terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Verdade, Justiça e Esquecimento

















 (verdade e justiça)


A acirrada discussão em torno do terceiro Plano Nacional de Direito Humanos trouxe à baila aquilo que eu insisto em classificar como o maior tabu da Nova República: A não resolução da questão da Ditadura, de suas consequências e feridas. Há mais de vinte anos, insistimos na prática esquizofrênica de tentar curar certas feridas simplesmente ignorando sua existência e o resultado é que vivemos às voltas com uma Democracia que não está consolidada, longe disso. 

Se os arautos da realpolitik acharam que poderiam construir uma Democracia assentada em mentiras, eles se enganaram. O mesmo podemos dizer sobre os idealistas que supunham que a Democracia formalmente instituída, por si só, seria o bálsamo milagroso para todos esses males - quando, na verdade, sua concretização dependia da resolução desses assuntos o tempo inteiro. O fato é que estamos voltas com um cenário no qual além do entulho autoritário não ter sido varrido, ele ainda insiste em se proliferar. 

Uma leitura vulgar do materialismo - recorrente em nosso meio - aponta para inexistência da Verdade e da Justiça - ou mesmo, a leitura vulgar do relativismo aponta para uma direção na qual esses conceitos são esvaziados. Trata-se, com efeito, de um grave equívoco dos tempos atuais. Nesse sentido, não há como deixar de contrastar ambas, à luz do atual conjuntura, com a chamada Lei de Anistia - e "anistia" vem do mesmo radical helênico de "amnésia", portanto, estamos falando em "esquecimento".

Em um primeiro momento que haveria de ser "verdade" na Língua portuguesa? Em apertada síntese, podemos lembrar daquilo que a Professora Marilena Chauí expõe tão claramente em seu Convite à Filosofia, não estamos falando de um termo cujo significado é uma mera decorrência do latim veritas: O conceito grego de aletheia - o desvelado, o não-oculto - e o hebraico emunah - a confiança e a esperança cuja expressão mais perfeita é profecia. 

De tal modo, "verdade" em português - e provavelmente em seus cognatos nas línguas latinas - possui um significado bastante profundo: Ela se refere ao passado - o fato visto e narrado da veritas, portanto, ela detém uma dimensão subjetiva e seu oposto é a mentira -, ao presente - aquilo que é e cujo oposto é o falso, advindo da aletheia - e ao futuro - aquilo que será, que decorre do significado da emunah. Portanto, quando falamos em verdade, temos uma palavra cujo significado vai para muito além da verdade factual.

Quando a sociedade brasileira clama por verdade, ela está procurando construir não apenas por uma narrativa histórica condizente com os fatos acontecidos, mas com lutando contra o falsificação do presente e pela garantia do futuro. Será que podemos construir uma Democracia negando isso? A nossa história recente está provando que não. Será que podemos simplesmente esquecê-la? Eu duvido, há quem discorde, mas para mim, com o perdão do trocadilho, a assertiva de que a verdade detém uma dimensão objetiva me parece verdadeira.

A Justiça é um conceito ainda mais incerto, mesmo que dificilmente alguém vá se colocar contra ele. Sua origem há de estar no sânscrito, mas é no latim justitia, um ideal intrinsecamente ligado ao conceito de igualdade e de distribuição correta - seja na definição católica " a constante e firme vontade de dar aos outros o que lhes é devido" ou na socialista "de cada um conforme sua capacidade, para cada um conforme sua necessidade". Trata-se de um ideal que aponta para o caminho correto para a interação das pessoas e das coisas em sua forma e em seu movimento.

Verdade e Justiça caminham lado a lado. Para os gregos, as deusas que as representava nutriam uma relação de parentesco: Diké - a justiça - era a filha mais velha de Aletheia - verdade. Um simbolismo interessante para dois conceitos que andam lado a lado, pois se aceitarmos sua existência concreta como real, estaremos diante do fato de que uma não poderia existir sem a outra - portanto, não haveria como nega-las em separado.

De tal forma, se tomamos como possível esquecer os fatos, também estamos tomando como possível ignorar a justiça - e as consequências disso. Podemos ser suficientemente cínicos e aceitar esse ponto de vista, reduzindo à Política a um mero cálculo de correlação de forças do momento - ou pior, a uma mera consequência, matematicamente expressa, dos dados econômicos convenientes - a qual poderia ser válida em todas as circunstâncias - ou mesmo que livros de história fossem uma mera compilação de papéis que aceitasse qualquer coisa. Disso, poderíamos e podemos construir algo, mas certamente o monstrinho que sai dessa processo não se chama Democracia.

Para além da existência ou não das coisas - e eu estou bem longe de conseguir provar o que quer que seja, ainda que eu intua algo -, não podemos virar as costas para o significado das coisas: Um país que possui inúmeros setores incomodados com uma Comissão de Verdade e Justiça, alegando o clamor de esquecimento em seu favor, deve ter algum problema grave que deve ser resolvido e não mais ignorado.






10 comentários:

  1. Hugo, muito bom o post. Adorei. Só queria dizer uma coisa em torno do PNDH III. Além do medo da Comissão como sintoma de que existe alguma coisa de muito errado, eu também acho que quando um país precisa elaborar três planos de direitos humanos, com diretrizes básicas e constitucionais, significa que estamos muito longe de qualquer esboço de democracia. Ou ainda, é aí mesmo que a democracia se mostra irrealizável. Nesse sentido acho que sou eu um pouquinho mais pessimista que você :-) Um beijo.

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  2. Como sempre, Hugo, um ótimo post!

