu odiei a derrota na final do Paulistão de 1995, com Viola comemorando como um porco o gol.

Mas eu lembro muito, com muito carinho mesmo, daquele time maravilhoso de 1996, que foi campeão paulista -- uma máquina, pensando bem, o melhor Palmeiras que eu vi jogar. Foi por conta do Paulistão de 1996 que entendi a geografia do estado de São Paulo: onde ficavam Ribeirão Preto, Araçatuba, Araraquara, Campinas...E como jogava aquele time. Eu nunca joguei bem, até gostaria de jogar melhor, mas não importava: era um nerd perna de pau, mas meu time era demais.

E veio a era Felipão, o futebol feio, só que duro na queda, que eu tantas vezes vi no Grêmio -- um adversário que eu adorava secar e, até mesmo, torcer eventualmente antes de Felipão virar sumidade para, recentemente, cair em desgraça. E tome disputas de títulos nacionais e internacionais. A Libertadores de 1999 com o coração saltando pela boca: sem Veloso, Marcos assumia o manto de goleiro e fazia milagres, sobretudo contra o Corinthians. A derrota para o Manchester United na final do Mundial, numa dessas ironias tristes, por conta de uma falha de Marcos. Depois, a derrota para o Boca, na final da Libertadores de 2000.

A Seleção de 2002, pentacampeã sob o comando de Felipão, além de São Marcos era a própria década de 1990 do Palmeiras: Roque Júnior, Cafu, Roberto Carlos, Júnior, Rivaldo, Edílson, Luisão -- os dois últimos bandeados para os lados do Parque São Jorge no final da década de 90, mas tá valendo. Ironias do destino, Edmílson, Lúcio, Juninho Paulista jogaram também no verde depois do Penta, talvez até Ronaldinho Gaúcho jogue. Ironia maior é que em 2002 caímos para a Série B. Efeito do fim da era Parmalat dois anos antes. Não foi acidente, mas o começo das dificuldades. 

Nos últimos tempos, algumas campanhas medianas até valeram vaga na Libertadores (2004, 2005 e 2008) e um quase rebaixamento em 2006. Só Luxa e Felipão foram capazes de ser campeões nos tempos de vacas magras. No título paulista de 2008, sob o comando de Luxemburgo com um time que tinha Valdivia, Marcos, Kleber e Diego Souza, vivemos um momento de quase voltar a deslanchar.

Era a época que eu entrei na Faculdade de Direito, justo na PUC, ali tão pertinho do Palestra. E foi aí que pela primeira vez eu fui ao estádio junto dos meus pais: justo para ver um jogo do Palestra contra o Náutico, 2x0 para o verde -- e foi a primeira, e única, vez que eu não comemorei um gol nosso. Mas foi mágico estar ali -- e mostrar para minha mãe o Marcos fazendo polichinelo enquanto o Palmeiras atacava. Foi nessa época que eu vivi a vida cá na terra dos bandeirantes como nunca.

Essa época acabou depois do time de 2008 ter sido mal desmontado. Belluzzo virou presidente, fez esforços, ma sé fato que a nova equipe montada para 2009, em meio a tantos acidentes de percurso, perdeu o Brasileirão mais ganho da história dos pontos corridos. Em 2010 Voltaram Felipão, Valdivia, Kléber e o velho Palestra Itália iria virar uma Arena para o centenário. Mas caímos ironicamente em 2012, depois de um título invicto na Copa do Brasil, quando finalmente parecia que o trabalho de Felipão ia engrenar. 

A volta do inferno da Série B e as patinadas que o time insiste em dar, ao lutar contra o rebaixamento em pleno ano do centenário, são dolorosas. Ainda há que se dar tempo para o Gareca, um sujeito de bom caráter que parece entender de futebol. E o diabo da Arena, pelo visto estará pronta tão logo. Ter sido palmeirense a vida toda, justo nessa época, foi experimentar a glória absoluta e a derrota mais profunda -- quase como numa mesma partida. Se o Palmeiras voltará a ter times à altura da sua história, só o tempo dirá. Mas aconteça o que acontecer, valeu e valerá a pena: eu nunca achei o riacho que me levaria de volta para casa, talvez porque tenha encontrado uma nova casa em meio a tudo isso. E o Palmeiras é uma das coisas que permite a isso fazer sentido.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Amantes Eternos: Paixão, Vampiros e Decadência do Mundo

Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, Alemanha-Reino Unido, 2013) do diretor Jim Jarsmusch é um filme de vampiros muito original. Você não verá aqui qualquer excesso, mas sim suavidade e um trato bastante inteligente sem cair no pedantismo: nada de vampiros adolescentes ou um thriller de ação que beira, quando não ultrapassa, o pastelão. Adam e Eve são vampiros muito antigos com uma relação amorosa igualmente imemorável, mas estão distantes agora: enquanto ele vive como um astro do rock recluso na decadente Detroit contemporânea,  ela se esconde em Tanger, no Marrocos. A partir da tensão amorosa entre os dois, nesse mundo em chamas da crise mundial, as coisas acontecem, sem que a palavra "vampiro" sequer seja mencionada.

Ele é depressivo, ama música -- e, por motivos óbvios, produz suas obras no anonimato, a qual é distribuída granças a um agente humano -- enquanto ela flana com estilo no mundo árabe, onde nutre uma amizade com um vampiro ancião chamado Marlowe -- sim, o próprio. São cultíssimos e têm bom gosto: o acúmulo dos séculos, naturalmente, lhes fez bem. Eles não saem por aí tomando o sangue de ninguém, mas conseguem sangue limpo e descontaminado junto a bons esquemas de fornecimento. Se você nunca viu vampiros assim, por outro lado, a questão é como isso poderia ser diferente se eles realmente existissem?

Por conta do agudo quadro depressivo de Adam, que pensa em se destruir, Eve vai ao seu encontro em Detroit, mas as coisas se complicam quando a irmã dela, Ava, resolve dar as caras sem ser convidada depois de muito tempo sem vê-los. E Ava é um retrato da nossa pós-modernidade: decadente, insaciável e inconsequente -- ela tira o sossego que Adam tinha em Detroit, ou no que restou da cidade. A partir daí película tem sua virada, sem nunca perder a elegância, o ritmo pausado e suave.

O vampiro, como se sabe, é uma forma mitológica que alude a alguma classe social, alguma etnia, algo indesejado que acaba retratado como tal. A imagem do vampiro é sempre um caleidoscópio, cujo resultado simbólico nem sempre é justo. Aqui, ele representa uma certa aristocracia ontológica em extinção: a qual, apesar dos ganhos causados pela civilização, ainda vive de sangue porque é de sua natureza, muito embora tenha desenvolvido, seja por ética ou pelas contingências, novos meios para sua extração -- e é, por outro lado, guardiã de uma cultura destruída pela massificação. Enfim, os nossos vampiros não são só terríveis bebedores de sangue, mas também, e sobretudo, os mecenas e até artistas ocultos da humanidade -- com quem nutrem uma relação de amor e ódio.

Se o nosso mundo é tragédia pura, Detroit falida e abandonada é segura para um vampiro justamente pelos motivos errados, o vampiro representa uma decadência com elegância. Adam é a pura depressão romântica, mas Eva é esperança: Detroit se reerguerá porque, afinal, lá existe água e, talvez, não haja porque ter tanto pessimismo com os "zumbis" -- isto é, os humanos, mas acima do humano, menos do que humano: a massa. Não há porque ser romântico.

Essa decadência elegante do nosso tempo, uma certa expressão pessimista e ao mesmo tempo leve da crise mundial, tem sido recorrente no cinema atual. Filmes como um Castelo na Itália ou a Grande Beleza suscitam isso de alguma maneira, mas com uma resolução pessimista. Em Amantes Eternos, para além do bem e do mal, os vampiros não perdem sua sede da sangue, talvez até percam as amarras civilizatórias conforme as contingências da vida, mas eles não terminam na mera contemplação ao fim da história ou em alguma busca pela redenção.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Sobre Virtù e Fortuna na Terra do Sol: Marina e a Tragédia de Campos

No meio do caminho das eleições brasileiras houve um desastre aéreo. Um desastre aéreo que ceifou a vida de um dos principais candidatos, Eduardo Campos. E a tragédia mudou tudo. Embaralhou um jogo que caminhava, por inércia, para uma vitória já em primeiro turno de Dilma. Marina Silva foi trazida novamente ao jogo. Agora, por conta disso, tudo indica que teremos um segundo turno, como confirmam as pesquisas feitas, sem muito pudor ou demora, nos dois dias seguintes à morte de Campos: [pretendente a] rei morto, [pretendente a] rainha posta. Ninguém mais perde tempo na era dos selfies e das redes sociais. Embora Marina não seja, ainda, oficialmente a candidata à presidência, há poucas dúvidas que isso deixará de ocorrer diante da verdadeira aclamação de seu nome por vários setores na tétrica oportunidade aberta. 



