(Santos Dumont plana sobre Paris no 14 Bis, foto retirada daqui)
Nos últimos dias, bem nesse período de virada de ano, o tabu-mór da democracia brasileira vem sendo trazido à tona de um modo bastante curioso. Seja em relação ao novo factóide em relação ao terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), ao chilique elitista de uma figura emblemática do jornalismo reacionário como Boris Casoy ou ao falecimento de um estandarte do período como Erasmo Dias, aqueles que pensam que construiremos um futuro decente simplesmente esquecendo de tudo que aconteceu, devem estar incomodados. Aliás, isso rendeu um post primoroso de Leandro Fortes além de um debate intenso por aqui mesmo como você pode conferir pelos links deixados.
A bola da vez foi o mal-fadado vazamento do relatório da Aeronáutica apontando para a superioridade do jato sueco Gripen em detrimento do francês Rafale cuja venda já havia sido acertada politicamente e faltava apenas a formalização. O tema é bastante controverso, longe de mim ser defensor do belicismo, mas fazendo uma investigação dentro da (i)lógica bélica, uma coisa mais do que elementar é que tecnologia não se transfere, ela se desenvolve - em suma, essa história de "transferência de tecnologia" é, no fundo, uma grande bobagem porque ninguém vai transferir o essencial, no máximo estaríamos falando de uma produção tecnológica meramente lateral. Em um primeiro momento, o fundamento alegado do Projeto FX2, por sí só, já tem muito de bravata.
Outro ponto é que se trata de uma questão política sim e não técnica como muitos querem fazer parecer. Se o Brasil não desenvolve tecnologia, logo, ele só poderia comprar tecnologia de um aliado - ou pelo menos de um país que não tivesse meios ou necessidade de lhe atacar -, o que é razoável imaginar da França, no entanto, isso, por si só não basta: É necessário que esse país não tem necessidade próxima de entregar segredos sobre esse armamento para um possível adversário seu. Teoricamente, a França não faria isso se o Brasil estivesse diante de um confronto qualquer na América do Sul, mas se isso envolvesse qualquer aliado seu da OTAN a coisa mudaria de figura.
Vamos para um exercício elementar de lógica: Qual é o único país que teria capacidade econômica, política e militar para atacar o Brasil? Os Estados Unidos. Não, antes que os idiotas da objetividade venham me dizer que os EUA não tem motivo para nos atacar, eu sou obrigado a rebater que se você compra armamentos em época de paz é porque vislumbra a guerra no horizonte e tem de considerar todas as hipóteses - e ela só seria possível se esse determinado agente tivesse interesse. Isso tiraria do cardápio o próprio jato estadunidense Super Hornet - a menos que o Brasil estivesse comprando armas para lutar a guerra do colonialista americana - e tiraria também do páreo o caça sueco - que tem peças de meio mundo, inclusive americanas - e o próprio caça francês.
Por que os Rafales? Simples, peguemos a Guerra das Malvinas como exemplo: Os franceses entregaram segredos dos seus armamentos - aqueles mesmos que venderam para a Argentina - para os britânicos que travavam uma guerra colonial inútil - exceto para os interesses político-eleitorais de sua primeira-ministra -, logo nos primeiros dias do curto conflito . Em suma, se o Brasil estiver diante de problemas reais, não será a França que irá aguentar a pancada. Portanto, partindo de uma premissa nacionalista - logo, idealista - comprar armamento francês seria um tiro no pé estratégico, só nos restando o armamento russo para uso temporário enquanto se desenvolve tecnologia própria - os russos não têm meios nem motivos para nos invadir e também não entregariam segredos militares por questões óbvias que concernem à sua própria segurança nacional.
Evidentemente, existem interesses mil que conspiram contra a compra de armamento russo que vão do lobby da indústria armamentista ocidental, algum preconceito dos próprios militares em relação ao país - não que eu espere uma postura neutra do que quer que seja, mas é curioso o descompasso entre a visão de mundo dos militares e os consensos básicos fundantes do pacto político que deu na Constituição de 88. No fim das contas, o Governo Lula achou aquilo que ele julgava uma solução razoável: A França, pois isso envolveria a "transferência de tecnologia" e também a construção de um sistema de defesa marítimo - com os submarinos nucleares.
De repente surge essa barulho em relação aos caças suecos - entre aqueles que foram oferecidos, o de pior qualidade e ainda estão sendo desenvolvidos dentro de um projeto confuso que envolve até peças americanas. Portanto, isso é pura agitação política passando por dentro das FFAA: (a) Existe a força do lobby em um Estado-nação com instituições fracas e FFAA funcionando quase aleatoriamente a elas; (b) Existe um jogo político-eleitoral interno no qual procura se abalar a autoridade do Presidente da República em relação ao pacto político que ele fez com a França sob a prerrogativa de uma solução técnica - com efeito, um pastelão total, afinal, nem estamos falando do melhor jato, nem da estratégia geopolítica correta.
