domingo, 7 de novembro de 2010

As Eleições, a Questão Nordestina e São Paulo

Deus e o Diabo na Terra do Sol 

Domingo passado, encerrou-se o mais longo, tenso e violento presidencial desde 1989 com a vitória da petista Dilma Rousseff sobre José Serra. Esperava-se, enfim, que o término do pleito fosse sacralizado e que de algum modo o candidato derrotado - que levou o debate aos limites da perplexidade - reconhecesse a vitória da adversária e, pelo menos em algum momento da campanha finda, agisse como um político de evergadura presidencial e fizesse uma fala sensata. Não foi o que aconteceu. Ao invés de dizer adeus, Serra estava completamente inconformado com uma derrota incontestável e fazia um inacreditável discurso revanchista - algo impossível de imaginar que viesse da parte de um Lula, derrotado por três vezes em pleitos presidenciais, que nem o próprio Serra fez em 2002 e que Alckmin também não fez em 2006.

Isso só foi a cereja do bolo de um político que, até mesmo nos dizeres de Paulo Nogueira - um sujeito que considera FHC o maior presidente da nossa história -, sofre de uma ambição desumana de ser presidente mesmo contra a vontade dos brasileiros. Durante a campanha, ao invés de debater o que realmente estava em jogo - e do que discordava verdadeiramente da política petista -, em suma, a política externa não-atlantista, os rumos do Pré-Sal, a Política de Emprego (a qual se negou a fazer qualquer comentário mesmo em debates) e o seu projeto para o Plano Nacional de Banda Larga, Serra simplesmente suspendeu o debate para estimular- ou também permitir que estimulassem, se escorando num discurso violento que estimulava - preconceitos latentes na nossa sociedade - que, no entanto, vinham arrefecendo -, notadamente, questões morais como o aborto e o casamento gay.

Essa cereja do bolo não trouxe poucas consequências, o fato de Serra não ter tido a grandeza política de fazer um discurso de união nacional, de tocar a bola para frente e de dirimir eventuais rusgas - não, ele atacou com um discurso desastrado, atrasado e de mal-vontade - fez com que o clima tenebroso desse interminável campanha persistisse ao longo da semana passada. A mídia corporativa, aliada de Serra de primeira hora por  interesses óbvios, seguiu fazendo seu papel de arcar com a parte dura dos ataques e desqualificações ao PT - amparada na muleta da liberdade de imprensa, que usa, há tempos, para fazer política partidária - apresentando um Brasil "dividido" entre norte e sul após a derrota - Dilma teria vencido por conta daqueles estados cheios de pobres, atrasados e desidiosos. É como se, de repente, Serra não tivesse tido um voto no grande norte e Dilma nada no sul ou se Serra não tivesse vencido por pouco onde venceu e Dilma não tivesse goleado onde ganhou.

Pior do que isso, fora o Estadão que se dignou a mostrar um mapa eleitoral dividido em municípios - que ainda assim traz lá suas distorções - a figura do mapa brasileiro dividido em estados como se a nossa eleição fosse como as indiretas eleições americanas, onde quem ganha em um estado - nem que seja por um voto - leva todos os seus delegados pairou como a prova dessa "divisão" - como bem nos lembra o sempre atento Idelber Avelar alertado em cima do lance pelo perspicaz Alexandre Nodari via twitter. O resultado disso, claro, é provocar uma onda de insatisfação, inconformismo e agressividade em quem votou em Serra, o que, conjugado com preconceitos já existentes contra o Nordeste, provocou um clima bizarro e artificial de guerra, cujo ponto mais alto foi o caso da estudante de Direito da FMU, Mayara Petruso, que fez ofensas racistas e defendeu o assassinato dos nordestinos em sua página no Facebook. Isso sem falar que tópicos ofendendo os nordestinos que chegaram aos trending topics do Twitter. 

Vamos aos fatos, nada desse movimento é racional. Retorno ao nosso ponto de partida: Para a Presidência da República, são considerados os votos de todos os brasileiros que estejam em idade eleitoral e tenham a devida documentação. Não existem pernambucanos ou gaúchos na eleição presidencial, apenas brasileiros que votam em domicílios eleitorais gaúchos ou pernambucanos. Simples assim. Se um candidato venceu porque teve uma votação maior aqui do que acolá, paciência. No entanto, nem foi isso que aconteceu, haja vista que mesmo que o Nordeste fosse riscado do mapa - como sugeriram algumas figurinhas ao longo da semana passada - ainda assim, Dilma teria vencidoÉ evidente que isso não se trata de um caso isolado, candidatos a cargos políticos importantes tem uma enorme responsabilidade a respeito do que dizem e, sobretudo, do que deixam de dizer, a única pessoa que poderia ter cessado com esse clima pós-eleitoral seria o próprio Serra, mas ele não fez, ele deixou esse fluxo de intolerância seguir.