    Justiça e verdade andam juntas e uma não é possível sem a outra. Matou a pau!
    Como disse a Flávia, tem muita coisa errada neste país, mas se é possível tirar alguma coisa boa disso tudo, se que se pode dizer assim, é que, deixando cair a máscara, a própria mídia fornece as condições para nos defendermos dela. Falo da mídia por que não surpreende a reação das Forças Armadas no que toca tudo que procura resgatar o passado amargo da Ditadura, mas daí a encontrar eco na imprensa...

    Mas não sou pessimista. Acredito que o acerto com o passado é inevitável, quer os militares (e outros interessados em manter a verdade sob o tapete) queiram ou não. Só é uma pena que esteja demorando tempo demais.

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  3. Obrigado, Raphael, Flávia e Edu!

    Aliás, Flávia, muito boa a sua provocação. Se é chocante a disforia em relação ao Plano, a euforia também merece ser analisada. Será que não estaríamos mesmo diante da impossibilidade da Democracia? Ou de sua realização mediante a forma do Leviatã, dentro de uma ideologia na qual Lei e Direito se confundem e somos organizados vertical e hierarquicamente? A questão seria - e falo de um ótimo debate -, se o problema está na Democracia ou no meio pelo qual ela está sendo posta em prática - e isso não é recorrente quando falamos de Socialismo? Mais ainda: Será que as questões não seriam convergentes?

    Bem, Edu, no post anterior eu tratei dessa relação entre as FFAA e a Ordem da Nova República. Até que ponto poderemos aguentar essa dicotomia? Hoje, o único partido com alguma relevância que eu vejo se ocupando desse entrave estratégico é o PC do B, mas dentro da mesma lógica de negação do passado, o que eu julgo plenamente insuficiente. Isso, claro, sem levar em conta os demais gargalos estruturais da questão.

    abraços coletivos

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  4. Hugo, acho que as questões são convergentes, sim. Não sei dizer se o problema é a democracia ou o meio em que ela está sendo colocada em prática. Porque não consigo pensar um meio adequado para a imposição da democracia. Ou melhor, quando se deve impor a democracia é um sintoma de que as coisas não vão bem. É por isso que tenho uma posição bem clara quanto a isso: gostaria que o Estado fosse abolido. Mas também sei que isso é um grande sonho de outro mundo possível (e bem distante também), mas eu acredito. Enquanto, a força, a lei, o direito tiverem que ditar nossos comportamentos, e trabalharem na manutenção de uma forma de vida, não verei com euforia (o que não significa que verei com disforia) qualquer manifestação que pressuponha uma democracia, justamente porque nesse âmbito regulador ela será sempre irrealizável. Beijo.

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  5. Voltei! hihihi! É que eu lembrei de uma coisinha. Tem uma coisa que não me desce na comissão da verdade (mais do que a retirada do termo "repressão política")que é sua finalidade: a reconciliação nacional. Acho esse objetivo muito violento. Que reconciliação? Do meu ponto de vista, para respeitar a memória, o primeiro pressuposto é nunca cogitar reconciliação. Isso não cabe em um Programa, essa é a decisão de cada um. Bem, por trás disso está a boa e velha "democracia". Eca! hehe. Bj

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  6. Ops: o termo exato é conciliação nacional. Enfim, dá no mesmo. Sorry por encher a caixa de comentários ;-)

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  7. Flavia, sempre tão sagaz - não se desculpe não, ter a caixa de comentários cheia de comentários inteligentes como os seus é privilégio, não problema ;-)

    Vamos aos pontos: A própria questão do "Estado" é complexa. Eu conheço uma série de concepções diferentes dele. Adotando aquela a qual você se referiu, o Estado segundo a concepção da esquerda comunista - a de verdade, não anomalias filo-lassalistas - e anarquista, sim teríamos que acabar com ele, mas primeiro teríamos de passar pela eliminação do sistema de produção capitalista para, em um segundo momento, chegarmos à sua extinção.

    Se pensarmos em "Estado" como a organização política estabelecida de um povo, então teríamos de passar invariavelmente pela sua transformação - mas daria no mesmo, no fim da contas, teríamos de primeiro acabar com o capitalismo para chegarmos aí.

    O mesmo vale para Democracia, pois num sentido marxista seria uma organização atacável na medida em que o conceito de "povo" é por demais incerto na visão do bom velhinho - afinal, o sujeito revolucionário, para a Marx é a classe trabalhadora, o que eu tenho lá algumas discordâncias, pois para mim, tal sujeito é o homem e como é em decorrência disso que se justifica que os trabalhadores assumam o controle dos meios de produção; ser trabalhador é assumir uma função dentro da organização social hierarquizada do trabalho, não exatamente uma condição permanente no tempo e no espaço.

    Por isso, a ideia da realização de uma Democracia não me é absurda - mas aí estaríamos diante de uma verdadeira democracia -, mas ela só se daria plenamente dentro de uma organização econômica que resultasse em uma organização do trabalho racional - logo, humanista e ambientalmente correta. Isso passa pela eliminção, de algum modo, do sistema capitalista.

    Dentro das atuais regras vigentes, a construção quase que metafísica dos direitos humanos acaba sendo apenas um freio, nem sempre eficiente, para a degradação total da coletividade, do indivíduo e do meio-ambiente - um paliativo em relação ao qual eu temo não prescindir, pois não será com uma degradação maior dessas três coisas que nós contruíremos aquele que eu julgo o caminho correto para sairmos dessa situação, muito pelo contrário.

    Dentro dessa postura perspectivista, eu chegar a carregar alguma felicidade, mas ficaria mais feliz com um projeto desses, se ele viesse acompanhado da criação de meios para que os espaços políticos de aprendizado, garantia e aplicação desses princípios fosse mais efetivo. O que me incomoda em "reconciliação nacional" mais do que a própria "reconciliação" - e, acredite, me incomoda - é o "nacional", sinto arrepios desse ponto em específico...

    beijos e obrigado pela visita

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