Essa é a parte mais simples da confusão. Nos deparamos, na verdade, com o tabu central da Nova República: A contradição entre um sistema jurídico relativamente moderno - e social-democrata -, criado por algumas centenas de notáveis e imposto de cima para baixo - portanto, fraco - e um sistema político arcaico que envolve as grandes contradições políticas do sistema partidário - e a problemática militar. As FFAA jamais se arrependeram do Golpe ou do Regime e a Constituição de 88 foi feita em cima de uma revolta da sociedade civil contra o mesmo advento histórico - apesar de conduzido verticalmente, de cima para baixo. O resultado é o descompasso narrativo ao qual eu havia me referido. NA prática, FFAA assumem uma posição autista em relação à história ao mesmo tempo que nossos políticos - tucanos ou petistas - fingem que isso não está acontecendo.
As FFAA ainda seguem a mesma linha de pensamento dos anos 60, quando o golpe dirimiu não apenas a possibilidade de desenvolvimento nacional não-alinhado como também o próprio confronto que havia dentro de suas entranhas. As FFAA assumiram um papel político que não lhe cabe nem nunca lhe coube e criou-se uma "doutrina de segurança nacional" que de forma ideal já apresentava incongruências como, por exemplo, voltar os canhões para perseguir políticos de esquerda num alinhamento ideológico com as potências ocidentais - ao inves de defender o consenso mínimo político para garantir a integridade do país e defendê-lo de ameaças externas. A mesma linha de pensamento permanece funcionando. O fim dos ministérios militares apenas nos fins dos anos 90 é sintomático - e isso só aconteceu num toma-lá-dá-cá que envolvia a prorrogação do prazo para liberar os arquivos secretos da ditadura.
Desde a inauguração de tal Ministério, o que se viu foi os seguidos governos - FHC e mesmo Lula - empregando políticos desempregados e sem ligação com nada que envolve "defesa nacional" - não que isso fosse melhorar muitos as nossas as vidas levando em consideração o que, realmente, é um Estado-nação - como ministros da defesa e seguidas quedas dos mesmos - praticamente todas por meio de tramóias pensadas na caserna. Prosseguimos nos auto-enganando sobre tudo isso, um grande problema institucional, com efeito - tanto quanto a indisposição das FFAA em não condenar publicamente o Golpe Militar e o consequente Regime, chegando a se insurgir conta qualquer coisa que mexa com essa lógica.
Para além dos movimentos ideais, vamos agora para os movimentos reais. FFAA nacionais, profissionais e submetidas à Autoridade de um Estado são um produto das revoluções burguesas. O conceito de "nação" que daí emerge, tratava-se de uma espécie de grande família, reunida em torno de certos símbolos - bandeira, hino etc -, o que, no fim das contas, servia para dar a coesão necessária para que certas unidades políticas pudessem servir como estruturas suficientes para o desenvolvimento do Capitalismo. As FFAA eram vendidas sobre o ideal de ser uma força de combate à serviço - e para a proteção - da grande família, quando, na verdade, eram forças garantidores da ordem política necessária para o desenvolvimento capitalista tanto do ponto de vista interno quanto externo.
Hoje, depois de séculos, guerras quentes e frias, o Capitalismo mundializou-se e os Estado-nação deixaram de ser as estruturas necessárias para se tornarem meros instrumentos dele. A Guerra deixa de ser um confronto entre diferentes sistemas capitalistas mirando a hegemonia para se tornar um mero negócio contido dentro do Capitalismo, no qual trabalhadores são mobilizados e recursos ambientais são gastos para a satisfação de alguns oligopólios, tudo financiado com dinheiro público - a rigor, para nada, afinal, em várias ocasiões a guerra sequer pode ser travada, trata-se de uma maneira de concentração de renda, o material bélico é usado, em regra, em duas ocasiões:
(I) Em grandes ações articuladas no qual o Capital Global, por meio da estrutura militar dos Estado-nação ataca países pobres em busca de recursos energéticos para a sua sobrevivência;
(II) Em conflitos entre países atrasados e institucionalmente fracos para movimentar o mercado internacional de armamento pesado.
No Brasil existe a incongruência-chave da periferia do sistema: Existem os interesses globais e os do capital interno; os primeiros apontam para a necessidade de FFAA brasileiras armadas para uma guerra global e a segunda para a "defesa nacional" ou, numa explicação mais boquirrota, para "defender as riquezas do país" - quando na verdade, estamos falando na defesa do capital nacional e não do povo. De um modo ou de outro, as FFAA atuais - ou que restou dessa instituição depois da Ditadura - são incapazes de se organizar em torno de qualquer um desses projetos de forma eficiente. No máximo, resmungam um anticomunismo sem lugar nem tempo contra um governo social-democrata - que tentou, mesmo que de forma atabalhoada, executar o segundo projeto - denotando sérios sintomas de caduquice - e não dão boas justificativas porque deveriam ser reequipadas.
Ademais, nos pegamos, novamente, com o jogo eleitoral de 2010. Quando as FFAA brasileiras novamente se mostram cumprindo funções que não são suas - ou como se fosse um partido de direita - no intuito de favorecerem, quem sabe, o candidato mais conservador, fazendo-se valer da muleta brasileira histórica da neutralidade, da objetividade e da técnica. Ironia das ironias, isso está acontecendo na terra de Santos Dumont, o brilhante inventor que criou o avião para diminuir os abismos que separavam a humanidade - e que pôs termo à própria vida ao se deparar com sua invenção sendo usada para aumenta-los nas guerras.
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