Depois do choque do acidente, na manhã cinzenta e turbulenta da última quarta-feira, mais três dias de luto nacional até a gigantesca cerimônia fúnebre, celebrada cinco dias depois, no Recife, terra natal do falecido, o cenário é de perfeita anomia. As coisas ficaram fora do lugar. Em um dia, Campos estava no Jornal Nacional, no outro, morto. A última vez que o destino pôs a mão nos rumos da sucessão presidencial brasileira, não se esqueçam, foi, ironicamente, no episódio da morte de Tancredo. E o fato apesar da tragédia não se aplicar a um chefe de Estado eleito ou em exercício, mas a um pretendente, não exime o episódio de gerar aquela carga que se via no antigo Império e se repetiu nas monarquias: a morte do corpo do imperador, a lei viva, enfraquece a ordem vigente e, durante o luto, nada mais é como antes, as coisas caminham incertas, embora seja muitas vezes uma incerteza reveladora.


Campos teve uma carreira meteórica, marcada pelo ímpeto e pela audácia, até se tornar um dos protagonistas do Lulismo: de ministro de Estado até governador da base governista, ele foi lugar-tenente das políticas que produziram uma verdadeira virada histórica no país, sobretudo no que diz respeito à sua região, epicentro estratégico do Novo Brasil. Apesar da insígnia socialista, era menos isso, ao contrário do avô, e mais um modernista de Estado. 

De movimentos audaciosos em movimentos audaciosos, Campos não apenas rompeu com o PT sob Dilma, mas também fez de seu partido a atração das eleições municipais de 2012, lançou-se candidato à presidência -- quando todos achavam um blefe -- e ainda admitiu em sua chapa a ex-concorrente e colega de ministério Marina Silva -- a qual ficou alijada da disputa por não conseguir formalizar seu partido a tempo das eleições num episódio controverso.


Muitos falaram em fortuna, remetendo a uma leitura fraca de Maquiavel, como se simplesmente o acaso tivesse aparecido e mudado todas as certezas de uma eleição que caminhava, grosso modo, para a reeleição de Dilma. Já Marina prefere crer na intervenção de uma providência divina, que a salvou do pior, uma vez que poderia estar no mesmo voo. O fato é que as coisas parecem menos aleatórias ou divinamente preparadas. 

Essa "fortuna", possivelmente, é de outra ordem. A fortuna é a fortuna sob o capital e a fortuna que lhe escapa. Se fortuna é a sorte, por outro lado, seu uso metafórico para designar riqueza se consagrou: mas a riqueza não aparece, nem se mantém, aleatoriamente. Riqueza, concordam Smith e Marx (e Marx por causa de Smith!), vem do trabalho. Essa fortuna, pois, diz respeito das vultuosas quantias sobre as quais falamos diariamente quando falamos sobre economia política. Um fluxo de riqueza administrado pelo capital, o qual é dependente de uma classe política profissional, destacada da sociedade, fluída e desterritorializada de partidos políticos sólidos ou o que mais lhe possa atar -- o partido é, sobretudo, unidade econômica, casa de um senhor só que manda e desmanda. O que não quer dizer que não haja matizes ou que não haja resistências ali ou acolá, mas o grosso do sistema é isso.


A Nova República é feita do grande capital -- nas suas cisões e seções, a grande indústria, os bancos, o agronegócio --, mas também das grandes estruturas do Trabalho como as centrais sindicais -- e também de poupudos fundos de pensão que gravitam em torno delas, hoje mais importantes do eventuais bases de trabalhadores. Isso tensionado com uma organização do trabalho que se modificou duramente nos últimos anos, assumindo a forma de redes resistentes e exigentes. Um novo trabalho no qual temos uma multidão no lugar do proletariado industrial e, também, a metrópole no lugar da fábrica.

Nesse mundo, os arranjos políticos fracos e personalistas fazem com que a morte de um único ser humano operem mudanças. Candidatos, infelizmente, podem morrer durante o intercurso de uma campanha eleitoral, mas aqui eles não têm instituições partidárias sólidas para impedir que isso signifique, muitas vezes, a morte de um projeto ou sua transformação. Ainda que os limites demandados e impostos pelo mesmo sistema sejam cada vez mais estreitos -- e reativos a transgressões e ultrapassagens. Não existe "acaso", mas os efeitos necessários das possibilidades óbvias. 

Que deseja Marina, afinal? Certamente a manutenção sofisticada desse mesmo sistema, mas com a mera gestão, e não a governança, da "economia", preservada como uma reserva natural, uma vez que o estágio atual não admite qualquer eficácia em uma "intervenção" qualquer naquela esfera -- que deve ser, portanto, administrada por seus técnicos, como um André Lara Resende; por outro lado, a "superestrutura" se torna espaço de composição, a única área de atuação possível de um futuro governo. Há um certo ideário marxista de formação bem longínquo que, no entanto, cede lugar à democracia liberal como forma acabada, resultando na produção do sujeito do multicultural, de diferenças diluídas por um sistema universal.

Não é um projeto que deixe de ser reformista, mas não o é, em si, forte para se sustentar enquanto tal, para não capitular às linhas fracas de sua própria composição como às pulsões suicidas inerentes ao neomalthusianismo de ocasião -- que põe no consumo, por parte dos pobres, e não na superprodução, para a especulação, os efeitos da devastação ambiental -- ou a outras tendências apocalípticas ou catastrofistas podem ser muito bem apropriadas pelas elites. Quando a crise ambiental é pensada a partir do fim do mundo, ajuste por recessão ao sabor do mercado financeiro -- que, no Brasil, é uma máquina completamente anômica -- e santuarismo podem sim andar de mãos juntas. 

Marina não é menos economicista do que Dilma, apenas faz opções diferentes para a economia,  nem Dilma é menos "superestruturalista" ao fazer exatamente o inverso dentro do mesmo, isto é, governar a "economia" enquanto trata como penduricalhos -- rifáveis, inclusive -- tudo que estaria posicionado como exterior à esfera econômica.   Os costumes brasileiros, pensa Dilma, são assim mesmo pelo "estágio" da nossa civilização, portanto, é preciso trabalhar a partir de largos consensos mesmo que, por vezes, isso exponha as minorias, enquanto o desenvolvimento econômico ainda não dá conta de produzir o salto necessário. Em ambos os casos, é um pouco de um marxismo formalista e positivista de formação, que cinde "economia" das "outras coisas" e, nesse binarismo, faz opções de como articula-las.

Marina, aliás, pensa o mesmo da economia, do neoliberalismo, pois este só seria superado com o salto dado a partir da cultura, da formação de uma nova subjetividade, o qual não seria propriamente um cidadão emancipado, mas enquadrado em um regime de "tolerância" e "diversidade", enquanto temas sensíveis aos direitos civis seriam deliberados por plebiscitos como nos casos do aborto ou da descriminalização do uso da maconha. Mas se num libelo de tolerância Marina diz que o problema não é que um Feliciano seja evangélico, mas sim intolerante com os direitos humanos, o que é correto, por outro lado equipara uma  "cristofobia" à "homofobia" -- como se os homossexuais estivessem ou pudessem estar aí atacando cristãos (?!). Se não há uma formulação que determine o que é a parte majoritária ou minoritária da relação de poder, nos pegamos no mínimo diante de uma situação potencialmente perigosa.

Fato incontestável é que agora as eleições começaram. Porque Marina tem por trás de si, à base da nova economia ambiental e do setor financeiro, um bloco de poder que se usa, e é usado, por seu programa reformista, pareando-a com Aécio e Dilma, que como representantes de PSDB e PT já tinham essas condições há muito tempo. Curioso notar que venceria quem se aproximasse realmente, de corpo e alma, do continente desconhecido da nova composição de classe brasileira, mas a ordem é governa-lo e contê-lo, não se agenciar com ele. O desarranjo provocado pela entrada de Marina no jogo apenas cria uma tensão nas alturas, mas está longe de marcar um fluxo constituinte que faça nosso sistema sair da mesmice.  


domingo, 17 de agosto de 2014

O Estado como seu Duplo: Regra e Exceção, Gêmeas Siamesas

Assim Falou Zaratustra...
Texto-plano da minha fala apresentada no colóquio Democracia, Poder Constituinte e Estado de Exceção do ciclo Korpobraz, feito em parceria entre a Casa de Rui Barbosa e a Uninomade na última quinta-feira, 14 de agosto, no Rio de Janeiro.