Para mim, isso não é uma questão simples, afinal, ela me afeta diretamente: Sou pernambucano e vim morar em São Paulo aos três anos de idade, de lá para cá já vão seus vinte anos, mas a sensação de forasteirismo é permanente numa paisagem que ao mesmo tempo acolhe (porque precisa), submete - porque precisa, mas precisa de uma determinada forma -; Nordestinos vieram para ser o contingente de trabalhadores da industrialização pesada de São Paulo no pós-Guerra, num movimento que não é fruto da aliança entre o estudante e o operário, mas sim entre o coronel pouco afeito a ideias extravagantes de Reforma Agrária e de Capitães da Indústrias ciosos por buchas de canhão; de todo modo, é patente que a discriminação contra nordestinos apesar de existir, é muito menor hoje do que era há dez anos atrás por exemplo. Isso é uma questão que está se tornando latente e, ao contrário do que algumas pensam, quando um certo preconceito está se tornando velado, é porque ele está arrefecendo: Se um pessoa discrimina negros e não diz publicamente é porque foi construída alguma moralidade naquela sociedade que admite que alguém externe. Na medida em que esse ódio recua para a esfera privada, ele tende a desaparecer. Eis aí a enorme importância da Escola e, acima de tudo, de quem tem fala pública como políticos que se supõem com evergadura de estadista ou meios de comunicação em massa.

Também não adianta vir com caminhos fáceis para explicar o que é São Paulo e como ela se relaciona com o resto do país. Estou há tempo de mais por aqui para saber que São Paulo é um paradoxo, ou melhor, o paradoxo de uma cidade - que a despeito dos agrupamentos urbanos anteriores do litoral foi aquilo que, de fato, deu no estado de São Paulo atual - formada ao mesmo tempo pelo projeto do universalismo cristão dos jesuítas e do imperialismo sem concessões dos bandeirantes. Essas duas linhas acabaram, pelas circunstâncias históricas, unidas numa dupla hélice que, no entanto, tem como fundamento comum a ideia de que São Paulo é o território necessário para ocupar o resto do país, ainda que elas se contradigam na maneira como isso vai se dar e para onde isso vai se direcionar: Se os jesuítas tinham um projeto acolhedor, no qual cabiam todos desde que aceitassem abrir mão de sua identidade anterior para se tornarem sujeitos-cristãos, os bandeirantes se viam diante de um projeto, uma meta implacável para a qual não havia sujeitos ou potenciais sujeitos, mas sim objetos que bifurcariam na figura dos instrumentos - os objetos úteis - e dos obstáculos - os objetos inúteis a se destruir.

Isso prevalece até hoje, apesar de todo o tempero intelectual do racionalismo, das ciências e tudo mais. Essa lógica bipartida, claro, poderia ser posta abaixo por um projeto, mais do que civilizador, cultural, desde que haja vontades políticas organizadas para tanto, assim não se faria mais perguntas como "teriam os nordestinos se tornado obstáculos?" Ou "seriam ainda assim instrumentos úteis?" Ou isso não está em questão, afinal, "eles são cristianizáveis, digo, civilizáveis, não são?" O pensamento provinciano de São Paulo que não consegue sair dessas variáveis me parece terrivelmente inscrito no modo de funcionamento do PSDB. O que será que pensariam "os tucanos paulistas" sobre o mineiro Aécio Neves? O projeto petista, mesmo que tão marcado pelo universalismo cristão - diretamente, aliás -, consegue escapar - às vezes sonhar em - escapar às linhas estanques disso, ainda que seja um projeto nascido em São Paulo, o que aponta para a chave para o desligamento desse mecanismo, seja pelo que faz no plano nacional ou no próprio plano paulista - ou já esqueceram da ousadia de eleger não só uma mulher como uma nordestina como prefeita de São Paulo? O ponto é que esse pensamento paulista tradicional continua - como continuará por algum tempo ainda - a variar entre sua faceta mais humanista e a mais hardcore, precisando, no entanto, de uma atuação direta dos grandes agentes para reprimir seus instintos mais desumanos, mas é evidente que só a superação definitiva disso, abraçando definitivamente a brasilidade - o reconhecimento da importância desse mutualismo transregional, que envolve as trocas econômicas, sociais e culturais - é que é a saída para esse impasse.

P.S.: Muito bacana o movimento organizado pelo Eduardo Guimarães do "São Paulo é de Todos".


Imagens: 1) Carta de Deus e o Diabo na Terra do Sol de Gláuber com montagem feita aqui 2) Carrancas do São Francisco 3) Mudança do Sertanejo -- J. Borges; 


 

4 comentários:

  1. Hugo,

    Como paulista, mas filho, neto e bisneto de nordestinos, fiquei embasbacado com a manifestação de ódio aos nordestinos nas redes sociais, que percebi já desde a noite do dia 31/10, após o anúncio da eleição da Dilma.

    Sou da Baixada Santista (Praia Grande) e não presencio hostilidades dirigidas aos nordestinos frequentemente, com exceção de piadas e anedotas contadas pelos próprios, quiçá por transitar entre locais com alta população de migrantes ou de filhos deles, como eu.

