sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O Debate sobre Deus na Blogosfera e as Arábias

Manifestantes oram para Ala no dia da derrubada de Mubarak -- Pedro Ugarte/AFP

Recentemente, um debate interessantíssimo voltou a ser travado pela blogosfera sobre a questão religiosa e o ateísmo. O André Egg, por exemplo, tem publicado uma série de posts sobre isso que tem me chamado a atenção. Embora discorde de algumas colocações dele - algo perfeitamente compreensível pela nossa diferença de formação, André vem de um lar batista enquanto eu tive uma educação laica e não sou religioso -, eu concordo com a perspectiva que ele adota nesse debate: Calma gente, ninguém é dono da verdade nessa conversa toda. Não, os ateus não estão na mesma condição de pessoas que têm religião, eles são uma minoria oprimida, mas do mesmo modo que os eles não são inferiores aos religiosos pelo simples fato de não crerem em Deus, a recíproca também é verdadeira. Usar o cientificismo - e é assim que se chama a Ciência quando passa a ser usada como instrumento de veridicção e afirmação do Poder - como forma de atestar a "ignorância religiosa" é um erro grave e perigoso - por isso eu discordo da linha que um Dawkins assume como expus lá no próprio André, ela não apenas soa arrogante como passa batido pela questão central do extremismo religioso e promove um debate que é tão metafísico quanto o que condena, é evidente que por uma perspectiva materialista, a questão da religião não passa pela afirmação ou negação de Deus (o que Dawkins faz, inclusive, é afirmar pela negação). Em suma, a minha linha nessa conversa toda é mais ou menos a linha de um post que o NPTO escreveu há um tempo atrás - em relação ao qual eu concordo sobre a perspectiva em relação ao debate entre religiosos ou não religiosos, mas discordo quanto à avaliação que ele faz da participação dos religiosos na política, acho que o buraco é mais embaixo, afinal, o Estado é laico (o que não se confunde com ateu, mas também não significa religioso), o que é uma grande ficção, claro, mas tem uma utilidade prática importante. Por outro lado, alguns intelectuais ateus, de influência iluminista, não raro se amparam em certas muletas kantistas (que mal sabem eles, mas são mais teístas do que o Papa), assumindo uma concepção de tempo em linha reta onde a religião pertenceria ao velho, ao "atraso", o que é falso: A religião é fenômeno social e político que existe em ato, mesmo o religioso mais radical e aparentemente atrasado é um fenômeno atual, ou seja, um amish é um amish de 2011, sua identidade religiosa é determinada pelas relações econômicas e sociais que atuam no aqui e agora - atribuir ao amish uma identidade um anômala em relação à História é, sobretudo, conceber a possibilidade de uma identidade cultural transcendental, em outras palavras, é quase beijar a religião que aparentemente se renega. A minha posição pessoal nessa conversa toda, claro, é de que não existe mesmo um Deus pessoal como na Bíblia, o que não quer dizer que Deus não exista: Existe, enquanto alguma coisa, real ou abstrata - a própria natureza, uma personagem ficcional etc - e que, de algum modo, produz transformações práticas. Mas não é apenas isso que me faz não me declarar como ateu, mas o fato de não aceitar a maneira como aparato institucional monoteísta põe a questão - desproblematizando-a, aliás -, em suma, eu me recuso solenemente em ser uma negativa de uma dicotomia que eu não considero como válida. É essa linha que uso quando eu analiso questões como a do extremismo religioso no Maghreb por aqui - por isso, inclusive, eu entrei nessa polêmica com o Daniel Lopes -: Religião - e seu eventual extremismo -, ao meu ver, trata-se de um fenômeno social e político atual, cuja relação com o sistema econômico e político vigente deve ser analisada, o que, a julgar pelos números de crescimento do extremismo islâmico junto da penetração do Capitalismo por lá ao longo do século 20º, não apontam para uma oposição entre o Capitalismo - e a esquizofrenia que parte do centro para a periferia, de um modo que hoje em dia nem se sabe mais o que é centro ou periferia -, mas o exato inverso; como ordens políticas ditatoriais a serviço do sistema capitalista internacional usaram a religião como instrumento de "pacificação" da classe trabalhadora local e, no fim das contas, acabaram perdendo o controle (o Irã que o diga) da situação. Também não podemos confundir  os religiosos não-extremistas articulados na sociedade civil - isto é, a grande maioria das pessoas religiosas - com defensores da teocracia, ou melhor, podemos fazê-lo tanto quanto  acusamos os democratas-cristãos europeus de defenderem uma Teocracia quando vão às urnas.