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No Brasil contemporâneo, a prisões arbitrária de diversos ativistas, as variadas perseguições a qualquer um que destoe da música oficial, a recriação de inúmeros aparatos de repressão dentre outros fatores fazem com que o fantasma do estado de exceção retorne à ordem do dia. Esse fatos constituem um evento em sentido ontológico: não apenas o momento cronológico onde as coisas "aconteceram",  na forma de um corte narrativo objetivo, mas o plano próprio no qual o permanente fluir das coisas -- com suas idas e vindas -- encontram alguma consistência. Assim, nós vemos a reunião de acontecimentos inéditos, repetições e, também, velhos fatos que permaneciam ignorados, invisíveis ou sem significado vindo à luz.

Enfim, temos coisas novas acontecendo e, junto disso, velhos componentes que aí permaneceram se tornando relevantes, fazendo sentido ou, até, sendo ressignificados. Os ativistas presos é uma novidade, mas isso, visto em junto com o funcionamento há muito questionável das polícias, ministério público e judiciário, ganha uma novíssima qualificação. Estaríamos, pois,  diante de um fantasma que julgávamos esconjurado? 

O "estado de exceção", esse fantasma enigmático, tem em torno de si uma névoa dada pela doxa do irmão maligno: a exceção, o momento da suspensão de direitos e garantias individuais vigentes, só poderia pertencer a um regime autoritário -- assim tornando impropriamente ou pelo fato que nunca o deixou de ser --, sendo o gêmeo maligno do estado de direito; enquanto sob o gêmeo mau vivemos sob permanente insegurança face às autoridades que deveriam nos defender, abaixo da luz do gêmeo bom há direitos, segurança e paz, salvo se ocorrer um acidente.

Diante dessa premissa, o evento em questão nos colocaria diante de três hipóteses recorrentes. Isso poderia ser um acidente pontual, em relação ao qual nossa democracia teria por obrigação remediar e corrigir. A outra hipótese remete ao fato que estamos testemunhando o retorno aos "tempos da ditadura", uma vez que esse acidente não foi pontual ou, então, foi grave demais, nos colocando na prática de volta sob a égide de um regime autoritário. Por fim, a noção de recorrência ou gravidade do acidente revelaria outra verdade histórica: que, talvez, jamais saímos do "período de exceção", que nossa democracia é uma farsa criada pela ditadura para se manter.

As três hipóteses, no entanto, são frágeis. Pois elas não nos permitem nenhuma problematização do interior do sistema. O chamado "estado de direito" só poderia ser perfeito, logo, qualquer problema verificado em seus mecanismos seria algo pontual ou aludiria ao retorno ou à evidência da persistência oculta da "ditadura" -- uma referência à ditadura militar de 1964-1985, aparentemente o único momento de repressão generalizada considerado "fora da curva" pelo imaginário histórico brasileiro, notadamente positivista.

Dentro dessa ilusão de ótica positivista no campo histórico temos, no que toca ao conceito de "Estado de Exceção", um debate ainda incipiente marcado pela análise do legado da ditadura militar ou, no campo da filosofia, pelo debate em torno do projeto homo sacer do filósofo italiano Giorgio Agamben, da problematização do tema na épica trilogia de Negri e Hardt e, mais remotamente,  algum reminiscência dos debates realizados no entreguerras por Carl Schmitt, Hans Kelsen e Walter Benjamin.

Se "estado de exceção", como noção ontológica-política central, é algo que surgirá, não à toa, em torno do avanço nazi-fascista na Europa, sua retomada nos dias atuais se dá em cima de um trauma importante: a percepção de fracasso da utopia constitucional-liberal na esteira dos abusos da Era Bush Filho e, em seguida, com a sistemática suspensão de direitos fundamentais como prática regular em muitos países ricos durante a crise econômica mundial.

Não que antes da problematização de Carl Schmitt, um dos pensadores mestre do nazismo, ainda não houvesse a figura do estado de exceção nas cartas constitucionais modernas, ou mesmo sua aplicação: o que Schmitt fez, pelo bem do desenvolvimento do sistema nazista, foi sua sistematização, ele criou uma filosofia e uma ciência da exceção para permitir um uso procedimental coerente daquele artifício.

Declarar a exceção para Schmitt seria, em último caso, não desfazer o sistema constitucional-legal, mas suspendê-lo, conforme os interesses em jogo, pelo tempo e da forma que fossem necessários. O soberano schmittiano, condutor de um povo etnicamente homogêneo em relação ao qual ele nutria fidelidade absoluta por razões de sangue, aplicaria ou suspenderia Lei conforme seu arbítrio, como um pai amoroso que diz e até se contradiz pelo bem de sua família. 

De outro lado, Hans Kelsen, ao contrário do que parece, surgia com uma outra forma de platonismo que apesar do aparente formalismo, era um sistema complexo que, no limite, reconhecia a soberania estatal plena, ou a possibilidade para tanto, com um direito meramente estatal e fundado na possibilidade de auto-subversão pela ordem da autoridade, isto é, o "intérprete autêntico": o capítulo VIII da Teoria Pura do Direito deixa pouco espaço para dúvidas nesse sentido.

É Walter Benjamin que, de modo incrivelmente audacioso, proporá o estado de exceção verdadeiro, assentado na história -- na "tradição dos oprimidos" -- que suspenderá a própria Lei. Ele não é congelamento tático de dispositivos legais, mas abertura permanente para uma revolução permanente, para além do regime das obrigações. Agamben, Negri e Hardt, quando se deparam com a decadência das ilusões constitucionais liberais no pós 11 de Setembro têm, cada qual à sua maneira, a ideia de estado de exceção verdadeiro de Benjamin: exceção que não se referencia pelo limite negativo, ou pela dívida infinita (o dever absoluto em relação ao Estado e suas misteriosas razões), mas pela própria superação de limites -- seja pela libertação do direito ou pela libertação no direito.

Essa lembrança sobre o estado de exceção, a diferença entre um estado de exceção soberano e o verdadeiro -- ou multitudinário -- servem, no plano prático para nos desfazermos de nossas próprias superstições -- como se as garantias e direitos constitucionais fossem saltar e se realizar automaticamente para nos salvar -- e, assim agirmos; as prisões de manifestações e a repressão que há um ano atingiu níveis perigosos é um evento da ordem da investida imperial de Bush Filho: são quadros igualmente horríveis, mas que atentam para a necessidade de colocarmos fim nas nossas ilusões.

O Estado brasileiro não mudou nos últimos meses. Não houve qualquer transformação não declarada.  A possibilidade de fazer o que fez sempre esteve lá como potência concreta desse sistema. Não há o gêmeo bom e o gêmeo mau, mas sim gêmeos siameses: duas cabeças que compartilham o mesmo corpo. Antes de ser "de direito" ou "de exceção" temos o Estado e seu dualismo complementar.

Tira bom e tira mau, o senhor e o capataz, o presidente e o ministro da casa civil, o diplomata e o espião: Estado como dualismo, regra e exceção são gêmeas siamesas: Aura Mazda e Arimã, ainda Zaratustra, como nos primórdios dessa nossa tradição que é tanto mais persa do que semita. Bem e Mal simétricos e, em certa medida, mutuamente necessários.

A partir daí, a máquina política é glória absoluta aparente e violência oculta. Captura as conquistas sociais na forma da lógica da outorga -- como se o STF tivesse "feito" a união civil entre casais homossexuais ou Getúlio tivesse feito a CLT e não os movimentos constituintes (de direito) -- e age na forma da violência absoluta quando necessita  e tem condições objetivas para tanto. O Estado concede e captura quando limitado -- e violenta quando não sofre pressão.

