(Lula, Ahmadinejad e Erdogan - foto retirada daqui)
Ontem, debatemos aqui a visita de Lula à Rússia enquanto ele partia para Teerã para se reunir com o premiê turco e os líderes iranianos - naquilo que era visto pela comunidade internacional como a "última chance de negociação com o Irã" em relação à politica daquele país no enriquecimento de urânio. Não é uma questão nada simples porque conjuga interesses e valores muito complexos e variados. O Irã, como já foi dito aqui, é uma teocracia islâmica, portanto, uma espécie de aristocracia na qual manda quem teria a capacidade de se interpretar as escrituras sagradas do Alcorão e dizer para os homens os desígnios de um Deus todo-poderoso que nunca erra. O líder supremo do Irã é o aitolah Ali Khamenei, mas as funções concernentes à liderança em relação aos assuntos "seculares" sejam, basicamente, realizadas por um Presidente, que é eleito mediante um processo de votação por parte dos habitantes razoavelmente parecido - no duro, o Presidente é o equivalente a um chefe-de-governo.
Desrespeitos aos direitos humanos são frequentes e muitos deles permitidos pelo ordenamento jurídico local - há pena de morte, as mulheres ocupam sim posição de inferioridade, pode-se utilizar de argumentos relativistas no sentido de que "é a cultura deles", mas isso é facilmente questionável se levarmos em conta que são seres humanos, como eu ou você, que são enforcados, censurados e humilhados por aquele regime - e sim, enforcar, censurar e humilhar são violências em qualquer parte do planeta. A questão da religião, por sua vez, precisa ser enxergada pelo prisma da Razão, pela busca do que realmente é, de como ela serve como legitimação para um discurso de dominação política, onde, sob o fundamento de que quem em última instância manda são aqueles que podem conhecer de fato os desígnios de um certo Deus, justificam-se violências consideráveis.
Não menos importante do que isso é entender que o Irã é um grande produtor de petróleo, o ouro negro de nosso tempo, e como isso desperta a cobiça de grupos de interesses de certas potências que buscam encontrar álibis que justifiquem, quem sabe, uma invasão ali, para retomar os bons tempos em que as potências ocidentais faziam o que queriam naquele país - sim, a chamada "Revolução" Islâmica detonou com os direitos civis dos iranianos, mas, por outro lado, serviu para botar para correr seja potências exploradas ou grupos de interesse de certas potências, pois o processo imperialista é complexo, muitas vezes a exploração de outra unidade política por outra se dá por um projeto de Estado de um determinada comunidade, enquanto em dados momentos, isso é fruto de uma manipulação de determinados grupos. Não, meus caros, isso não é teoria da conspiração, basta olhar para o que aconteceu no Iraque, ali pertinho.
A política de enriquecimento de urânio por parte do Irã nos últimos anos despertou um certo temor na comunidade internacional. Basicamente, um grande exportador de energia como o Irã não teria lá muitos motivos para produzir energia nuclear que não fossem bélicos. A preocupação, claro, não é moral, ao contrário, é imoral, pois visa a manutenção do (des)equilíbrio de forças, na pior das hipóteses, àquilo que concerne à posse de uma tecnologia estratégica que serve tanto para produzir energia com alto rendimento, quanto desenvolver poderosos armamentos. No jogo das potências, mesmo uma Rússia, que não tem interesse algum em ver um Irã fraco por conta da posição estratégica que ele ocupa no Oriente Médio, não fica satisfeita em conceber a reles possibilidade de um Irã com armas nucleares ou com tecnologia de ponta. Por outro lado, um Irã com armas nucleares seria um país cuja invasão seria impossível, mas um Irã desenvolvendo energia nuclear, seja para que for, é um belo álibi para que os EUA arrumem o motivo necessário para irem à desforra que planejam desde a queda do Xá - uma guerra de proporções catastróficas, longe de ser do interesse do povo americano que resta inerte enquanto o seu sistema política está dominado por grupos de interesses específicos capazes de tudo.
É dentro desse cenário complexo ao extremo que entra o Brasil. Graças à política externa independente recém-inaugurada por essas bandas, o país resolveu expandir seus tentáculos diplomáticos pelo mundo, atuando de acordo com interesses políticos e econômicos imediatos conjugados com determinados princípios positivados em sua Constituição que orientam a política de relações exteriores a seguir determinados ditâmes, que, em última instância equivale a dizer que temos de pensar numa articulação de longo prazo, de que temos de considerar nosso interesse enquanto brasileiros, mas também o nosso interesse enquanto seres humanos na manutenção da nossa vida sobre a terra. A política externa com Lula ganhou musculatura, seguindo um viés fortemente pacífico e crente na via do diálogo, ainda que relativize, em muitos casos, infrações aos direitos humanos de aliados. De qualquer modo, a compatibilização entre os interesses de curto e longo prazo não deixa de ser boa.