P.S.: Finalmente o ditador Mubarak renunciou e foi-se embora do Egito. Sua figura pessoal simplesmente implodia qualquer possibilidade de negociação pelo alto, com fins gatopardianos, como pretendiam os setores situacionistas do Egito e os EUA: Algo precisava mudar para que nada mudasse, esse algo não poderia ser apenas Mubarak no fim do ano, mas, quem sabe, logo agora. Evidentemente, não deixa de ser uma vitória do movimento revolucionário, mas trata-se de uma batalha vencida, não da própria guerra. Agora, mais do que nunca, é preciso se mobilizar, pois a falácia de que não há mais problemas porque o ditador foi embora certamente será usada para operar uma saída "razoável": Foi-se o ditador, mas ficou a ditadura (nos aparelhos e respirando com ajuda, mas ficou), ainda nem começou a transição e há muito o que se fazer tanto lá quanto na Tunísia.

Atualização de 13/02 às 01:10: Interessante - e estarrecedor - este texto sobre a relação entre a Fraternidade Muçulmana e os Estados Unidos - que eu pesquei lá no excepcional Outras Palavras. Só confirma aquilo que temos sustentado por aqui: A relação causal entre a atuação do sistema global e o crescimento do fundamentalismo islâmico, às vezes de uma forma até mais direta do que pensamos.

9 comentários:

  1. Bem como eu penso, Hugo. Alguns, ao abusarem do argumento científico para combaterem as religiões, desconsideram que elas são, antes de tudo, fenômenos sociais alimentados inclusive pela intolerância ao misticismo nos meios acadêmicos , como se não fossem uma expressão cultural como o são as manifestações profanas, como o carnaval. E, ademais, alguns argumentos, digamos, "evolucionistas", poderiam muito bem ser usados para desqualificar até o pensamento filosófico, por demais subjetivo. Às vezes penso que se não o fazem publicamente, seja por receio de levar uma sova.

    Cajueiro

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  2. Sim, Cajueiro, isso é como jogar o santo no lixo, mas continuar a venerar o altar vazio - quando o problema nunca foi o santo, mas a veneração na frente do altar que destruía os joelhos do infeliz. O próprio evolucionismo, vendido como alternativa à criação divina como verdade absoluta, se assenta ele próprio sobre uma concepção linear de tempo - cuja origem não poderia ser mais religiosa -, uma forma de progressão inteiramente falsa, a serviço da justificação de interesses bem concretos, dotados de uma dimensão histórico-política quase escandalosa.

    abraços

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  3. Hugo,

    Sobre a renúncia de Murabak, pra mim ficou bem claro que 'os ventos do norte' o mandaram cair fora. Ele não tinha jurado ontem que não renunciaria de jeito nenhum? Uma junta militar agora governa o país. Temo que foi aquela velha história de 'mudar alguma coisa pra não mudar nada'. Vi a cara de pau do 'ocidente civilidado' no JN. Muito farsesca a história.

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  4. '(...) 'ocidente civilizado' no JN. Muito farsesco o episódio', quer dizer.

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  5. Luis, então, em um primeiro momento, tudo estava indo mal no Egito do mesmo jeito que ia mal desde que Nasser morreu, aí veio essa coisa toda da Tunísia, os caras conseguiram até chutar a bunda do Ben Ali e o Egito se agitou também. Primeiro, a aliança Ocidente-Ditadura pensou em segurar Mubarak, quem sabe aquilo fosse só uma turbulência - se supunha que não aconteceria o mesmo que na Tunísia, afinal, o Egito é bem maior -, tome mais pressão popular e viram que não dava mais: Resolveram manter o velho faraó até Outubro - até quando já teriam elaborado uma saída -, eis que veio mais pressão, ele perdeu o apoio e caiu. Claro que o esquemão egípcio ainda está vivo, mas isso não quer dizer que não tenha ido um cadinho mais em direção às cordas, a tática agora é totalmente outra em relação há quinze dias atrás, já foram dados dois passos para trás sempre na esperança se ser o último recuo para poder dar dois para frente logo adiante. Agora a tática é se utlizar da popularidade do exército para surgir com algum líder carismático e, quem sabe, vender a historinha de que Mubarak era uma espécie de bruxo super-poderoso que aprontou tudo aquilo sozinho. Por ora, o movimento revolucionário está na frente e venceu hoje de novo, mas ainda tem muita água para rolar - todo esse processo, para o bem ou para mal, demorará anos, mas é difícil que o Egito volte a ser desgovernado como foi nos últimos anos.

    abraços

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  6. Salve, Hugo,
    Também sou ateu, aliás MUITO ateu, ateu hormonal (tive puberdade e tudo), expurguei o transcendente até do meu ateísmo, desconstruindo ceticismos, niilismos, humanismos seculares e cientificismos, desmontando até a fé nos fatos, nas idéias, nas coisas (em si), num universo constituído ex ante.

