terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Dilma vai à Cuba

A visita de Dilma Rousseff à Cuba é polêmica líquida e certa - e o é porque, antes de mais nada, Cuba não é uma simples ilha, mas o terreno central da disputa política e ideológica na América Latina, o que faz sua influência nos rumos do continente ser fortíssima ao longo dos últimos cinquenta anos, para muito além de suas limitações todas. 

O imaginário em torno do modelo cubano influencia mais as economias da região do que sua economia poderia, diretamente, sonhar em fazer - assim como seu peso nas reformas sociais e democráticas pelo continente nos últimos anos, por sua vez, excede o que seu sistema consegue realmente produzir de bondades internamente.  

A Revolução de 1959, que derrubou o ditador Fulgêncio Batista - líder de mais um dos tantos regimes fascistas apoiados pelos Estados Unidos - foi um evento mágico, no sentido em que criou uma alternativa profunda: a partir dali, era possível conceber outro caminho para a América Latina que não a de ser colônia velada de Washington. 

Se você acha que o sistema cubano construído ali transformou a ilha em um paraíso ou em um inferno, pare de ler este post agora. Se você acha que os problemas que aquele país tem são causados unicamente pelo bloqueio americano ou só pelos problemas do sistema local, idem. O mundo não se divide entre o plano e o mercado, como, para o mal, a China prova, então sejamos não-idiotas. A História não é um filme de bang-bang.

O país Cuba, bastante real, possui um sistema que não deixa de ser uma variante do nosso - o que se chama de engenharia reversa; se a diferença entre o capitalismo o velho regime é que no primeiro você entra em todos os lugares que pode pagar - a rigor, você entra em tudo -, no segundo o acesso é condicionado ao seu status. E o socialismo tem um pouco de velho regime, embora se funde na garantia da vida para todos e não no fazer morrer, deixar viver.

Na Moscou socialista, só os autorizados podiam morar na cidade, embora seus preços fossem semelhantes aos de toda União Soviética. O bom funcionário público se frustrava com o sistema por ser proibido de se mudar para lá. Com o capitalismo, qualquer um que pudesse pagar, poderia ir para Moscou, seus preços cresceram e a barreira passou a ser econômica: o bom funcionário da empresa privada se frusta consigo mesmo.  

A impossibilidade do socialismo à moda soviética de construir acessos automáticos, mesmo que defeituosos, levam a uma constante de frustração e esgotamento generalizado, com eventuais rompantes de revoltas em relação as quais o sistema não tem condições de lidar senão por meio da polícia - o que em último caso, contradiz o princípio fundante do sistema. Esse é o problema do antigo bloco socialista e não deixa de ser o de Cuba também.

No mais, revoluções dependem da manutenção do seu espírito nômade: ela precisa ser exportada e não parar de correr em linha de fuga. Uma vez as circunstâncias, ou decisões políticas, façam com que ela fique presa a um território, ela se corrompe. Esse também é um problema de Cuba, mas não foi da França. Nesse sentido, a relação com o Brasil, e abertura de um para o outro, é fundamental para ambos - e não custa lembrar que o Brasil, como a maioria dos países capitalistas, ainda é pior para se viver do que Cuba e o capitalismo vai mal onde ele aparentemente ia bem.

Resta a grande questão: deveria Dilma usar da relação histórica entre PT e Cuba para exigir a libertação dos atuais presos políticos cubanos e, também, permitir a vinda de Yoani Sánchez ao Brasil conforme tem se esforçado o Senador Eduardo Suplicy? Sim e Raul Castro deveria exigir explicações sobre o Xingu e o Pinheirinho. Cordialmente, sem estardalhaços para não servir à propaganda ocidental. Não estou sendo irônico, estou sendo cínico mesmo: realmente gostaria que isso acontecesse. 

Gostei bastante do que Dilma disse em Cuba: o Brasil não pode usar os direitos humanos como "arma de interesse político e ideológico" e de que temos "telhado de vidro" no assunto. A indignação seletiva, como nós vemos na mídia brasileira, é o que pode haver de pior. Mas Dilma precisa se esforçar mais no plano interno, afinal, ela não é uma analista política e sim a Presidenta da República. 

Sobre a mídia corporativa que fica indignada com o que se passa em todo território cubano, exceto em Guantánamo, e insiste em encobrir o Pinheirinho, só o humor salva. 

Eu quero que ela interceda pelos nossos desabrigados políticos antes de mais nada e que, também, influencie nos bastidores as necessárias reformas cubanas - que precisam engendrar o novo e não passar por reformas "de mercado" que sempre resultam no mesmo salve-se quem puder [pagar].

Gosto da liberdade de ser idiota que existe no Brasil e gosto da liberdade de não ser abandonado para morrer que existe em Cuba. Espero que esse seja o principal intercâmbio entre os dois países.



10 comentários:

  1. texto ótimo, pois desvela o lacunar e o identitário. Destarte, não há outro jeito senão olhar para o sintoma. Brilhante!

