Complexo do Alemão, a nossa faixa de Gaza, segundo entrega até mesmo O Globo |
Segue a guerra civil no Rio de Janeiro. Guerra de domínio entre forças assimétricas, narrada como espetáculo - lindamente absurdo e absurdamente lindo, o velho conquistar corações e mentes. Nem adianta argumentar o quanto, racionalmente, essa retomada do controle total daquela área pelo Estado tenha nuances inaceitáveis - ou seja de um todo despropositado -, o que importa ali - e para quem projetou aquilo - é produzir o delírio um específico delírio na multidão. Enquanto isso, os intelectuais se degladiam por versões, análises, soluções, críticas. O discurso oficial, claro, tem seus intelectuais. Um deles, trata-se do sujeito que ganhou certa proeminência nessa área, o glorioso José Padilha, aquele mesmo, o autor da série Tropa de Elite - que em relação ao segundo fiquei em falta com os visitantes desta Casa no que toca uma crítica. Diante desse episódio desditoso e de recém alçada proeminência como especialista em violência urbana e Rio pela mídia nacional, eu não podia perder essa oportunidade e ir um cadinho além.
Não, eu não gostei do Tropa de Elite 2. Nem poderia gostar. Em toda sua pretensão de nos iluminar sobre a conjuntura atual do Rio, o filme não passa de um pastiche de filme hollywoodiano, obedecendo, inclusive, às suas premissas mais elementares: (I) O elogio permanente à violência, demonstrada como forma máxima da expressão humana; (II) A castração das personagens, assexuadas até quando se insinuam (aqui, nem isso), reles autômatos sem libido; (III) A invisibilização da questão social, o Trabalho inexiste, tampouco qualquer menção à sua exploração. Está tudo lá, a violência é o ápice da expressão, quem domina a técnica para emprega-la mais e melhor é justamente para quem os holofotes se voltam, não existe troca de libido - ou possibilidade de -, tampouco - e principalmente - não existe questão social: Onde é que estão os fundamentos econômicos de tudo aquilo? A favela é demonstrada como um amontoado de pequenos empreendedores explorados pelos aneis burocráticos do Estado - pior do isso, a favela é narrada como se sempre estivesse ali o que, por tabela, sempre estará. Sem embargo, uma naturalização imperdoável.
De repente, toda a problemática do Rio de Janeiro, narrada pela voz estranhamente onipresente do ex-Capitão Nascimento - uma personagem inserida no plano, ao mesmo tempo, que consegue enxerga-lo de forma transcendental e assim nos explicar o que se passa, até quando corrige seus erros de avaliação -, é reduzida a um problema de gestão do mecanismo vigilantista-policial - e talvez de um certo gigantismo do Estado, destinado a produzir corrupção e explorar os empreendedores. Boa parte dessa perspectiva está presente em um artigo de Padilha publicado ontem no Estadão, sobre aquela crise: De repente, qualquer ligação da violência carioca com a luta de classes é produto da imaginação de uma certa "esquerda naïve" - e a esquerda naïve, sempre ela, serve como meio de desqualificar toda a esquerda ou, de repente, de álibi para dizer que "essa história de luta de classes não existe". Outro ponto da sua argumentação é como toda a problemática social do Rio, de repente reduzida no número do IDH, não faz diferença alguma, afinal, baseado nele, existem cidades piores e menos violentas. Vamos ao texto:
Afinal, por que o Rio de Janeiro é assim?
Uma resposta, a da esquerda naïve, postula que a violência no Rio de Janeiro decorre da miséria e da luta de classes, e diz que para combatê-la é necessário acabar com as diferenças sociais, distribuir a renda e educar a população. Há também a resposta da direita naïve, que reduz a violência do Rio a um problema de repressão e diz que ela se explica pela falta de firmeza da polícia e das leis.
As duas respostas estão erradas, contradizem fatos conhecidos.
A primeira não dá conta de cidades que têm índices de desenvolvimento humanos (IDH) piores do que os do Rio de Janeiro e índices de violência menores. A segunda está na contramão da história, que demonstra que incrementos na repressão podem piorar os índices de violência. Foi assim no governo Marcelo Alencar, quando o Estado adotou a remuneração faroeste e passou a premiar os policiais em função do número de criminosos que “abatiam”. A partir daí, o número de autos de resistência, de policiais que declararam ter matado criminosos que resistiram à prisão, cresceu e continua absurdo até hoje.
Não, favelas não são um produto da natureza. Mesmo a mais rústica esquerdinha socialista - aquela que Padilha gosta de usar para comprovar suas teses - sabe disso e o próprio Padilha, talvez, o intua também. Aquela população está em permanente atrito, na esfera econômica, com quem lhe oprime, mas manifestação disso nos campos social e político se estrutura mediante o grau de entendimento que ela tem e, antes de mais nada, como a produção desejante dela é concretizada nessa conjuntura. Negar isso é pressupor uma simetria que não existe ou dizer que essa assimetria é neutra, não produz efeitos, o que é igualmente patético. Buscar refúgio em um número tão abstrato quanto o IDH é outra falácia óbvia, ainda que se trate de um referencial que nos ajude a tatear no escuro, ele não pode - nem deve e, suspeito, nem temo como - ser usado como instrumento definitivo para explicar fenômenos sociais desse porte; estamos falando de um elemento que é calculado a partir da produção bruta per capta - sequer da renda salarial - e da mera quantidade de educação e de vida das pessoas.
A questão é que para entender um fenômeno de violência, antes de mais nada, é preciso qualificar e não quantificar esses dados, além de considerar mais alguns outros, entendendo, por exemplo, como essa população, dividida em classes que se antagonizam, está fisicamente disposta na urbe. A violência nas cidades passa além de segurança no emprego ou reles segurança alimentar - embora parta delas -, mas por um fator não menos importante: Segurança e dignidade habitacional. A ausência da reles garantia de um teto e/ou a existência de espaços urbanos incapazes de permitir que a comunidade interaja verdadeiramente são fatores importantes na composição da violência, posto que o confinamento de grandes contingentes explorados ou excluídos em pequenos e precários espaços físicos, tende a acirrar as contradições e tensões existentes - que já não são pequenas -, retirando qualquer possibilidade de melhora da vida, realidade da qual só possa nascer uma cultura de violência. Embora possa surtir algum efeito, colocar a melhora da gestão da polícia como meta central de resolução desta problemática é um engôdo à serviço de uma ideologia de repressão - não muito diferente daquela cultivada pela "direita naïve", embora o referido cineasta se ponha, estrategicamente, ao centro e acima desse debate político.
Enfim, o script da Tropa de Elite 3 está escrito, para Padilha, a saída está na melhora da administração da violência legítima do Estado, o que exige a redução dos seres sensíveis e afetivos das favelas a autômatos quantificáveis - mas não qualificáveis em sua condição humana - e, uma vez mais, a invisibilização de qualquer relação disso com o que se passa na esfera econômica. Sua conclusão e seu modo de se portar diante do debate público são fruto de uma sofisticada construção intelectual sobre a qual, atentem para isso, se assenta a nova direita brasileira, ciosa pela retomada da totalidade da hegemonia, justamente neste momento em que a luta de classes nunca esteve tão evidente neste país. É esse combate que a esquerda precisa ter bem claro em mente, isto é, se a cegueira que as luzes lhe causaram permitam ver para além do racionalismo insuficiente.