A questão não é a luta por dentro, a luta meramente institucional (de Estado), versus a luta nos movimentos, mas uma luta que venha de fora (da subjetivação do Estado) para dentro da máquina: sem ilusões de que garantias e direitos tenham vida por si, ou pela graça divina do Estado, mas apenas quando assumidas por Ele como verdades práticas. Atividade militante capaz de atuar nos mecanismos da máquina sem crer em sua religião, sem sentir culpa pela profanação. Nada de "Estado de Direito Democrático", mas sim, à maneira de Clastres, Democracia contra o Estado por meio de um direito comum feito na prática e em conformidade com as necessidades materiais. 



quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O Iraque, a História e a Guerra Eterna

História de Amor do Rei Gilgamesh em Uruk
O Iraque é o berço da civilização.  Uruk, Iraque, na Terra dos Sumérios. A cultura feita sistema de objetos técnicos pela primeira vez. Monumentos, escrita, cidades, essas coisas. Nos milênios que se seguiram, o Iraque foi ocupado por variados povos: acadianos, persas, árabes, otomanos -- mas, a rigor, a etnia majoritária do país é árabe há pelo menos quatorze séculos, com a minoria curda no norte desde tempos imemoráveis -- todos maturados por séculos sob o domínio implacável dos Império Otomano. O Iraque é múltiplo, vira-lata e antigo.

Mas em tempos de fim da História, o país é globalmente notório pela guerra. Não uma guerra qualquer, mas sim aquela que se emergiu como espetáculo total. A primeira guerra relevante da nova era, nos suspiros finais da Guerra Fria, o supra-sumo da era da televisão: Saddam Hussein, o senhor do fim dos tempos, foi derrotado pelas tropas americanas armadas com a mais alta tecnologia -- com direito à cobertura ao vivo da CNN. Os americanos deixavam de vez o fantasma do Vietnã: venceram rapidamente a guerra e derrotaram o inimigo interno, isto é, sua própria opinião pública; a crítica da imprensa americana morreu quando os jornalistas foram tornados capelães midiáticos, avançando junto das próprias tropas americanas, das quais suas vidas, aliás, dependiam. 

Para que as corporações de mídia se interessariam em denunciar eventuais abusos e falsificações se, de repente, poderiam transmitir o conflito na forma de um show de TV? O mesmo aconteceu em 2003, na esteira dos atentados de 11 de setembro, quando Bush Filho falou que o regime de Saddam possuiria "armas de destruição em massa" -- e ninguém investigou aquilo seriamente. Não era só o fato de que havia uma comoção social na América, mas sim que se guerra acontecesse, nem a CNN, nem a Fox, perderiam dinheiro ou audiência, muito pelo contrário.

A invasão do país, a destruição definitiva de Saddam e seu enforcamento bárbaro geraram um problema elementar. O que os americanos deixariam no lugar? Na verdade, não deixaram nada. Procuraram meios de retirar suas tropas e assegurar o controle de suas corporações sobre a riqueza petrolífera do país. Depois de anos numa ocupação longa, dolorosa e, sobretudo, caríssima para os cofres públicos de Washington, Obama promoveu a saída das tropas para se livrar da maiores problemas.

Obama deixou no poder um governo fantoche, montado em uma discreta aliança com o Irã, sob o controle da maioria xiita, excluindo os sunitas do poder. Enquanto isso, os curdos ao norte continuariam a receber algum afago para garantir, sobretudo, a extração petrolífera. A incompetência extrema, a incapacidade em instituir um ciclo virtuoso que levasse a alguma saída da espiral de miséria e violência, as vacilações levaram, em poucos anos, o Iraque "desocupado" se tornar um alvo fácil para "infecções oportunistas". Agora, isso deixa o Iraque na mira do ISIS, o bisonho movimento fundamentalista islâmico que atacou há bem pouco a Síria, sendo protagonista da guerra civil que violentou, e ainda violenta, o país vizinho.

Num jogo muito complexo, a Síria sob a ditadura laica da família Assad -- de direita fascista -- mas em aliança com o Hezbollah -- e consequentemente com o Irã -- se viu atacada por uma leva fundamentalista inominada. Mas com o apoio financeiro, militar e político de russos e chineses, o regime sírio, ao menos por ora, para "estabilizar" a situação com a manutenção do regime. As hordas fundamentalistas, então, avançaram sobre o Iraque onde já tinham atuado nas guerras civis que precederam a queda do regime de Saddam.

O ISIS, por outro lado, é um fenômeno desfocado, em relação ao qual conhecemos pouco suas origens. Mas ele é sunita e inspirado na doutrina wahabita, que domina a Arábia Saudita. Muito leva a crer que o regime da sudita não só não está ameaçado por ele como, também, parece se beneficiar da atuação do ISIS nas áreas onde a paz persa, sob a atuação de governos e forças xiitas, parece imperar. A disputa parece ser, no seio do islamismo, entre o xiitas sob a orientação do clero iraniano personificado no Aiatolá contra a influência do rei saudita que, sob o apoio americano, comanda um regime absolutamente intolerante na sua particular leitura do islamismo.

Uma parte relevante do discurso das vantagens de apoiar o ocidente contra o islã, em nome da liberdade, cai por terra quando pensamos que o regime saudita é sustentado por Washington. Pior, que inúmeros regimes laicos foram derrubados ao longo do tempo pelo ocidente ou, simplesmente, pelos americanos. A conta não fecha. A destruição promovida pelo ISIS e o risco de desestabilização absoluto do Oriente Médio levou a uma nova ação americana, com o bombardeio de bases rebeldes no norte do Iraque. Mas foi a brava resistência do partido comunista curdo, que testemunhou a aliança promíscua de turcos e do ISIS na guerra civil síria, que hoje evita uma tragédia maior.

Alguns sunitas iraquianos, fanatizados e oprimidos pelo governo xiita, aderem ao ISIS num surto irracional muito bem orquestrado, que desestabiliza fronteiras e expõe fraturas expostas da região. Na era do fim da história, no fim dos tempos, é irônico ver que o berço da civilização é alvo da destruição bárbara que sequestra civis, destrói museus e avança como um peste de gafanhotos. A disputa entre autoridade da teocracia xiita da Pérsia e a excentricidade dos wahabitas sauditas, a própria disputa sobre os rumos do Islã, é central em tempos nos quais os sócios disputam o poder do Império numa reconfiguração da ordem global que tenderá a ser muito dolorosa -- mais até do que pensávamos.





domingo, 10 de agosto de 2014

A Revolução Ainda que Tardia: Lenin e o Século 21º

Estátua de Lenin em Seattle
Desde cedo, muito cedo, a União Soviética e o Comunismo me despertaram a curiosidade. Como poderia ter havido um mundo no qual as coisas funcionaram de um modo diferente? Por que e como ele acabou? Por que a via triunfante, por outro lado, não parecia ter resolvido os problemas dos humanos como, ainda, parecia tê-los agravado? Como suportar um mundo fechado num pensamento único, sem brechas no qual estamos fadados a cumprir um destino incerto, em marcha? A minha investigação sobre isso é uma obsessão que me acompanha até hoje. Inevitavelmente, isso me levou a pensar, à geografia e a história do evento -- as rússias -- e à sua "ontologia", sua conceitualística -- o que foi, como foi, por que foi o Comunismo? O ser por meio do mapa e da narração, o devir como conceito.

Quando o mestre Bruno Cava retoma a discussão sobre Vladmir Illytch Ulianov, o Lenin, em pleno 2014, me vejo tentado a entrar, pelo bem da copesquisa militante, na discussão.  Seguindo o estilo proposto por Cava, vamos por pontos:

1. Qual a relevância de (ou que pode ter) Lenin como personagem conceitual nos levantes multitudinários contra o Império?