    Mas isso não me impede de achar o ateísmo causa desfocada. E organizar movimento pra defender ateus num Brasil de negros, indígenas, machismo e homofobia, chega a ser insulto. Ninguém olha feio pra um ateu na rua. O máximo que pode acontecer é não ser votado. Mas será mesmo? dos últimos três presidentes do Brasil (inclusive a atual), dois são ateus.

    Escrevi até um texto que deve ser publicado esta semana no Amálgama. Então adio a polêmica :-)

    Abração.

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  7. Salve,Bruno, Sobre a questão do teísmo-ateísmo, trata-se de um binarismo e, como tal, ele é naturalmente enviesado, portanto, essa problemática é falsa: Quer dizer que só é possível eu ser uma coisa ou a exata negação dela? Parece até o falocentrismo freudiano. Ademais, por mais delicada que seja a questão religiosa, eu não penso que ela passa por aí: Ninguém se torna religioso porque entende que Deus existe ou sente isso, mas porque é envolvido nas práticas sociais que integram certa religião e, por fim, alguém só se torna extremista religiosa em circunstâncias históricas determinadas - não, os iranianos não embarcaram em um movimento nacionalista islâmico porque do nada passaram a acreditar mais em Deus (de fato, isso se deveu a um delírio, mas nós sabemos o quanto os delírios são geográfico-políticos, não?). No plano da política, o que seria interessante de pautar em caráter tático é a laicidade do Estado, algo que está passando um tanto batida.

    Estamos aqui na espera do teu artigo.

    abraço

    P.S.: Deus sive Natura

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  8. "Ninguém se torna religioso porque entende que Deus existe ou sente isso, mas porque é envolvido nas práticas sociais que integram certa religião", é um pensamento beeeeem ateísta mesmo, hein? Ok, me tornei religioso enquanto criança, portanto longe de qualquer consciência ou sentimento sobre isso. Mas se me mantenho hoje cristão, e com fé, é porque sinto, e porque entendo todas as possibilidades, inclusive a de que o que eu sinto possa ser a verdade.

    Acho que preconceito religioso é o mais comum dos preconceitos. É difícil eu ver quem não tenha... A diferença é que alguns sustentam esse preconceito apoiados nas próprias convicções! Desses eu tenho é medo!

    Eu tento não ter. Tento. Defendo a liberdade religiosa, sob todas as formas. Mas sei que esse respeito fará uma cultura sufocar todas as outras em pouco tempo. O islam cresce exponencialmente. Talvez isso "explique" porque igrejas defendem tanto o sexo para reprodução, o não uso de métodos anticoncepcionais, e etc. É uma briga eterna por poder e espaço.

    Eu acho que é normal mudanças culturais, hegemonias, e, mesmo sendo católico, aceito isso na boa. Mas não tenho certeza se todos que defendem a liberdade religiosa também tem essa noção do quanto o mundo pode mudar com tudo isso que vem ocorrendo.

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  9. Ândi,

    Então, eu procuro dividir bem o que é religião de extremismo religioso, o que não quer dizer que eu seja favorável a qualquer um dos dois, mas é claro que a minha relação com a religião é de discordância, enquanto a que eu tenho com o extremismo religioso é de oposição veemente.

    Sobre o ponto da minha fala que você aborda no primeiro parágrafo, sim, é por aí: Eu considero que o que justifica a existência de Deus para um religioso monoteísta é a própria práxis social daquele instituição, não o contrário, daí que colocar o debate entre "não, Deus não existe" é girar no vazio, ele não parte de uma problemática à altura de uma demanda - se é que isso parte de alguma problemática.

    Sobre o cristianismo, acho que a influência dele, pesados prós e contras, é positiva - uma natural distorção de suas ideais aqui ou acolá -, mas a figura do Cristo que chega até nós pelas escrituras - e que eu vejo por uma perspectiva estritamente histórica e imanentista - é a de um rebelde radical que se insurge não contra um Império, mas contra o imperialismo: Não contra o ídolo (Roma) que se levanta Jesus, mas sim contra a veneração ao altar (a dominação, naqueles termos).

    Ademais, ele desenvolve uma ética radical fundada no amor como forma de aumentar a intensidade dos bons encontros - logo, de potencializar o próprio Outro - abrindo espaço para uma coexistência para melhor enquanto, por outro lado, Cristo recusa radicalmente a reprodução do efeito dominó dos maus encontros - oferecendo a outra face. Essas noções são fantásticas, por isso a minha briga é contra a influência das instituições religiosas denominadas cristãs e não com as linhas gerais do cristianismo histórico às quais eu não me oponho.

    abraço

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