Chegamos ao Irã e ontem. A Turquia enquanto um dos países islâmicos mais desenvolvidos do mundo não poderia deixar de ser um dos interlocutores do encontro. O Brasil, enquanto potência emergente, democrática e um dos poucos países que não apenas optou por manter a via do diálogo com o Irã como também soube fazê-lo, idem. Ali, estava a chance de resolver um impasse bem claro: Há variados interesses ao redor do globo que querem uma guerra no Irã, outros que não querem um Irã nuclear, mas não conseguem ver o diálogo mais como possível, outros, como nós, a quem a guerra simplesmente não interessa porque se trata de uma irracionalidade destinada apenas a abalar um mundo já instável. Brasil e Turquia eram do time que buscava evitar essa guerra e conseguiram, ontem, um acordo histórico com o Irã. Ambos se apresentaram nas negociações como duas partes dispostas ao diálogo com os iranianos, uma das poucas ao redor do mundo, e foram hábeis em convencerem os líderes iranianos de que ofereciariam um proposta razoável mediante a qual sanções mais duras da comunidade internacional não seriam empregadas - e de que essas não seriam, certamente, ameaças, mas sim o início de uma escalada para a invasão do país.
Que pode fazer o Irã? Simplesmente ignorar brasileiros e turcos, acabarem isolados e ser invadido? Imediatamente, boatos tentando desqualificar Brasil e Turquia foram plantados na imprensa internacional. Inclusive de que pretendiam construir armas nucleares. Ou de que tudo não passa de um engôdo dos líderes iranianos no intuito de ganhar tempo. O ponto é que a primeira hipótese exclui-se rapidamente: Trata-se de um evidente factóide destinado a deslegitimar as partes negociantes. O segundo é improvável, mas não impossível: os líderes iranianos realmente poderiam fazer isso, mas só o fariam se realmente tivessem informações seguras de que a invasão do país é iminente e, portanto, a única saída seria construir armamentos nucleares mesmo - isso, ressalte-se, é pouco provável porque neste momento, cumprir o acordo com turcos e brasileiros esvazia o sentido dos rufar dos tambores de guerra americanos e fortalece dois fundamentais aliados no campo internacional. Seja como for, esse foi o maior gesto da diplomacia brasileira em todos os tempos, dando um passo adiante na formação de uma comunidade internacional realmente funcional muito maior do que o que o golpe hondurenho fez recuar no projeto de integração do continente americano, não sei dizer se evitamos a guerra no Irã, mas certamente a impedimos nesse momentos e a atrasamos fortemente -, espero que o suficiente para que ela não aconteça. Ainda há muita água para rolar, mas Lula conseguiu a maior vitória de seu Governo ontem.
Hugo,
ResponderExcluirMe empresta esse tal prisma da Razão aí?
He, he.
Um abraço
Texto maravilhoso, Hugo. Bem ponderado, porque não faz do Irã o pior país do mundo -- como quer a direita -- nem o harém do universo -- como quer a esquerda. Já debatemos muito o Irã por aqui e lá no meu Blog e trata-se de um dos principais assuntos ainda não resolvidos do século XX.
ResponderExcluirAbração
Luis,
ResponderExcluirNão preciso fazer isso, a Razão é acessível a todos os homens - e mesmo que fosse preciso, certamente eu é que o pediria para o amigo ;-)
abraço
João,
ResponderExcluirValeu, meu caro! Aliás, como está difícil vencer o binarismo amigo-inimigo nos dias de hoje, não? Há muitas décadas que o idealismo não esteve tão exarcebado no debate político brasileiro, isso é muito, muito perigoso. Sobre o Irã é isso mesmo, um dos maiores assuntos não resolvidos do século 20º, mas que tem sido reduzido, no plano da retórica de palanque do Brasil atual, ao "não converso com o Irã porque o regime deles é mauzinho" ou "ora essa, que asneira seria essa de ficar avaliando assuntos internos de 'aliados'" - felizmente, Lula consegue ser melhor do que isso, ainda que dê suas derrapadas. Graças a isso, os EUA estão em xeque.
abração
...ou pelo menos, colocamos em xeque eventuais grupos de interesse americanos na guerra do Irã.
ResponderExcluirLegal o seu texto, Hugo. Mas não posso concordar com nosso amigo João sobre suas assertivas binárias sobre a esquerda achar o Irã o "harém do universo". O Irã é um país de direita, que fique bem claro. O islamismo dele floresceu em oposição aos grupos políticos de esquerda, que foram massacrados e desapareceram.
ResponderExcluirMiguel,
ResponderExcluirObrigado, meu velho. Também não creio que a esquerda pense necessariamente isso do Irã: Bem, eu sou de esquerda e escrevi o que escrevi, aliás, talvez afirmar isso seja mesmo cair numa outra forma de binarismo, mas ressalvado esse ponto, o argumento do João dá uma cutucada na questão de como essas duas formas de discurso têm se repetido ferozmente no nosso meio, tornando o debate impossível. Sobre o Irã, certamente é um regime autoritário, mas não sei se é possível enquadra-lo dentro da classificação direita-esquerda por conta do seu caráter religioso.
um abraço
um abraço
o brasil sabe fazer alguma coisa
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