A personagem conceitual é algo tão velho quanto a História da Filosofia. Sócrates, embora possivelmente tenha existido mesmo, importa como personagem conceitual de Platão, como sujeito enunciador de determinados conceitos. Se a diferença entre a literatura e a escrita vulgar é que na primeira, ao contrário da segunda, o escritor não faz personagens de si mesmo, na literatura filosófica, o filósofo não tem como falar apenas por si como conceituador onisciente. Na filosofia contemporânea, Deleuze retomou essa prática, pois antes de ser filósofo, foi historiador da filosofia: ele tratou, já ali, de se livrar da maldita pretensão de retratar de maneira "objetiva", "perfeita" e "fiel" os pensadores e seu sistema conceitual, uma vez que nisso reside uma impossibilidade e, quem sabe, uma desonestidade; o Platão narrado em 2014 jamais será o Platão da Antiguidade, mesmo que o historiador da filosofia não aceite isso. E se quiser, fará como tantos escolásticos que na imparcial tarefa da cópia, cristianizou o Filósofo antes da vinda do próprio Cristo. Deleuze não "se apropria" de ninguém, ele, na verdade, "expropria" essas reservas de saber, fazendo-os planos de consistência mínimos para criar conceitos. Isso não é "trair" o pensamento de ninguém, mas se situar em uma das muitas faces dos gênios e, daí, criar um novo mundo. E é nesse sentido que, possivelmente, Cava se agencie com Lenin: o velho revolucionário como personagem conceitual, uma espécie de espírito material que permite ao filósofo, como cavalo, parir um novo mundo. Cá com meus botões, concordo com isso. A nuance de Lenin que talvez interesse para este novo mundo em ebulição é a daquele que, como incorporador do espírito marxista fez a revolução sair da teoria para tomar as ruas. Agora, como incorporado, a questão é o que ele poderia nos dizer diante dos nossos impasses atuais, sobre tudo sobre o problema central: como atar a horizontalidade, a forma de rede e a liberdade à necessidade de fazer o movimento efetivar suas pautas? De um lado, existe o risco da impotência para manter os princípios, do outro, o autoritarismo colateral ao pragmatismo. Em outras palavras, Lenin teria, ao menos a priori,  importância por ter sido o desdobrador do nó que havia entre centralismo (organização) e democracia (subjetividade), cuja solução seria capaz de disparar o processo comunista (a revolução). 

2. O Triângulo do Leninismo, organização-revolução-subjetividade, em termos práticos, nos serviria?

Aceitando o plano triangular do sistema conceitual leninista, teríamos um encontro com o Édipo, o que poderia ser simplificado com um "isso parece cristianismo com sinais fora do lugar" -- embora falemos uma estrutura muitíssimo pré-cristã. É como se eu dissesse espírito santo-pai-filho. Então, na verdade, estamos falando em organização-revolução-subjetividade. O filho vem no meio, ocupa o entre, embora seja derradeiro na fórmula. Há milhões de questões nisso, mas supondo que isso possa ser um uso anedipiano do Édipo, a que nos interessa é se esse pai poderia conceber esse filho -- e este filho pudesse resolver o impasse que há entre pais e filhos. Como fazer uma revolução que seja capaz de abolir a praga da organização -- e até da sujeição e da subjetividade -- partindo de lá? Passemos ao ponto seguinte.

3. Lenin e os impasses de Marx em torno do Estado e a Revolução: ele os aumentou ou diminuiu?

Lenin tem um livro, não à toa, chamado o Estado e a Revolução. Ele o escreveu criando procedimentos práticos para responder questões deixadas em aberto por Marx. Mas era um Marx ainda muito hegelianizado, conforme o legado intelectual do Gênio alemão conhecido à época: Lenin, que morreu em 1924, portanto não conheceu em vida a dimensão completa do velho Marx, coisa que só veio à tona com a publicação de algumas obras dele -- como os Grundrisse -- após sua morte -- ou mesmo obras de sua juventude tardia -- a como a Ideologia Alemã. Do derradeiro Marx, então, nem se fala. Isso é uma questão importante. Marx era contra o Estado, mas não acreditava, como Lenin, na sua destruição por "decreto"; ele apostava em um determinado caminho de destruição do Estado pelo desmonte das condições objetivas que o possibilitavam, uma vez desencadeado o processo revolucionário. Esse raciocínio de Marx em termos lógicos é preciso, mas talvez o que nem ele, nem Lenin, conceberam é a dimensão ontológica do Estado, mas também como ele se articula com a sociedade -- e as suas classes. Marx colocava Estado, sua abolição e a luta de classes nessas posições do enunciado porque partia de uma premissa, questionada por Bakunin dentre outros, que pontificava o seguinte: a existência de classes sociais é o que impõe a existência do Estado. Mas e se fosse o contrário, se, na verdade, é o Estado o que impõe a existência das classes sociais? A questão do descaminho do Estado revolucionário perpassou o marxismo como um fantasma. Lenin não foi pouco criticado por aceitar a premissa marxista, mas ele propunha a ideia do comissariado e do poder da base, a qualquer tempo, revogar a qualquer tempo o "mandato" daqueles que abusassem do poder, que desviassem a revolução. Isso, no entanto, pareceu dar errado. A experiência prática soviética demonstrou que a abolição das velhas classes, com a manutenção do Estado -- ainda que um Estado "proletário" --, levou a criação de novas classes sociais. Lenin entendia que o aparente sucesso revolucionário não abolia as classes sociais, mas ele pensava que o surgimento de uma nova divisão de classes, no bojo de uma sociedade revolucionária, só se daria como acidente. De fato, isso não foi aconteceu no século 20º. O Estado, uma vez mantido, não só não "definha" como se mantém e recria a sociedade de classes. Talvez um contato com o último Marx, um Marx selvagem, poderia ter ajudado Lenin a observar determinados pontos de fuga: as pulsões, a pré-psicologia das massas, a potência de determinados "arcaísmos" -- como a comuna russa, a obshchina -- existentes em simultaneidade com o "moderno". O Marx que encontrou Morgan talvez fosse capaz de pensar que as comunas rurais, que estavam para eles como estão nossas aldeias indígenas e quilombos, apontam por um além-do-estatal que jamais foi sob o Estado; Lenin, no entanto, destruiu a comuna rural, transformou os sovietes em órgãos sem corpo e apagou o legado dos narodniks porque não tinha essa referência.

4. O fracasso de Lenin invalida seu legado conceitual?

Não, nem invalida seu legado histórico. Lenin é o maior derrotado do século 20º, sua revolução foi solapada pela burocracia com a qual se aliou -- e que confrontava ao mesmo tempo em que colaborava -- e o sistema se fascistizou. Ainda assim, ele foi paradoxalmente seu maior vencedor, pois o exército vermelho derrotou, por vias tortas, Hitler e, também, ele não pode ser responsabilizado pelos crimes de Stalin. Isso não faz com que ele mereça ser lembrado pela "obra" que edificou, isto é, ter feito a revolução que Marx vislumbrou e não fez. Na verdade, Ulianov merece ser lembrado por disparar o devir revolucionário da Rússia do seu tempo: não é no plano do ser que reside a importância de Lenin, mas no plano do devir, do fluir da existência, quando ele tornou a Rússia uma outra em muito pouco tempo. Entre as muitas tentativas e erro, havia um Lenin menor, justamente quando ele se pôs menos a serviço do futuro, da obrigação e dos universais e mais a uma liberdade arriscada, ousada e despretensiosa. Ainda que tenha tentado resolver os impasses de sua gente, e da humanidade, no plano da Consciência, o que ele fez colateralmente no plano dos afetos manteve uma chama que impulsionou um país medieval ao cosmos em poucas décadas, permitindo uma liberação intensa do desejo.

5. Lenin monumento, Lenin condutor: o que fazer?

A questão anterior praticamente rechaça esta, mas ela deve ser enfrentada. Lenin como monumento não interessa a priori, mas num segundo momento até vem ao caso dependendo de onde e como proliferem, p. ex., estátuas do líder russo: nem que seja de um jeito kitsch em Vegas, seus monumentos no ocidente são uma bela provocação, mas que os derrubem no Leste. Pois a existência dos dois fenômenos, ainda que aparentemente em contraposição, caminham na mesma direção: uma estátua de Lenin aqui é contra o poder, lá é a favor. E Lenin como condutor -- e, afinal de contas, como múmia -- é o tipo da coisa que Stalin e os seus fizeram com o intuito deles próprios lhe fazerem as vezes.  Isso precisa ser rechaçado.

6. Teoria do Partido

Esse Lenin menor e contra-o-Estado (ou quase) não incorpora uma nova teoria do partido. Ou não do partido como o conhecemos. O partido leninista, apesar da evidente influência kautskyana, buscava em sua arquitetura exprimir a arquitetura do que mais transformador havia, a fábrica (e Cava concorda com isso); hoje, um leninismo vivo impõe um partido, ou um novo instrumento político, que assuma o design dos principais deflagradores de novas tendências -- como a rede, a metrópole, o movimento/coletivo -- servindo como organizador político do social sem estar engessado em si mesmo.

