segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sobre a Tortura e Porque Eu Discordo de Maria Rita Kehl

 (imagem retirada daqui)

No dia primeiro de maio, o Estadão publicou um texto da escritora e psicanalista Maria Rita Kehl intitulado "Tortura, por que não?", onde a autora disserta sobre a absurda decisão do STF em relação à revisão de Lei de Anistia e a tortura que continua a existir nos dias de hoje, tudo isso diante de uma posição complacente da sociedade brasileira - tese da qual eu discordo, afinal, esse fenômeno é mais complexo do que isso como eu irei dissertar mais adiante, porque a maneira como as pessoas toleravam a tortura nos anos 60 e 70, e como enxergam isso hoje, são totalmente diferentes porque se dá por causas distintas em momentos distintos, onde o primeiro afeta o segundo, por uma questão de coerência cronológica. Existe um ponto que esse raciocínio fica mais tortuoso:

"Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje [grifo nosso], passivos e horrorizados. Doença grave, doença crônica contra a qual a democracia só conseguiu imunizar os filhos da classe média e alta, nunca os filhos dos pobres."

Não, não é a mesma. Isso é uma ficção. Notem, evidentemente o Brasil não é um democracia consolidada, não vivemos um mar de rosas em termos de respeito aos direitos humanos, também tivemos problemas graves durante a Ditadura, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A Ditadura Militar era uma máquina de matar gente, poderia eliminar qualquer um de nós, da forma que quisesse, quando quisesse. Isso não se iguala à Democracia defeituosa do Brasil - há quem acredite que toda democracia é defeituosa por natureza, como Zizek, mas eu discordo, ou talvez simplesmente estejamos coisas diferentes de "democracia" -, cuja capacidade potencial de matar, justamente por ser um acidente, é pequena. Usar dados sobre quantos morriam nos anos da Ditadura e quantos morrem torturados hoje nas delegacias é um problema porque:

(I) Nos anos 60 e 70, as pessoas também morriam torturadas por crimes comuns, mas esses não eram sequer lembrados porque a condição do preso comum, oriundos das classes mais baixas sequer era considerado, considerávamos as torturas aos insurgentes políticos - que vinham grosso modo da burguesia e da pequena-burguesia, talvez por isso hoje nos importemos com presidiários "comuns" sendo torturados e mortos. No entanto, não temos mesmo como auferir quando se torturava mais.
(II) Mesmo que se torture mais hoje, do que antes, as causas são diferentes, o que produz consequências diferentes; se você se baseia em quantas pessoas o Estado brasileiro torturou/tortura para determinar sua nocividade, ao invés de auferir a postura que ele tinha - por tabela, a quantidade de pessoas que ele pode matar -, você está estabelecendo um raciocínio mais ou menos assim: Morreram, em um determinado ano, mais trabalhadores em acidentes em fábricas de pólvora do que nos restaurantes de uma pequena república da Europa, logo, conclui-se que é mais perigoso trabalhar num restaurante do que numa mina de carvão - e a lógica é a mesma tanto num caso como outro porque morrem pessoas em ambas as situações.

Eu quero dizer que não podemos partir das consequências visíveis e postas de um fenômeno para chegar à essência da coisa, mas sim devemos fazer o caminho inverso, buscando investigar a causa do fenômeno para chegarmos aos efeitos, distinguindo as consequências de acidentes para não chegarmos, mesmo que não-intencionalmente, a conclusões como "torturam mais hoje do que na ditadura, logo, estávamos mais seguros na ditadura do que hoje" - ora, cara-pálida, só não morreram mais pessoas torturadas naquele período pela falta de uma reação maior ao regime e não pela ausência de disposição ou capacidade para o Estado matar, diferentemente de hoje, quando o Estado - supostamente - mata mais, apesar de, em potência, ter capacidade menor para fazê-lo. Construir uma simetria falsa em relação a dois momentos históricos distintos, um afetado pelo outro como demonstrado, é um perigo enorme, pois se naturaliza as condições do primeiro caso, o que inadmissivelmente arriscado.