    O que me impressionou neste fenômeno foi a quantidade de adolescentes que tomaram parte nas ofensas, que me pareceram totalmente alheios ao cotidiano político, econômico e social do país. Esta aparente inapetência quanto ao saber sobre o que realmente se passa não os impediu, com a piora da falta de fundamento, de tomar parte na disputa bem x mal acirrada pelas eleições.

    Entendo que o importante é identificar as origens deste raciocínio classista, somado a ações como a do Eduardo Guimarães. Os paulistas que se julgam nobres/arianos e até os que só fizeram parte por achar bonito precisam compreender, via história, estatística e economia, que São Paulo só é grande por suas múltiplas faces, incluída nelas a nordestina que, mesmo a contragosto, é uma das mais belas e que mais contribuíram para o desenvolvimento do país.

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  2. Belíssimo comentário, Tiago, aliás, conversando com meus colegas da PUC sobre esses movimentos secessionistas de São Paulo - pequenos, bisonhos e cheios de jovens - é a profunda irracionalidade por detrás deles, o que começa com uma pergunta mais elementar que pode ser feita quanto a essa questão: O que seria um paulista puro? Certamente não seria alguém com um sobrenome italiano como Petruso - e se hoje é a coisa mais normal do mundo ter sobrenome italiano em São Paulo, nem sempre foi assim, como deve supor o palmeirense José Serra que sabe muito bem que o apelido de "porcos" dado à torcida alviverde pouco tem de carinhoso e diz muito sobre como os italianos eram vistos no estado. É evidente que o fato de nordestinos serem o alvo da vez, e não mais italianos, diz respeito à reconfiguração da divisão do trabalho operada na São Paulo da ditadura militar, o que colocou os nordestinos para o ponto mais baixo da escala do trabalho, o que conjugado com essas raízes do pensamento paulista, o clima dessa eleição e um pouco mais, deu nessa coisa completamente abjeta que vimos nos últimos dias. Triste, triste.

    abraços

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  3. O comentário desta "estudante" acho que mais que preconceituoso está imbuido de uma ignorância tamanha, por não conseguir entender a relevância e importância dos nordestinos e também de outras regiões para a formação do estado paulista...Me remete a música do Geraldo Azevedo, que diz que sempre se é negado aquele que participou efetivamente na construção de qualquer coisa e por não estar enquadrado aos "padrões" lhe é negado o direito de usufruir daquilo que participou diretamente na construção...
    Mais que me chocar por esta opinião me entristesse, já que na visão de muitas mas muitas pessoas o outro diverso de mim é escroto, feio, intragável, merecido seu rebaixamento a não humano.Dá-se sempre a impressão de vivermos num pais tolerante e afeito de pluralidade e o somos, mas acho que estamos retornando à um conservadorismo, mais perpetrado pela ignorância do que por uma justificativa real, por mais ignominiosa que seja.E me faz pensar mais convictamente que as academias de direito, que deveriam ser meios de possibilidade efetiva de transformação, estão contribuindo para opiniões mais que conservadoras e bestiais.E o pior de tudo, serão a estas pessoas outorgadas poder para "modificar" as coisas como estão e ao invés disto manterão ou piorarão a situação vigente...

    Beijos

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  4. Mayara, um autor que trata muito bem desse tipo de questão é Deleuze; o fascismo não surgiu apenas de um aumento do sistema de controle - isto é, propaganda, vigilância e punição - por parte do Estado, antes disso, ele é uma reação à decadência do Capitalismo que se expressa por um recuo, um retorno ao território como forma de garantir o posto - é, acrescento, uma espécie de busca por uma zona de conforto geográfica conjugada com a adoração de um passado que nunca existiu que serve à realização de um certo projeto de futuro. Em certo grau, é isso que se vê de forma difusa nos fenômenos de xenofobia - que podem gerar desde um totalitarismo fascista até o secessionismo -; não é exatamente o caso de São Paulo, mas há sinais disso: De fato, não há racionalidade alguma na reação dessa moça, isso, além de completamente insensato é fruto de uma onda, diz respeito ao modo como a atividade dos grandes grupos se confrontaram na arena eleitoral e ao discurso de uma das partes em específico, mas diz também a dois fatores, um externo e outro interno, o desconforto pela nova correlação das classes sociais dentro de São Paulo - sendo que, na São Paulo do pós-Guerra, a figura do nordestino é equiparada a da ralé operária ou mesmo ao lúmpem - e a posição que São Paulo está ocupando dentro da nova correlação de forças nacional. De um modo ou de outro, as eleições teriam impacto sobre esse contexto, mas ele foi amplamente negativo na medida em que um dos atores, notadamente a campanha do senhor Serra, ao contrário de trabalhar em torno de propostas, apelou para toda sorte de discurso raivoso, despertando velhos preconceitos latentes - ou a caminho do desaparecimento - e não assumindo as responsabilidades pela maneira como serviu para catalisar esses movimentos.

    beijos

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