7. Lenin no Império.

Um elogio a Lenin, que talvez se possa estender aos bolsheviks em geral, é que eles pensavam a opressão capitalista não em termos de etapa e de acidentes do subdesenvolvimento. O "atraso" da Rússia era causa e efeito dos "avanços" da Europa, as economias estavam integradas como a periferia de uma metrópole está ligada a seu centro. Os mensheviks, ao contrário, pensavam em "desenvolver o capitalismo" na Rússia para que exauri-lo, algo que veio à tona anos mais tarde, inclusive de partidos comunistas, sobre a tese explicadora do fracasso soviético: seria impossível o socialismo triunfar "num lugar como a Rússia". O que os mensheviks, etapistas, eurocomunistas e quetais não viam é que os Estados não são unidades separadas uns dos outros, não havendo interação econômica entre eles e uma consequente divisão internacional do trabalho -- gerida pelos próprios Estados. A União Soviética deu errado porque em vez de enfrentar a questão do desenvolvimento desigual, ela procurou, enquanto Estado, "se desenvolver" em relação ao mundo capitalista se utilizando de seus paradigmas -- um erro que começa com Stalin e se aprofunda com todo o revisionismo, no qual a palavra de ordem era "equiparar para ultrapassar", coisa que Guattari e a oposição de esquerda francesa tinha consciência. A União Soviética jamais teria triunfado em escala global, mas se isso tivesse acontecido, ela teria reinado como potência imperialista -- como muitas vezes ela calhou de ser na África e na Ásia Central. Lenin e os velhos bolsheviks, Trotsky à frente, tinham clareza quanto a esse equívoco. Quando pensamos sobre este Império Global, no qual o capitalismo domina toda parte usando-se das estruturas dos estados-nação como ferramentas, o pensamento de Lenin é atual.

8. Lenin contra as maiorias

Charles Bettelheim opunha Lenin a Stalin na medida em que o primeiro impunha ao partido um norte que fugia ao convencional, o normal e ao senso da maioria. Stalin, ao contrário, sintetizava os anseios, as demandas e o ideário médio dos burocratas para prevalecer. O stalinismo só existia em maioria, tendo apoio da maioria e, por isso, ele criava a todo momento as condições objetivas para uma ditadura da maioria: a apresentação de tempos em tempos de inimigos, a dogmatização de consensos momentâneos (inclusive morais) e a paranoia generalizada. Lenin, ao contrário, desafia o a normalidade, propondo em seu lugar a ousadia revolucionária. Essa faceta de Lenin é uma das possíveis para a personagem conceitual do Lenin de (e pelas) minorias, o Lenin menor.

9. Lenin versus Rosa: Democracia ou Socialismo?

A melhor crítica a Lenin, em seu tempo, está na obra da revolucionária  polonesa Rosa Luxemburgo. Há três textos centrais de Rosa, Reforma ou Revolução (1905), um tanto mais introdutório e genérico, Estagnação e Progresso do Marxismo (1903) e, sobretudo, a Revolução Russa (1918). Vamos nos ater ao último, no seus capítulos IV e, sobretudo, capítulo V. Na Revolução Russa critica, com razão, o grande engano dos bolsheviks é, à sua maneira, assumir uma dicotomia que os social-democratas alemães usavam há muito, isto é, "ditadura do proletariado" ou "democracia burguesa". Se a democracia burguesa era, desde sempre, democracia para as camadas altas e médias e supressão de direitos dos pobres e trabalhadores, por outro lado, o "outro" que Lenin e Trotsky afirmaram era uma ditadura nos termos de um Estado comandado pelos líderes da revolução: no lugar da democracia de porta dupla dos burgueses, um regime de força sem liberdades. É a partir daí que Rosa, com acerto, interpreta o conceito marxista de "ditadura do proletariado" -- que seria um mandato temporário e de emergência encabeçado pela vanguarda proletária -- nos termos de uma democracia socialista: democracia plena para todos, com plena constituição de direitos, mesmo quando para se defender da violência reacionária. Rosa tinha razão. Se a revolução em sua fase destituinte, nos termos de Lenin, só poderia ser aclamada como um sucesso, sua fase constituinte de um novo mundo só poderia ocorrer com democracia. Do contrário, o fundo do poço nem seria o limite como, de fato, aconteceu. O Lenin menor só pode ser um Lenin convencido de seu fracasso, o Lenin que teria sido homem do Estado acidental caso tivesse vivido mais. A outra contradição que Rosa aponta no mesmo texto,  o desastre da política agrária leninista -- a qual geraria uma armadilha maior ainda e foi a brecha e a justificativa para a ascensão implacável de Stalin --, se deve, embora ela não aborde isso diretamente, ao desprezo da instituição agrária que  não era "pré-capitalista", mas sim que jamais-foi-capitalista. Será que a potência das comunas russas, e das nossas aldeias e quilombos, não seria maior do que o estímulo aos produtores agrícolas capitalistas?

10. Lenin no Brasil de Hoje?

O Leninismo é parte da nossa história e, a bem da verdade, inspira a esquerda de forma difusa. Como doutrina própria, só mesmo em pequenos partidos de esquerda, de forma ortodoxa, o que, pela falta de conexão com o tempo, os obriga a ficar entre o sonho e a adesão (eternamente) tática de defesa de políticas social-democratas. Que o déficit de efetividade das manifestações não se torne caminho para um "Leninismo crítico", uma reterritorialização ainda-no-Estado, mas para um Leninismo menor assentado nas noções de: (1) vanguarda como tendência contra-maioria; (2) internacionalismo, ou dimensão global, da luta contra a opressão sistêmica; (3) utopismo  material e além-do-voluntarista da ação prática; (4) novidade e tendência de inovação; (5) consciência da relevância do seu plano conceitual, apesar de sua derrota e de suas vacilações, o que impõe a aplicação do método marxista de análise de composição de classe ao olhar para dentro do Estado, voltando-se contra ele; (6) certeza que os anarquistas podem ser qualquer coisa, menos ingênuos; (7)  democracia socialista em Rosa Luxemburgo.








quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Esquerda Caviar, Direita Fast Food

Junk Food People -- Joe Maccarone
Essa conversa de "esquerda caviar" é o cúmulo da infantilização do debate político-ideológico. E eis que agora ela voltou à cena, com o termo sendo empregado pelo douto magistrado paulista, e professor, Marcelo Matias: ocorreu, pasmem, na decisão que negou a soltura de Fábio Hideki e Rafael Lusvargh, os dois ativistas presos sob falsa acusação de porte de explosivos em uma manifestação -- falsidade que nem a Folha de São Paulo, em editorial, ousou discordar. 

Mas voltemos ao nosso pálido espectro. Embora cá no Brasil a ideia de "esquerda caviar" tenha sido, recentemente, popularizada por Rodrigo Constantino -- um jovem inseguro e "liberal", que aparece aqui neste vídeo, levando uma surra homérica num debate com Ciro Gomes --, ela tem uma origem mais antiga. Aparece, segundo se sabe, na França, saindo da boca dos detratores de 1968, os mesmos que atacariam logo mais o governo Mitterrand -- contra o qual se voltavam, sobretudo, por sua política interna pró-direitos civis e direitos humanos: mas isso vinha tanto dos direitistas fanáticos quanto da esquerda (euro)comunista, a qual não se conformava com os desvios "burgueses" e a política "mole" do líder francês. Contra a política praticamente neocolonial mantida pelos socialistas em África, nem um pio. 

O deboche da "esquerda caviar" sempre foi uma espécie de pacto Ribbentrop-Molotov das bravatas: unia fascistas e stalinistas na mesma estranha, e boçal, aliança. O termo, apesar do tom aparentemente bem humorado, esconde uma visão persecutória e criminalizadora: sempre se voltou a deslegitimar os setores da esquerda democrática, libertária e adepta da virada cultural dos anos 1960, vinculado-os ao fantasma de sua eventual origem de classe -- o que nem sempre é verdade, aliás. 

E também atentava contra algo muito presente no pós-68: o desejo de ter, o desejo de desejar, atacado pela falácia implícita na fórmula esquerda coerente = estar na/cultuar a pobreza. Esses novos esquerdistas seriam "desocupados" que abraçam causas que não lhes dizem respeito, cabendo aos trabalhadores se afastar deles para "não se meterem em problemas", "não entrarem na onda de gente louca, inconsequente e irresponsável"

Não é de se espantar que esse mesmo discurso tenha unido a direita aos stalinistas, ou equivalentes, naquele momento e ainda hoje. A ditadura do economicismo em suas faces direita e esquerda. O reaparecimento do espectro da "esquerda caviar" foi visto, recentemente, quando alguns velhos amantes do eurocomunismo no nosso país, como Mino Carta e Walter Maierovicth, se usaram dele para desqualificar os defensores da não-extradição do ativista italiano Cesare  Battisti -- extradição a qual era reclamada pelo Estado italiano, que o condenou anos antes, com poucas provas, num clima da caça às bruxas lamentável. Entre a perseguição italiana e o refúgio no Brasil, coincidência ou não, Battisti esteve abrigado por décadas na França, enquanto vigeu a doutrina Mitterrand. 