4 comentários:

  1. Hugo, discordo em grande parte da sua opinião e sigo o pensamento da Maria Rita kehl, a tortura é um crime invisivel para a sociedade brasileira e para todo o aparelho judicial e estatal.Ela continua ainda sendo perpetrada nas mais diversas instituições prisionais do pais; e este resultado também é fruto de não termos punibilizados os torturadores,do regime militar não dá para se construir um modelo democrático sem o direito e dever ser "igual" para todos.Em muitas sentenças judiciais os torturados precisam comprovar que não deram "motivos" e que são pessoas "confiáveis", para que seus torturadores sejam condenados, isso quando suas denúncias chegam ao poder judiciário.No Brasil isso é visto como normal por todo corpo social, extrair-se a humanidade do outro é devida quando infringe-se a lei.Se considerarmos que não há nenhuma relação entre a estatização da tortura do periodo de regime ditatorial até os dias de hoje, o clamor e sofrimento dos torturados continuará inaudível aos nossos ouvidos.E seremos cada vez mais um democracia pobre e que anui com a não aquerência de direitos humanos.

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  2. Mayara,

    A questão da minha discordância com ela é outra. O ponto é que a análise da violência do Estado contra os cidadãos não deve ser medida pelos seus efeitos, mas pela sua capacidade. Não existe paridade entre a tortura hoje e o que houve no Regime Militar porque ali o Estado era desenhado para reprimir os inimigos públicos - opositores da ordem capitalista -, o que não acontece hoje, apesar dos pesares, portanto, não é uma eventual quantidade de mortes ou ainda a existência de tortura que justificaria uma semelhança, seria necessário mais, seria necessário comunhão de fins entre o regime atual e o regime anterior, estruturas de matar semelhantes ao da Ditadura etc etc. Nada disso existe, portanto, não há simetria entre a forma como a tortura existe hoje em nossa sociedade e como existia no regime militar - o que não diminui a gravidade da tortura hoje, mas só é um cutucão para lembrar o quão grave foi a tortura no regime anterior e todo o seu conjunto da obra.

    beijos

    P.S.: Eu estou para escrever uma crítica sobre Tropa de Elite 2 que assisti hoje e, claro, alguns pontos daqui, eu certamente abordarei lá.

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  3. No que tange a sua justificativa no inicio dessa resposta concordo com ela, em alguns aspectos ainda.O escopo certamente no periodo ditatorial dizia a respeito da "insurreição-terrorista" dos comunistas.Não existe semelhança quanto a finalidade, mas hoje utiliza-se para os mesmos fins, que se confesse coisas das mais arbitrárias, utilizam-se os mesmos meios (técnicos)e há uma conivência entre aqueles que não particam a tortura de fato, mas são omissos quanto sua prática.Além do prévio julgamento de que a tortura foi necessária, e mais, que a pessoa que a recebeu faz jus para tal. (O filme tropa de elite 1 em algumas partes propaga exatamente essa concepção).Existem estudos que comprovam que os países que punibilizaram seus torturadores, os direitos humanos são adquiridos pela maior quantidade de cidadãos.Talvez não pareça mas existe uma profunda simetria em não ter-se culpabilizados os torturadores.As vítimas continuam esquecidas e suas familias sem reparação. Além de que hoje os agentes estatais podem cometer as práticas mais perversas que sabem muito bem, que a justiça neste pais é morosa e que não vai culpabilizar, policiais e demais agentes que estão a serviço do povo.Uma prova disso é o incidente do Carandiru.Prescreveu-se o crime e ninguém foi culpabilizado.Exatamente porque foi transferido a ideia de "terrorista-comnuista" para "vagabundo-pobre-sem vergonha..."
    Enfim, teria muitas coisas a aventar ainda sobre a tortura.

    Beijos

    ps: Assim que fizer o post com a crítica, comento com muitas outras opiniões ainda a respeito da tortura, segurança pública e outras coisas...

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  4. Mayara,

    A questão da Anista e do legado da Ditadura passa pela análise do que ainda são as nossas FFAA e a maneira como elas estão apenas improvisadas na ordem institucional democrática. Tanto FHC quanto Lula sabiam do vespeiro que elas se tratar e não tiveram coragem de bater de frente, embora tenham comido pelas beiradas; do prolongamento da data para abrir arquivos secretos da Ditadura, FHC conseguiu negociar o fim dos ministérios militares, da manutenção da Lei de Anistia no ordenamento, Lula tentou impedir uma crise militar que se juntasse à rearticulação da direita nacional - embora no meu cálculo de poder, valesse a pena ter tirado essa aberração do ordenamento, não que eu desconsidere a reação, mas acho que dava.

    beijos

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