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  2. Oi Hugo,

    Gostei muito de suas observações, e tomo a liberdade de fazer pública a declaração do Idelber Avelar no facebook:

    "Jornalistas perguntaram a Dilma Rousseff hoje, em Cuba, sobre alguma declaração a respeito de direitos humanos na ilha. Ela respondeu que o Brasil tem telhado de vidro em direitos humanos. Gostei e é verdade. Só lamento duas coisas: 1) a mídia só pergunta sobre direitos humanos a quem visita Cuba, não os EUA; 2) Dilma só reconhece o telhado brasileiro de vidro quando está em Cuba, não no Xingu."

    Também recomendo o inacretidável post do jornalista esportivo da ESPN Brasil, Lúcio de Castro.

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    1. O Idelber é ótimo, aliás, sobre Cuba ele tem um post histórico, ainda no Biscoito Fino e a Massa: O Adeus de Fidel.

      P.S.: E belo texto do Lúcio

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  3. tem o fato de que a Revolução Cubana na verdade foi uma Revolução Burguesa sem burguesia - enquanto a Chinesa foi uma Revolução Industrial sem revolução burguesa (o que não acontecera sequer na URSS, já que Lenin deu um passo atrás para dar dois a frente).

    O que quer dizer que os últimos dois socialistas puros derivam em direção ao capitalismo perfeito: o da China sem burguesia mas também sem o centralismo soviético(Zizek que fala bem disso), o de Cuba se tudo der certo vira uma monarquia pedestre escandinava, só que sem neve e sem côrte (mas certamente com mais bicicletas e menos cadilacs retrô).

    (esse é o calo de toda a esquerda do mundo: os países onde o Estado é menos punitivo, e mais protetivo, e cuja distribuição de renda é drásticamente igualitaria são, na verdade, monarquias pobres em recursos energéticos e que não tiveram colônias - a exceção da Holanda.

    De toda, mas não minha, que prefiro Engels - também um aristocrata - e chamo 15 de Novembro de 1889 de Golpe Militar, e não de Proclamação da desdita).

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    1. Lucas,

      Eu elencaria dois pontos: o primeiro deles é que a revolução é um evento multitudinário, não é de uma classe (só como gatilho, no máximo) e se faz pelas partes do todo desfazendo a dobra central de certo sistema. A Revolução na França foi da multidão (mulheres, sans-culottes etc), a reação é que foi burguesa - uma vez que a burguesia percebeu que não poderia sobreviver enquanto tal se o processo revolucionário não fosse interrompido.

      Em Cuba, tivemos uma Revolução inédita na periferia pós-colonial das Américas - que caminhava placidamente para ser colonia branca dos EUA -, o que tem feições que mesclam uma inspiração francesa com a luta por descolonização, mas havia uma força disposta a articular as partes com todo, desdobrar o que estava posto, e não simplesmente dobra-lo de outra forma.

      Mas havia também sua boa dose de burocratismo, que foi alimentado pela política de isolamento estadunidense. Os sedentários sendo alimentados pelo cerco - a exemplo de Stalin.

      O outro ponto que eu gostaria de colocar é como o republicanismo, quando é atualizado e tornado panaceia do iluminismo, o é desnaturado por milênios de construção teológica - cuja forma última é o que chamamos de "Estado".

      Não que tenha havido uma conclusão sobre a República em Roma, sua existência coincide com uma batalha sem trégua pelo seu significado e termina na tragédia imperial. No duro, as repúblicas parlamentaristas de hoje não são substancialmente diferentes ds monarquias do mesmo naipe porque, afinal de contas, em ambas a fonte do poder é única e infundadas - a norma hipotética, afinal de contas, é a expressão da teologia-política definitiva que se constitui na forma de Estado.

      A rigor, qual a diferença entre a chefia de Estado ser ocupada pela aristocracia de políticos ou de nobres de verdade? Pouca. Não à toa, as experiências socializantes mais efetivas ocorreram, de fato, nas monarquias parlamentaristas nórdicas, o que não quer dizer que fatores externos não as tenham favorecidos, nem que isso seja o caminho.

      abraços

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  4. pra deixar mais claro: Cuba teve revolução burguesa sem revolução industrial, e a China o contrário. Ambas sem burguesia (mas também, curiosamente, sem aristocracia).

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    1. Se não me engano a China tinha sim uma casta aristocrática...

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  5. Acrescento: NENHUM veículo da mídia sequer mencionou "direitos humanos" quando a Dilma desembarcou na China. Se fomos ver, é uma postura covarde: em peixe grande não se bate, mas peixe pequeno 'tudo bem'.

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    1. A mesma China cujos defeitos são postos, por essa mídia, na conta do socialismo e as virtudes no da capitalismo - quando o lance de esperteza de Deng provou, por vias perversas, aquilo que os pós-estruturalistas franceses já diziam dez anos antes: a falsidade do divisão estanque entre plano e mercado.

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