Do ponto de vista do seu uso pela direita neoliberal, temos o livro de Constantino que nem na sua grande criação conseguiu ser original: a reedição da "esquerda caviar", pronta à pretensa desqualificação pública de setores acadêmicos e médio-classistas que atacam o "pensamento único", os quais seriam contrastados com a massa "trabalhadora", "de bem" e "boa pagadora". E isso se transforma até mesmo em fundamento judicial para manter ativistas presos: ora, se são uma "esquerda caviar", não merecem perdão ou devido processo legal. O deboche -- o humor duvidoso empregado contra minorias, oprimidos e fragilizados -- surge como uma hiena cumprindo sua função punitivista.

Se houvesse alguma honestidade nessa falácia, se isso se tratasse de um auto-engano ou desconhecimento teórico, poderíamos citar Reich e sua lembrança preciosa de que libertação e opressão não são uma pontos objetivos, mas sim itens ligados à posição desejante, pois não é o fato objetivo da carência que impele nenhuma revolução: fosse assim, os trabalhadores fariam greve sempre, ou os pobres sempre  se rebelariam, e os ricos estariam todos satisfeitos. Ou que não é errado ter bens de consumo, ter ou não ter algo de sua época, é fruto de escolhas pragmáticas e não-egóicas, não uma questão moral -- inclusive porque se fosse, nenhum anticomunista poderia utilizar serviços que dependem de satélite, uma invenção socialista. Mas, volto ao ponto levantado, a história da "esquerda caviar" não é séria.

A falácia disso reside em várias coisas: se ser de esquerda é incoerente para quem não é pobre ou trabalhador, por que então fazer greves, questionar o poder ou se rebelar nunca lhes foi permitido? E como a origem de classe de parte da nova esquerda deslegitimaria, a priori, sua voz em relação a qualquer tema? E quem é pobre e deseja desejar, como fazer? E por que alguém que come caviar precisa se sentir satisfeito com a sociedade em que vive? Ou, afinal de contas, por que não podemos comer, ou desejar, caviar?

A coerência de uma esquerda não se mede pela origem de classe, hábitos em si ou trejeitos que possa ter, mas sim pela sua coragem, capacidade e força para assumir, de um bom grado, muitas dores que permeiam nossa sociedade e lutar para pôr fim a elas. Lutar pelos negros sem ser negro, lutar pelas mulheres sem ser mulher, lutar pelos estudantes apesar de ser estudante. Não, não há nenhum problema em não ser egoísta, não temos porque ser vítimas dessa má consciência primária. Lute por Hideki porque ele lutou por você -- o que é mais pura verdade.

Mas o que essa nova direita teria a nos oferecer senão, para manter aqui as referências culinárias, um grande fast food: essas pastas de gordura, pseudo-carne, sódio e açúcar prontas a serem devoradas rapidamente -- para que possamos, afinal, trabalhar --, nos fazendo a um só tempo diabéticos, hipertensos, com as veias entupidas, obesos, obedientes e ansiosos. Escravizados por uma comida cujo gosto simplório só agrada, em verdade, ao paladar infantil ou infantilizado. Combustível perfeito para nos tornar seres bovinos no comportamento e na aparência, embora sem direito à mesma dieta saudável que os bois têm nos pastos. E o que a esquerda da realpolitik tem a dizer senão que é prudente se aliar a isso?

Fiquemos com o caviar, os bons vinhos, a boa comida, a arte, a literatura, o devido processo legal, os direitos civis e os sonhos -- sabendo que tudo isso é bom, mas melhor ainda se repartido. Contra o rebaixamento dos gostos, da estética, da linguagem, enfim, esse mundinho pequeno, kitsch e desprezível no qual nos querem prender -- que no fim das contas, é a verdadeira prisão. Esquerda caviar sim, com muito orgulho: boa comida não entope artérias.



terça-feira, 5 de agosto de 2014

Liberdade para Hideki e Rafael: um Pouco de Verdade, Enfim

André Dahmer -- Malvados
Fabio Hideki Harano e Rafael Lusvarghi são presos políticos. Eles foram encarcerados há mais de quarenta dias depois de uma manifestação em São Paulo, sem que nada fizessem exceto exercer seu direito constitucional. Foram acusados da prática de diversas condutas criminosas -- como porte de substância explosiva -- com um conjunto de provas muito fraco, sem dó, piedade ou prudência. A polícia prendeu, deu seu testemunho e, em seguida, o ministério público e o judiciário foram implacáveis: os dois foram mandados para um centro de detenção provisória, rapidamente a denúncia foi aceita e transformada em processo criminal, com a prisão provisória determinada e tudo mais. Fábio foi enviado para uma prisão a mais de cem quilômetros da capital, onde reside. Foi um verdadeiro linchamento.

Ontem, houve uma reviravolta no caso. Tanto o grupo antibombas da PM paulista quanto o Instituto de criminalística desconstruíram parte importante da farsa: as supostas bombas encontradas com ambos não eram bombas -- e, ainda, sequer eram artefatos inflamáveis. Como alguém pode ser detido pela polícia e, logo em seguida, processado criminalmente baseado em uma suposição? A justiça The Flash praticada pelo aparato repressivo paulista não tardou, mas falhou. Mas falhou em termos: quem prendeu sabia muito bem disso, imaginava que a verdade não era importante, bastando a vontade transcendental de Estado -- que quer silenciar todas as manifestações a qualquer custo --  para prender e, futuramente, condenar. Como na inquisição.

Não que isso seja alguma novidade para quem acompanhou o caso desde o começo, pois o próprio Hideki, ao ser abordado pela polícia na saída da manifestação, clamou para alguém filmasse a cena para evitar um flagrante forjado -- e o vídeo foi feito, mas apesar dele não revelar a presença de nenhuma bomba, Hideki foi encarcerado assim mesmo. E agora que o acharam nem era bomba? Com a revelação, toda a blitz estatal-midiática anti-manifestações cai por terra vergonhosamente. Onde estarão os entendedores, alguns até ministros de Estado, que defenderam a legalidade dessas prisões? E os programas de televisão histéricos?

Ainda é preciso dar alguns passos para que esse processo seja anulado. A vitória de ontem foi fruto do valoroso, e enorme, esforço militante por parte dos movimentos sociais, parlamentares, religiosos e afins que têm lutado muito para libertar esses presos. Não achem que sem isso alguém teria se importado em averiguar a falsidade da história das bombas. Existe uma guerra em curso na qual a verdade é meta e meio: não a verdade no sentido religioso ou maniqueísta, mas uma verdade comum, uma narrativa que expresse as coisas como elas estão e não como querem, por interesse, que elas sejam. A verdade saiu de moda nos últimos tempos, mas talvez seja a hora certa para ser retrô.

Qualquer mentecapto, sobretudo aqueles dotados de algum pequeno poder, tem se achado autorizado a falar qualquer coisa sobre tudo. E eles passam incólumes. Muitas vezes destroem vidas, mas quando são desmascarados, somem: é como se ninguém nunca tivesse dito nada nunca. E somem junto os pelotões de linchamento que eles arregimentam, turbas aparentemente loucas e prontas a apoiar ou realizar prisões, torturas, condenações -- querem um culpado para projetar suas próprias culpas e frustrações, servindo como a massa de manobra ideal dos perversos de plantão, mas sua aparente loucura desaparece, junto com eles mesmos, quando essas farsas são desfeitas; fico pensando só sobre como vivem, o que fazem e onde se escondem os linchadores.

A banalização da prisão, como catarse e instrumento político, é outro item. Só que tudo isso tem passado batido, aconteceu e nada. Passou da hora da democracia brasileira se dar ao respeito. E seus achincalhadores precisam ser chamados à fala.

P.S.: O conceito de preso político aqui diz respeito a, talvez, um tema polêmico em matéria de ciência jurídica: de todo modo, seria todo aquele encarcerado no ato de uma reivindicação de direitos (pela constituição ou efetivação de algum direito) ou de uma nova ordem de direitos -- o que causa estupor em uma democracia, uma vez que nesse regime, fazer isso é direito fundamental e não crime. Não defendo qualquer punitivismo, mas nem todo preso é preso político, muito embora haja evidentes causas políticas na construção de cenários que levam os cidadãos ao crime -- que é a dimensão política do crime, mas não a natureza da conduta em si.

P.S. 2: Hideki é um conhecimento manifestante pacífico, Rafael tem um histórico "controverso" por posições políticas curiosas e contraditórias, mas em matéria de direito, discutimos atos e não pessoas. É o que você fez, nem quem você é.

P.S. 3: Rafael Vieira, morador de rua carioca, foi até agora o único condenado nas manifestações. E segue preso. Em torno dele, apesar da indignação pontual, não foi formada nenhuma rede de solidariedade. O outro Rafael, o paulista, talvez possa ser beneficiado da rede de solidariedade de Hideki. Isso é revelador da crise na democracia brasileira: importa quem somos, não o que fizemos. O sistema funciona apenas empurrado, os desprotegidos ocasionais estão à própria sorte.





sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O Templo de Salomão e o Fim do Mundo

Os quatro cavaleiros do apocalipse -- Vasnetsov
O Novo Brasil é uma terra curiosa. Libertação e servidão espreitam, ambas em potência máxima. Fato emblemático dos novos tempos foi a inauguração do "Templo de Salomão" em São Paulo, gigantesco templo maior da Igreja Universal do Reino de Deus: a obra, feita ao custo de centenas de milhões de reais, reuniu em sua inauguração a presidente da república, o governador do estado e o prefeito municipal, além de outras autoridades. Na terra dos estádios padrão-FIFA, se tem agora o equivalente na forma de templo "cristão". Isso não expressa apenas um fenômeno cultural, em um sentido raso, ou um evento político e comercial, mas algo mais profundo.

Nada disso é à toa: no momento em que uma expressão do cristianismo faz um novo e espetacular movimento no Brasil -- com repercussão pelo mundo todo --, isso envolveu justamente a edificação de sua nova sede.  A morada, o habitat, é central ao cristianismo desde sempre. Porque a diferença entre o cristianismo primitivo e o institucional é a liberação que o primeiro tinha em relação ao confinamento e, em sentido inverso, a dependência do segundo em relação às edificações suntuosas. Isso é parte de uma história importantíssima.

Como sabemos, o Cristianismo foi o bom encontro entre as tradições heleno-romanas e judaicas, produzindo uma resultante nova, libertadora, anti-imperial. Cristo e seus apóstolos pregavam nas ruas. E faziam uso do léxico político: Igreja e assembleia são equivalentes na etimologia, pois ambas vêm da palavra grega ekklesia, isto é, os encontros públicos nos quais os cidadãos apresentam demandas à pólis. Em Roma o mesmo se chamava comicius. O cristianismo, em sua luta anti-imperial, não tornou a política religiosa, ao contrário, ela ativou a religião colocando-a em sintonia com a realidade política existente.

As coisas mudam quando o Império Romano absorve o movimento que lhe contestava mais agudamente. O cristianismo se torna parte da estrutura imperial, em tempos que o velho culto público greco-romano não dava mais conta de legitimar um Império em frangalhos. A partir daí, as assembleias não encontram mais seu lugar na praça, nem nas reuniões livres na clandestinidade, ao contrário: é em edifícios suntuosos que os cristão passam a se reunir. Afinal, as próprias assembleias no Império são representações feitas em basílicas: edifícios que substituíram as velhas ágoras colunatas, sedes por excelência das velhas assembleias de cidadãos livres.

Na falta de basílicas, o cristianismo se reunia em paróquias, palavra que em grego significa "casa vicarial", isto é, "casa que substitui [uma basílica]". Isso não é só simbólico: significa a passagem do cristianismo da política para a economia. A organização cristã passa a se dar, em toda parte, em termos econômico-administrativos (como bem observa Agamben em o Reino e a Glória): "bispo" é a palavra portuguesa que vem de "episkopo", administrador. A racionalidade da casa, das regras absolutamente factuais e verticais que caracterizavam a casa do mundo antigo passam, não à toa, a ordenar o cristianismo.

A passagem da praça pública para o ambiente doméstico cria, obviamente, um cristianismo domesticado. Não é apenas uma nova forma de físico-geográfica de culto, mas um realinhamento que implica em uma nova prática. Se o mundo antigo é feito da dualidade entre a casa e a cidade, a oikia e a pólis, ambas com ordens próprias, complementares e, ao mesmo tempo, antagônicas, o mundo medieval é outro: não há mais cidade, apenas os feudos que são, na prática, "casas grandes" e a religião confinada -- a ordem econômica, enfim, triunfou, com a política e o direito reaparecendo apenas nas fissuras desse sistema.

Talvez por isso o fato mais relevante em matéria de cristianismo foi, vejamos só, as reformas cristãs católicas do século 19º e 20º e o fortalecimento de um modelo pastoral que, mais tarde, desembocou na teologia da libertação. Pela primeira vez desde o Concílio da Niceia se discutiu o embate entre a "hierarquia" -- a instituição -- e os fiéis -- em obra social, espalhados em comunidades eclesiais e pastorais. Tal como como o cristianismo primitivo, e fiéis ao evangelho, misticismo e política passaram novamente a andar de mãos dadas. Daí a reação, violentíssima, da própria hierarquia católica e do protestantismo, contra isso. Do novo catolicismo conservador à teologia da prosperidade, dos tele-evangelistas americanos e da Igreja Universal, se fez de tudo contra isso.

Mas isso não é uma história de infidelidade a uma suposta tradição cristã pura: como bem observou Deleuze ao comentar D.H. Lawrence, nem só dos evangelhos se fez o cristianismo, ele  também se fez do apocalipse, o fecho curioso e antitético da trama. E se os evangelhos são uma narrativa sobre fatos históricos, ou pretensamente, o apocalipse é profecia pura, isto é: projeção. E a projeção, mais do que a subjetivação ou a objetificação, é a parte realmente "ideológica" de uma narrativa. Ela visa tão somente a influenciar, ela é pura prescrição. É no apocalipse que Cristo retorna como uma espécie de rei-juiz; de messias que chama os outros de "irmãos", ele se torna um soberano vingativo que irá decidir sobre a vida e a morte absolutas. O horizontal se torna vertical, mantendo uma contradição em termos tão absurda quanto aquela havida entre Paulo e Pedro.

O apocalipse é central no pensamento ocidental. É lá que nasce uma filosofia do juízo [final], uma filosofia baseada no julgamento -- logo, incapaz de aceitar uma diferença intensa para supô-la apenas na extensão e, aliás, pela ação de uma força externa, transcendente e implacável. Só a autoridade suprema, que combina também o império e o poder, pode diferenciar o joio do trigo, isto é, pode criar, cindindo e hierarquizando, negando a singularidade. 

Voltando ao Brasil, não é à toa que a teologia da prosperidade 2.0 recorra ao Templo de Salomão, uma imagem tão central no texto do apocalipse: é ali que se julga de maneira final, separando os bons que habitaram o céu (a cobertura dos prédios) e o inferno (as prisões), de uma maneira absolutamente utilitarista, fluídas, na qual quem está em cima estará sempre em risco de queda e, por outro lado, os caídos poderão ascender -- desde que paguem continuamente o seu naco para a intermediadora divina, a Igreja e seu mandatário maior, o bispo Edir Macedo.

Obviamente, o modelo da IURD, gigantesco, é uma absurdidade para o Sistema tal como ele existe. Mas o fato de, mesmo assim, ela prosperar e crescer, sendo um sucesso financeiro e um fenômeno político capaz de amarrar as principais lideranças políticas, significa uma coisa: trata-se de um arcaísmo reservado pelo mesmo sistema para, caso for preciso, vir à tona. No momento em que a democracia liberal se torna um discurso cada vez mais frágil, sendo cada vez menos capaz de administrar a dívida e organizar o trabalho, a possibilidade do discurso "fundamentalista cristão", na forma da teologia da prosperidade, se tornar o rótulo da vez do Sistema é cada vez mais real: além de sua viabilidade econômica em si, ele se torna um gigantesco ativo que poderá, tão logo, ser bem mais que um agregador de votos imediato.

O cristianismo, em sua exacerbação, se descristianiza e desevangeliza, a subsunção ao juízo final elimina o Cristo e deixa apenas a dor da Cruz.